sexta-feira, 27 de abril de 2018

O jogo de louças pintadas que homenageia grandes mulheres da história


Dupla de artistas utilizou, em 1932, utensílios domésticos para provocar a estrutura patriarcal na Inglaterra. Obras ficaram ‘perdidas’ por décadas


Cerâmicas da coleção 'The Famous Women Dinner Service', produzida pelos artistas ingleses Vanessa Bell e Duncan Grant no início da década de 1930

A coleção ‘The Famous Women Dinner Service’ (o serviço de jantar de mulheres famosas, em tradução livre), dos artistas ingleses Vanessa Bell e Duncan Grant, foi redescoberta em 2017 e está em exibição, pela primeira vez, na galeria Piano Nobile, em Londres, na Inglaterra.
As pinturas em cerâmica foram produzidas entre 1932 e 1934 para homenagear mulheres importantes na história. Ficaram conhecidas por testar os limites da fronteira entre arte decorativa e as belas artes e pela provocação ao protagonismo masculino cristalizado nos registros da história da arte.

Bell e Grant foram parte do grupo Bloomsbury, coletivo de artistas e escritores formado na Inglaterra no início do século 20, que desafiava a estrutura patriarcal vitoriana. Após a morte dos artistas e dos primeiros proprietários da coleção, seu paradeiro ficou desconhecido por 30 anos, e a obra foi dada como ‘perdida’ por pesquisadores.

São 48 pratos com retratos de dançarinas, atrizes, escritoras, rainhas. Entre as homenageadas estão a poeta grega Safo, a atriz sueca Greta Garbo e a escritora Virginia Woolf, também integrante do grupo de Bloomsbury e irmã de Vanessa Bell. As outras duas peças são os rostos dos criadores.



Segundo o diretor da galeria Piano Nobile, Matthew Travers, trata-se de um trabalho proto-feminista. ‘Todas as mulheres retratadas fizeram alguma coisa interessante e poderosa, e frequentemente eram escandalosas — os  Bloomsburys diriam libertas — no modo como viveram sua vida privada, e não se conformavam com a estrutura patriarcal em que viviam’, disse ao site Artnet.

O tema da coleção ficou a critério dos artistas, mas ela foi feita sob encomenda dos patronos Kenneth e Jane Clark. O conjunto de pratos sobreviveu às mudanças da família e aos conflitos da Segunda Guerra Mundial, e desapareceu na década de 1980. Somente em 2017, o detentor da coleção — que permanece completa e em perfeito estado de conservação — comunicou à galeria inglesa que as louças estavam sob sua tutela.



O grupo das controvérsias

Os artistas britânicos Vanessa Bell e Duncan Grant estabeleceram uma longa parceria, não só no campo profissional. Em 1914, mudaram-se juntos para uma fazenda em Sussex, com o amante de Grant, o escritor David Garnett.

A atividade rural era uma maneira de o casal fugir do alistamento durante a Primeira Guerra, e a casa rapidamente se tornou sede do grupo Bloomsbury, do qual os três faziam parte.

Os encontros que deram origem ao coletivo começaram a ocorrer em 1905, organizados pelo estudante Thoby Stephen, irmão de Bell e de Virginia Woolf. Com o intuito de discutir literatura, toda semana ele reunia críticos e escritores em sua casa, em Bloomsbury, região central de Londres.

Ao longo do tempo, novos nomes e assuntos foram agregados ao círculo, constituído por uma maioria de jovens abastados, moradores da região e estudantes da universidade de Cambridge. Entre os frequentadores estavam os escritores Leonard Woolf e Edward Morgan Forster, o crítico Clive Bell e o economista John Maynard Keynes.

Não era um grupo artístico detentor de um manifesto, mas uma coletividade que reivindicava liberdade para suas criações e oferecia resistência às convenções sociais vitorianas, especialmente no campo dos relacionamentos (a permissividade sexual foi um dos estigmas que pairaram sobre os membros). O grupo ficou mais conhecido por agregar personalidades não convencionais e ideias controversas do que pelo impacto de sua produção artística.

Os bloomsburys também foram alvo de diversas críticas por representarem uma espécie de clube intelectual da elite britânica, e sua produção artística foi muitas vezes desmerecida, considerada ‘decorativa ou pouco original’, como mostram registros da galeria Tate Modern. Uma crítica no jornal The Mail on Sunday sobre a exposição coletiva realizada na galeria, em 1999, diz: ‘Eles se levavam muito mais a sério do que seu trabalho realmente justificava’.

Apesar das controvérsias, o legado do grupo ainda é estudado e discutido na Inglaterra, e a casa onde moravam Bell, Grant e Garnett foi transformada no museu Charleston. A instituição, dedicada à memória do coletivo, está levantando fundos para transferir ‘The Famous Women Dinner Service’ da galeria à casa em Sussex.
O banquete feminista

A coleção de louças de Vanessa Bell e Duncan Grant antecede o que talvez seja o conjunto de jantar mais emblemático para a afirmação da trajetória das mulheres na história da arte, ‘The Dinner Party’, da artista americana Judy Chicago.

A instalação representa uma mesa de jantar com 39 assentos, e cada um celebra uma mulher invisibilizada pela história. Entre os utensílios dispostos à mesa, estão porcelanas pintadas com desenhos que sugerem o formato de uma vagina. Além das mulheres que têm seu lugar garantido à mesa, outras 999 são homenageadas em inscrições no piso da obra.

A instalação ‘The Dinner Party’, de 1979, criada pela artista americana Judy Chicago


The Dinner Party’ foi criada  no período em que se considera o início da primeira onda de arte feminista — trabalhos produzidos entre as décadas de 1960 e 1970, focados na experiência e na perspectiva femininas, muitas vezes explorando questões do corpo, como a imagem da vagina e o sangue menstrual.


Nessa fase também existe maior atenção de artistas ao bordado, justamente por ser uma atividade considerada feminina. Embora rejeitasse esse tipo de técnica no início da carreira, Chicago trabalha propositalmente com ela na instalação, assim como com a pintura em cerâmica.

O trabalho levou cinco anos para ficar pronto e  contou com a ajuda de centenas de voluntários. Em 1979, em sua primeira exibição no Museu de Arte Moderna de São Francisco, o banquete foi recebido tanto com entusiasmo, por afirmar a trajetória das mulheres na história, quanto pela reação negativa às pinturas ‘supostamente pornográficas’.

Judy Chicago foi pioneira no ensino de arte feminista, fundou um programa voltado para a troca de experiência de mulheres artistas e produziu pesquisas na direção de descortinar a produção de mulheres na arte ocidental.

‘The Dinner Party’ está em exposição permanente no Brooklyn Museum, em Nova York, nos Estados Unidos, e em 2018 reproduções de seus icônicos utensílios passaram a ser comercializadas.





Texto: Laura Capelhuchnik   |   =Nexus



(JA, Abr18)

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