Sedutor Irresistível | Autorretrato do pintor. Morreu aos 37 anos, após noite de sexo, diz a lenda |
Um mês após sua volta, a
estupenda exposição se torna símbolo do retorno da vida cultural do país — um
processo lento e excruciante, mas necessário
Na primavera de 1520, Roma parou
para acompanhar o funeral do pintor Rafael Sanzio. Belo, genial, e extremamente
produtivo, o jovem mestre era a personificação do frescor imortal da arte do Renascimento.
Mas, aos 37 anos, perdeu a vida em razão de uma repentina febre — que, de acordo
com o relato clássico do biógrafo Giorgio Vasari, teria sido causada por uma
noite de sexo com sua amante.
A pedido do pintor, ele foi
sepultado no Panteão, templo que emana a glória da Roma Antiga. É pelo
final trágico de sua vida que se inicia a estupenda mostra dos 500 anos da
morte do artista. em cartaz na Scuderie
del Quirinale, em Roma. Ironicamente, a celebração de Rafael foi ameaçada por
uma nova febre — causada não por amor em excesso, mas pela ameaça do
coronavírus. Três meses após seu cancelamento
dramático, no furacão da pandemia, a exposição tornou-se o símbolo do lento e
gradual processo de reabertura cultural da Itália.
Ao lado de Leonardo da Vinci
e Michelangelo, Rafael forma a santíssima trindade do Renascimento italiano.
Como a França roubou a cena com a festejada mostra dos 500 anos de
Leonardo no Louvre, no fim de 2019, a Itália esmerou-se nas comemorações de Rafael. Por
uma única semana de março, as ricas tapeçarias concebidas pelo artista
retornaram às paredes da Capela Sistina, no Vaticano. Mas isso era só aperitivo
para a maior retrospectiva jamais vista de sua obra, com 27 pinturas e um
total de 200 itens, cujo seguro chega a 4,4 bilhões de
dólares.
Cerca de 70000 ingressos
foram vendidos antecipadamente, e a pressão era tão grande que o comitê
curatorial da Galleria Uffizi, em Florença, renunciou por não concordar com o
envio de um magnífico, porém frágil, retrato do Papa Leão X —protetor do
pintor.
Inaugurada em 5 de março, a
exposição recebeu 6000 visitantes nos três dias em que ficou aberta ao
público — e então foi fechada em virtude da Covid-19. Sua
reabertura se reveste, portanto, de significado especial.
Em comunicado, o presidente
Sergio Mattarella usou o pintor como inspiração na crise: ‘O espírito
renascentista que tornou a arte de Rafael sem paralelo pode atrair energia para
o recomeço da Itália e da Europa’.
A exposição foi retomada em 2 de junho, com
os mais de 900 ingressos esgotados para aquele dia — no calendário
original, a data marcaria seu encerramento, mas ela foi estendida até 30 de agosto.
Com o interesse do público, a
organização logo esticou o horário de visitação, chegando até 1 da manhã às
sextas e sábados e ampliando o limite de visitantes para cerca de 1500 pessoas por
dia, número que ainda fica longe dos 3000 que a Scuderie recebia em eventos anteriores.
A entrada do local não
apresenta longas filas de turistas, comuns de encontrar em museus de Roma
durante o verão no Hemisfério Norte. Em vez disso, pequenas aglomerações de
italianos tentam se esconder do sol, enquanto esperam o horário reservado para
a mostra.
Nas ruas da cidade, o
movimento de pessoas já é grande, e o uso de máscaras é quase nulo em espaços
abertos. As vias dos boêmios bairros de Trastevere e San Lorenzo começaram a se
encher de jovens nas noites de fim de semana. No entanto, ainda são poucos os
turistas em frente aos cartões-postais da capital, como a Fontana di Trevi ou o
Coliseu.
A Itália voltou a receber
turistas da União Europeia no dia 3 de junho e deve reabrir as fronteiras para outras
nações a partir de 1º de julho, mas apenas para países considerados
suficientemente seguros (não é o caso do
Brasil).
Controle Total | A volta da Galleria Borghese - máscaras e tempo limitado |
Até o meio de junho, os
italianos já registravam a reabertura dos principais museus do país, como o
Museu Egípcio de Turim, o Palazzo Ducale de Veneza, e a extraordinária Galleria
Borghese, em Roma (na vizinha França, o
Louvre deverá reabrir nesta segunda-feira, 6, com esquema especial para evitar
muvuca diante da Mona Lisa). A visitação
continua escassa em muitos deles. Nos Museus Capitolinos é possível comprar
entradas para o mesmo dia pelo site.
Os Museus Vaticanos
reabriram as portas em 1º de junho com um público de 1600 pessoas. A
instituição chegava a receber mais de 10000
visitantes por dia em anos anteriores. ‘Os
números são baixos em relação a 2019, e não esperamos receber mais de 15000 pessoas
por semana’, afirmou o vice-diretor de controle de gestão e administração dos
museus, Monsenhor Paolo Nicolini. A oportunidade de contemplar a Capela Sistina,
sem o tumulto costumeiro, ainda não tem previsão para acabar. Nicolini garante
que as medidas adotadas não serão afrouxadas: ‘Se respeitarmos as regras de
segurança, nossa esperança de sair dessa situação poderá se tornar certeza’.
Os museus, antes dos cinemas
ou shows, viraram pontas de lança na tarefa de tatear, até onde é possível ,o
recomeço da vida cultural. Nesse contexto, a visita à exposição de Rafael é uma
experiência controladíssima. A cada cinco minutos, um grupo de até oito pessoas
é liberado para entrar no recinto. Primeiro, é necessário passar pelos
procedimentos convencionais de prevenção, que incluem usar a máscara de
proteção facial, passar álcool em gel nas mãos, e ter a temperatura conferida.
Privilégio | A Capela Sistina após a reabertura - em vez da muvuca, calmaria para poucos felizardos |
No trajeto, uma funcionária
acompanha o grupo, dando instruções para manter distância de no mínimo 1 metro
entre as pessoas — o que se torna uma missão difícil quando todos se interessam
pelo mesmo quadro, ou querem ler informações sobre as obras nas paredes.
No calor do verão, um ou
outro visitante tenta, ainda, retirar a máscara durante o percurso, mas logo
leva um pito. Para que se evite a formação de aglomerações, o tempo máximo de
permanência por sala é de cinco minutos. Uma campainha soa, e todos são
convidados a passar para o cômodo seguinte, sem a possibilidade de ‘repetir’ ou
pular qualquer espaço. É um renascimento limitado mas, ainda assim, um
renascimento — tudo o que o mundo deseja.
Fonte: Lucas Almeida,
de Roma | Revista Veja
(JA, Jul20)