segunda-feira, 6 de julho de 2020

Reabertura da mostra de Rafael marca o novo renascimento italiano



Sedutor Irresistível  |  Autorretrato do pintor. Morreu aos 37 anos, após noite de sexo, diz a lenda

Um mês após sua volta, a estupenda exposição se torna símbolo do retorno da vida cultural do país — um processo lento e excruciante, mas necessário
Na primavera de 1520, Roma parou para acompanhar o funeral do pintor Rafael Sanzio. Belo, genial, e extremamente produtivo, o jovem mestre era a personificação do frescor imortal da arte do Renascimento. Mas, aos 37 anos, perdeu a vida em razão de uma repentina febre — que, de acordo com o relato clássico do biógrafo Giorgio Vasari, teria sido causada por uma noite de sexo com sua amante.   

A pedido do pintor, ele foi sepultado no Panteão, templo que emana a glória da Roma Antiga. É pelo final trágico de sua vida que se inicia a estupenda mostra dos 500 anos da morte do artista. em cartaz  na Scuderie del Quirinale, em Roma. Ironicamente, a celebração de Rafael foi ameaçada por uma nova febre — causada não por amor em excesso, mas pela ameaça do coronavírus. Três meses após seu  cancelamento dramático, no furacão da pandemia, a exposição tornou-se o símbolo do lento e gradual processo de reabertura cultural da Itália.

Ao lado de Leonardo da Vinci e Michelangelo, Rafael forma a santíssima trindade do Renascimento italiano. Como a França roubou a cena com a festejada mostra dos 500 anos de Leonardo no Louvre, no fim de 2019, a Itália esmerou-se nas comemorações de Rafael. Por uma única semana de março, as ricas tapeçarias concebidas pelo artista retornaram às paredes da Capela Sistina, no Vaticano. Mas isso era só aperitivo para a maior retrospectiva jamais vista de sua obra, com 27 pinturas e um total de 200 itens, cujo seguro chega a 4,4 bilhões de dólares.

Cerca de 70000 ingressos foram vendidos antecipadamente, e a pressão era tão grande que o comitê curatorial da Galleria Uffizi, em Florença, renunciou por não concordar com o envio de um magnífico, porém frágil, retrato do Papa Leão X —protetor do pintor.

Inaugurada em 5 de março, a exposição recebeu 6000 visitantes nos três dias em que ficou aberta ao público — e então foi fechada em virtude da Covid-19. Sua reabertura se reveste, portanto, de significado especial.

Em comunicado, o presidente Sergio Mattarella usou o pintor como inspiração na crise: ‘O espírito renascentista que tornou a arte de Rafael sem paralelo pode atrair energia para o recomeço da Itália e da Europa’.

A exposição foi retomada em 2 de junho, com os mais de 900 ingressos esgotados para aquele dia — no calendário original, a data marcaria seu encerramento, mas ela foi estendida até 30 de agosto.

Com o interesse do público, a organização logo esticou o horário de visitação, chegando até 1 da manhã às sextas e sábados e ampliando o limite de visitantes para cerca de 1500 pessoas por dia, número que ainda fica longe dos 3000 que a Scuderie recebia em eventos anteriores.

A entrada do local não apresenta longas filas de turistas, comuns de encontrar em museus de Roma durante o verão no Hemisfério Norte. Em vez disso, pequenas aglomerações de italianos tentam se esconder do sol, enquanto esperam o horário reservado para a mostra.

Nas ruas da cidade, o movimento de pessoas já é grande, e o uso de máscaras é quase nulo em espaços abertos. As vias dos boêmios bairros de Trastevere e San Lorenzo começaram a se encher de jovens nas noites de fim de semana. No entanto, ainda são poucos os turistas em frente aos cartões-postais da capital, como a Fontana di Trevi ou o Coliseu.

A Itália voltou a receber turistas da União Europeia no dia 3 de junho e deve reabrir as fronteiras para outras nações a partir de 1º de julho, mas apenas para países considerados suficientemente seguros (não é o caso do Brasil).


Controle Total  | A volta da Galleria Borghese - máscaras e tempo limitado

Até o meio de junho, os italianos já registravam a reabertura dos principais museus do país, como o Museu Egípcio de Turim, o Palazzo Ducale de Veneza, e a extraordinária Galleria Borghese, em Roma (na vizinha França, o Louvre deverá reabrir nesta segunda-feira, 6, com esquema especial para evitar muvuca diante da Mona Lisa). A visitação continua escassa em muitos deles. Nos Museus Capitolinos é possível comprar entradas para o mesmo dia pelo site.

Os Museus Vaticanos reabriram as portas em 1º de junho com um público de 1600 pessoas. A instituição chegava a receber mais de 10000 visitantes por dia em anos anteriores. ‘Os números são baixos em relação a 2019, e não esperamos receber mais de 15000 pessoas por semana’, afirmou o vice-­diretor de controle de gestão e administração dos museus, Monsenhor Paolo Nicolini. A oportunidade de contemplar a Capela Sistina, sem o tumulto costumeiro, ainda não tem previsão para acabar. Nicolini garante que as medidas adotadas não serão afrouxadas: ‘Se respeitarmos as regras de segurança, nossa esperança de sair dessa situação poderá se tornar certeza’.

Os museus, antes dos cinemas ou shows, viraram pontas de lança na tarefa de tatear, até onde é possível ,o recomeço da vida cultural. Nesse contexto, a visita à exposição de Rafael é uma experiência controladíssima. A cada cinco minutos, um grupo de até oito pessoas é liberado para entrar no recinto. Primeiro, é necessário passar pelos procedimentos convencionais de prevenção, que incluem usar a máscara de proteção facial, passar álcool em gel nas mãos, e ter a temperatura conferida.


Privilégio | A Capela Sistina após a reabertura -  em vez da muvuca, calmaria para poucos felizardos

No trajeto, uma funcionária acompanha o grupo, dando instruções para manter distância de no mínimo 1 metro entre as pessoas — o que se torna uma missão difícil quando todos se interessam pelo mesmo quadro, ou querem ler informações sobre as obras nas paredes.

No calor do verão, um ou outro visitante tenta, ainda, retirar a máscara durante o percurso, mas logo leva um pito. Para que se evite a formação de aglomerações, o tempo máximo de permanência por sala é de cinco minutos. Uma campainha soa, e todos são convidados a passar para o cômodo seguinte, sem a possibilidade de ‘repetir’ ou pular qualquer espaço. É um renascimento limitado mas, ainda assim, um renascimento — tudo o que o mundo deseja.




Fonte:  Lucas Almeida, de Roma |   Revista Veja



(JA, Jul20)

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Se a ciência é fundamental, a cultura é vital


Produzimos arte desde o início da nossa história, e precisamos dela para unir e mover a sociedade


Nos últimos meses, o mundo procura na ciência respostas para mitigar a propagação e os resultados devastadores de uma infecção viral. A ciência já nos trouxe muito e, em muito pouco tempo nos ensinou que:

o    O vírus é inativado por água e sabão, ou álcool.
o    Se propaga por contato próximo e pode ser controlado por distanciamento físico entre pessoas.
o    O vírus afeta o corpo humano, e trouxe novas ideias de como ter mais sucesso no tratamento de infecções graves.

Graças ao esforço muito concentrado de cientistas em todo o mundo, logo virão mais soluções, incluindo as tão esperadas vacinas, armas extremamente eficazes para frear agentes infecciosos. Se há algo que eu tenho esperança que aconteça no mundo pós-pandemia é que a percepção da importância fundamental da ciência se intensifique, e permaneça, como a memória imunológica permanece após uma infecção ou vacina.

Mas se a ciência é fundamental, não é só com ela que iremos sobreviver e reconstruir o mundo pós-pandemia. Precisamos de mais do que o progresso de conhecimento que a ciência traz. Precisamos de mecanismos que tragam a esperança, e coordenem a nossa atuação em sociedade. Precisamos das artes e da cultura, atividades que nós humanos praticamos desde o início de nossa história, e que são essenciais para a vida em sociedade. Trata-se de uma forma de comunicação que transcende a simples palavra, com uma capacidade ímpar para propagar ideias e emoções, inspirar ações, e unir pessoas diferentes em torno de objetivos conjuntos construtivos. E é exatamente isso que precisamos para progredir como sociedade — ações conjuntas e construtivas.

EXISTE A OPORTUNIDADE DE PROMOVER CRESCIMENTO DESTACADO NO MUNDO PÓS-PANDEMIA, UM VERDADEIRO RENASCIMENTO CONJUNTO DA CIÊNCIA E ARTES

Sou suspeita para falar de cultura, porque ,além de ser cientista, sou violinista amadora, e a música clássica é parte integrante de minha vida, desde a infância.

Toco em um grupo, a Orquestra de Câmara Miller, que reúne musicistas profissionais e amadores voluntários, que tocam juntos pelo simples prazer de fazer música. Somos de diferentes culturas, idades, pensamentos, profissões, e realidades. Nunca nos conheceríamos se não fôssemos unidos pela música. E, apesar disso, juntos, desvendamos tarefas difíceis e, unidos, produzimos momentos de magia musical. As artes fazem exatamente isso: juntam e inspiram as pessoas nos seus interesses comuns, fazendo pontes entre suas diferenças, e construindo aquilo que nenhuma delas poderia fazer sozinha.

Embora a necessidade de isolamento físico no momento tenha paralisado as atividades típicas de grupos musicais como o nosso, não nos impediu de trocar ideias, músicas, risadas, planos, e sonhos para o futuro. De fato, musicistas profissionais têm se mantido extremamente ativos na sua missão cultural, dando continuidade à sua função inspiradora e essencial, com uma criatividade que surge das limitações impostas pelo momento.

Presenciamos uma proliferação de apresentações musicais intimistas, em casa, além de vídeos com montagens de interpretações de muitos profissionais, gravadas separadamente, unidas pela tecnologia e vontade de construir juntos. Certamente, pelo menos uma dessas vídeo-montagens lhe fez sorrir em algum momento da quarentena.




Há também as produções individuais, que são emblemáticas do momento e isolamento, como a do violinista Emmanuele Baldini sozinho na Sala São Paulo vazia, tocando a Ciaccona de J. S. Bach em honra à maestrina Naomi Munakata, uma das mais de 60 mil vidas brasileiras perdidas para o novo coronavírus. É uma peça que já completa 300 anos, e ainda, incrivelmente, reflete esse momento de maneira ímpar. Uma apresentação no isolamento como essa traz, ao mesmo tempo, incômodo, reflexão, vontade de promover mudança, e também esperança. Novamente, a arte traz mais do que palavras podem explicar.

É exatamente por entender a importância da cultura, que os governos de países que se tornaram exemplos no lidar com a crise atual, como Alemanha e Nova Zelândia, já anunciaram programas de apoio específicos para as artes dentro de seus planos de recuperação. Esses países têm a visão de que existe a oportunidade de promover crescimento destacado no mundo pós-pandemia, um verdadeiro renascimento conjunto da ciência e artes, trazendo melhor qualidade de vida para todos.

Já no Brasil, que nem ao menos tem plano para lidar com a pandemia (ou sequer um ministro da Saúde titular), não podemos contar com um auxílio coordenado governamental para a cultura, embora nunca se deva deixar de cobrar, com veemência, essas ações.

Façamos então o esforço pessoal e conjunto de procurar apoiar artistas e as muitas organizações culturais existentes. É hora de multiplicar a cultura de apoio ao meio artístico, inclusive com a possibilidade de se beneficiar com deduções de impostos. Precisamos das artes como mecanismo entrelaçador de nossa sociedade. Temos uma cultura rica e diversa, e chegou a hora de zelar por ela. E se ainda não está convencido da importância fundamental desse setor, basta imaginar como seria a sua quarentena sem livros, vídeos, ou música.






Fonte: Alicia Kowaltowski, médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo  |  Nexo


(JA, Jun20)