Dupla de artistas
utilizou, em 1932, utensílios domésticos para provocar a estrutura patriarcal
na Inglaterra. Obras ficaram ‘perdidas’ por décadas
Cerâmicas da coleção 'The Famous Women Dinner Service', produzida pelos artistas ingleses Vanessa Bell e Duncan Grant no início da década de 1930 |
A coleção ‘The
Famous Women Dinner Service’ (o serviço de jantar de mulheres famosas, em
tradução livre), dos artistas ingleses Vanessa Bell e Duncan Grant, foi
redescoberta em 2017 e está em exibição, pela primeira vez, na galeria Piano
Nobile, em Londres, na Inglaterra.
As pinturas em
cerâmica foram produzidas entre 1932 e 1934 para homenagear mulheres
importantes na história. Ficaram conhecidas por testar os limites da fronteira
entre arte decorativa e as belas artes e pela provocação ao protagonismo
masculino cristalizado nos registros da história da arte.
Bell e Grant
foram parte do grupo Bloomsbury, coletivo de artistas e escritores formado na
Inglaterra no início do século 20, que desafiava a estrutura patriarcal
vitoriana. Após a morte dos artistas e dos primeiros proprietários da coleção,
seu paradeiro ficou desconhecido por 30 anos, e a obra foi dada como ‘perdida’
por pesquisadores.
São 48 pratos
com retratos de dançarinas, atrizes, escritoras, rainhas. Entre as homenageadas
estão a poeta grega Safo, a atriz sueca Greta Garbo e a escritora Virginia
Woolf, também integrante do grupo de Bloomsbury e irmã de Vanessa Bell. As
outras duas peças são os rostos dos criadores.
Segundo o
diretor da galeria Piano Nobile, Matthew Travers, trata-se de um trabalho
proto-feminista. ‘Todas as mulheres retratadas fizeram alguma coisa
interessante e poderosa, e frequentemente eram escandalosas — os Bloomsburys diriam libertas — no modo como
viveram sua vida privada, e não se conformavam com a estrutura patriarcal em
que viviam’, disse ao site Artnet.
O tema da
coleção ficou a critério dos artistas, mas ela foi feita sob encomenda dos
patronos Kenneth e Jane Clark. O conjunto de pratos sobreviveu às mudanças da
família e aos conflitos da Segunda Guerra Mundial, e desapareceu na década de
1980. Somente em 2017, o detentor da coleção — que permanece completa e em
perfeito estado de conservação — comunicou à galeria inglesa que as louças
estavam sob sua tutela.
O grupo das
controvérsias
Os artistas
britânicos Vanessa Bell e Duncan Grant estabeleceram uma longa parceria, não só
no campo profissional. Em 1914, mudaram-se juntos para uma fazenda em Sussex,
com o amante de Grant, o escritor David Garnett.
A atividade
rural era uma maneira de o casal fugir do alistamento durante a Primeira
Guerra, e a casa rapidamente se tornou sede do grupo Bloomsbury, do qual os
três faziam parte.
Os encontros
que deram origem ao coletivo começaram a ocorrer em 1905, organizados pelo
estudante Thoby Stephen, irmão de Bell e de Virginia Woolf. Com o intuito de
discutir literatura, toda semana ele reunia críticos e escritores em sua casa,
em Bloomsbury, região central de Londres.
Ao longo do
tempo, novos nomes e assuntos foram agregados ao círculo, constituído por uma
maioria de jovens abastados, moradores da região e estudantes da universidade
de Cambridge. Entre os frequentadores estavam os escritores Leonard Woolf e
Edward Morgan Forster, o crítico Clive Bell e o economista John Maynard Keynes.
Não era um
grupo artístico detentor de um manifesto, mas uma coletividade que reivindicava
liberdade para suas criações e oferecia resistência às convenções sociais
vitorianas, especialmente no campo dos relacionamentos (a permissividade sexual
foi um dos estigmas que pairaram sobre os membros). O grupo ficou mais
conhecido por agregar personalidades não convencionais e ideias controversas do
que pelo impacto de sua produção artística.
Os bloomsburys
também foram alvo de diversas críticas por representarem uma espécie de clube
intelectual da elite britânica, e sua produção artística foi muitas vezes
desmerecida, considerada ‘decorativa ou pouco original’, como mostram registros
da galeria Tate Modern. Uma crítica no jornal The Mail on Sunday sobre a
exposição coletiva realizada na galeria, em 1999, diz: ‘Eles se levavam muito
mais a sério do que seu trabalho realmente justificava’.
Apesar das
controvérsias, o legado do grupo ainda é estudado e discutido na Inglaterra, e
a casa onde moravam Bell, Grant e Garnett foi transformada no museu Charleston.
A instituição, dedicada à memória do coletivo, está levantando fundos para
transferir ‘The Famous Women Dinner Service’ da galeria à casa em Sussex.
O banquete feminista
A coleção de
louças de Vanessa Bell e Duncan Grant antecede o que talvez seja o conjunto de
jantar mais emblemático para a afirmação da trajetória das mulheres na história
da arte, ‘The Dinner Party’, da artista americana Judy Chicago.
A instalação
representa uma mesa de jantar com 39 assentos, e cada um celebra uma mulher
invisibilizada pela história. Entre os utensílios dispostos à mesa, estão
porcelanas pintadas com desenhos que sugerem o formato de uma vagina. Além das
mulheres que têm seu lugar garantido à mesa, outras 999 são homenageadas em
inscrições no piso da obra.
A instalação ‘The Dinner Party’, de 1979, criada pela artista americana Judy Chicago |
‘The Dinner
Party’ foi criada no período em que se
considera o início da primeira onda de arte feminista — trabalhos produzidos
entre as décadas de 1960 e 1970, focados na experiência e na perspectiva
femininas, muitas vezes explorando questões do corpo, como a imagem da vagina e
o sangue menstrual.
Nessa fase
também existe maior atenção de artistas ao bordado, justamente por ser uma
atividade considerada feminina. Embora rejeitasse esse tipo de técnica no
início da carreira, Chicago trabalha propositalmente com ela na instalação,
assim como com a pintura em cerâmica.
O trabalho
levou cinco anos para ficar pronto e
contou com a ajuda de centenas de voluntários. Em 1979, em sua primeira
exibição no Museu de Arte Moderna de São Francisco, o banquete foi recebido
tanto com entusiasmo, por afirmar a trajetória das mulheres na história, quanto
pela reação negativa às pinturas ‘supostamente pornográficas’.
Judy Chicago
foi pioneira no ensino de arte feminista, fundou um programa voltado para a
troca de experiência de mulheres artistas e produziu pesquisas na direção de
descortinar a produção de mulheres na arte ocidental.
‘The Dinner
Party’ está em exposição permanente no Brooklyn Museum, em Nova York, nos
Estados Unidos, e em 2018 reproduções de seus icônicos utensílios passaram a
ser comercializadas.
Texto:
Laura Capelhuchnik | =Nexus
(JA, Abr18)