quarta-feira, 31 de julho de 2024

Surrealismo

Há cem anos o surrealismo rompeu com lógica e mudou visão sobre o mundo

André Breton publicou em 1924 manifesto que lançou o movimento

 

 


Há cem anos o movimento surrealista, impulsionado pelas descobertas de Freud sobre o inconsciente, estremecia a ideia de racionalidade que embasava a arte, a organização social, e o nosso próprio entendimento da vida. O manifesto de André Breton elevava o território livre do sonho ao centro da criação, reverberando na obra dos mais variados artistas pelo mundo.

Em uma carta a André Breton, datada de dezembro de 1932, na qual Freud tenta esclarecer a polêmica em torno de quem teria sido referido como o primeiro autor a tratar da simbologia dos sonhos, se Volkelt ou Scherner, o ‘pai da psicanálise’ resolve deixar bem claro o distanciamento de seu trabalho da aplicação na arte, defendida pelos surrealistas.

‘Caro Senhor, agradeço-lhe sinceramente por sua carta tão detalhada e amável. Você poderia ter respondido mais brevemente: 'Tanto barulho...'. Mas teve a amabilidade de considerar minha susceptibilidade particular sobre este ponto, que é, sem dúvida, uma forma de reação contra a ambição desmedida da infância, felizmente superada. Não poderia levar a mal nenhuma de suas outras observações críticas, embora nelas eu possa encontrar vários motivos de polêmica. Assim, por exemplo: acredito que, se não prossegui a análise dos meus próprios sonhos, tão longe quanto a dos outros, a causa raramente é a timidez em relação ao sexual. O fato é, muito mais frequentemente do que eu teria que descobrir regularmente, o fundo secreto de toda a série de sonhos tem a ver com meus relacionamentos com meu pai, que havia falecido recentemente. Pretendo que eu tinha o direito de estabelecer um limite à inevitável exibição (assim como a uma tendência infantil superada). Agora uma confissão, que você deve acolher com tolerância! Embora receba tantos testemunhos de interesse que você e seus amigos têm pelas minhas pesquisas, eu mesmo não sou capaz de entender claramente o que é e o que quer o surrealismo. Talvez eu não seja de todo feito para compreendê-lo, eu que estou tão distante da arte. Seu cordialmente dedicado, Freud’.

Oito anos antes dessa carta, Breton assinava um manifesto, que completa cem anos, lançando oficialmente o movimento do surrealismo. Nele, faziam-se invectivas contra o racionalismo e o ‘império da lógica’, e se agradecia enfaticamente às descobertas de Freud, uma vez que por meio delas, segundo Breton, desenhava-se ‘afinal uma corrente de opinião, graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe suas investigações, pois que autorizado a não ter só em conta as realidades sumárias’.

Essas descobertas afetaram os artistas do grupo de formas diferentes, mas apontavam para um denominador comum: o desejo de se liberarem do compromisso com temas ou gêneros predeterminados por uma tradição artística e literária, cujos lastros eram fortalecidos na modernidade graças às ações de divulgação da imprensa, e de um mercado editorial emergente, que fizeram aumentar a circulação e o interesse pelas obras ‘clássicas’.

O nome surrealismo, escolhido por Breton e Philippe Soupault foi uma homenagem a Guillaume Apollinaire, a partir da contração da palavra supernaturalismo, tomada, por sua vez, de empréstimo da dedicatória de Gérard de Nerval para seu livro ‘Les Filles du Feu’ (1854).

Em especial, a violência, a sexualidade e os desejos reprimidos, temas tratados por uma sintaxe enérgica, mais do que bem acabada, capaz de fazer os significantes do texto serem mais importantes do que os significados, beirando o nonsense, já estavam presentes na literatura francesa, antes que o método psicanalítico os confirmasse como conteúdos latentes, ou seja, aqueles que, estando encobertos pelas normas do comportamento em sociedade, são sempre mais importantes e influentes em nossa vida do que os que se dão por manifesto.

A obra do Conde de Lautréamont (pseudônimo de Isidore Lucien Ducasse) é um exemplo disso. Os seus ‘Cantos de Maldoror’ (1868) são uma espécie de rapsódia perversa que destrói deliberadamente a prosa francesa com erros ortográficos propositais, plágios explícitos de outros autores, e repetição encanecida de convenções literárias antiquadas. É famosa a sua frase (que se tornou quase um mote para a composição de alguma obra surrealista) ‘belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de dissecação de uma máquina de costura e um guarda-chuva’.

Breton ensinou métodos semelhantes para a composição surrealista, do ‘primeiro e último jato’, com a escrita rápida, sem muito pensar, que espelhava o método clínico de Freud, de deixar o paciente falar à vontade, sobre qualquer coisa que lhe viesse à mente, por mais insignificante que fosse.

Tal como propôs no manifesto de 1924, para Breton o verdadeiro valor da imagem reside naquilo que se arraiga no inconsciente, no território livre dos sonhos. ‘Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em captá-las primeiro para submetê-las depois, se for o caso, ao controle de nossa razão. Os próprios analistas só têm a ganhar com isso’. 


Fotografia do grupo surrealista realizada por Man Ray em torno de 1930; na fila de baixo, da esq. para dir., Tristan Tzara, André Breton, Salvador Dalí, Max Ernst e o próprio Man Ray; na fila do alto, Paul Éluard, Jean.Arp, Yves Tanguy e René Crével

Nas artes plásticas, esses métodos nunca fizeram muito sentido, e os artistas tiveram que usar drogas psicotrópicas ou ingerir grandes doses de álcool (em geral usaram ambos) para experimentar estados alternativos de consciência que produzissem neles alucinações, ou imagens, nunca antes figuradas por ninguém sobre uma tela.

Entretanto, só conseguiam pintar efetivamente após o porre, ou terem cessado os efeitos das drogas. É famosa a declaração a esse respeito de Max Ernst, já idoso, vivendo em sua confortável casa no Arizona (NA), com a esposa, a também artista surrealista Dorothea Tanning. A narrativa, no entanto (que é parte da história do movimento), é a de que faziam tudo sob os efeitos daqueles recursos exteriores, capazes de induzi-los a liberar, de modo convulsivo, as forças do inconsciente.

 

‘A Voz dos Ventos’, 1931, obra de René Magritte

Um ano antes da carta de Freud a Breton, em 1931, Salvador Dalí e René Magritte produziram obras que se tornaram verdadeiras cartas-emblemas das proposições do surrealismo na arte visual, mas que foram feitas seguindo rigorosamente as técnicas tradicionais da pintura histórica: ‘A Voz dos Ventos’ (La Voix des Airs), de Magritte, e ‘A Persistência da Memória’ (La Persistencia de la Memoria), de Dalí.

A pintura de Dalí também se insere dentro de uma tradição histórica —e para ele são caros os exemplos de Rafael, Vermeer, Velázquez e Zurbarán. O cinema também o interessou vivamente, sendo famosa a sua parceria com Luis Buñuel no antológico ‘Um Cão Andaluz’, de 1929, mesmo ano em que conheceu Gala Éluard (então esposa de Paul Éluard), por quem se apaixonou, e com quem se casou tempos depois.

Breton, contudo, quis bani-lo do movimento devido à simpatia e adesão de Dalí ao governo de Franco e ao fascismo, mas também à forma escandalosa com que se comportava, chamando mais a atenção para si do que para a sua atividade, como um artista engajado com as propostas do grupo. 


‘A Persistência da Memória’, de 1931, do pintor espanhol Salvador Dalí

Todavia, foi justamente esse exibicionismo (além de seu posicionamento político) que atraiu o interesse de Walt Disney e de Hollywood. Dalí e Disney idealizaram a animação ‘Destino’ (sobre a personagem mitológica Chronos), na década de 1940 (o animador John Hench e o artista trabalharam no storyboard entre 1945 e 1946), mas ela só viria a ser produzida pelo estúdio em 2003, com recursos de computação gráfica.

A pintura de Magritte também influenciou o cinema. Seu quadro ‘O Império das Luzes’ (L'Empire Des Lumières), pintado em 1961, para a amiga Anne-Marie Gillion Crowet, serviu de referência para o filme ‘O Exorcista’ (1973), de William Friedkin. 


                                   ‘O Império das Luzes’, 1961, de René Magritte 

Trata-se da vista noturna de uma casa, a certa distância, com silhueta, telhados e árvores à volta, pouco iluminados pela tímida luz de um poste, enquanto o céu, azul claro com nuvens, é um indicativo de uma manhã plenamente ensolarada. É como se dois tempos diferentes, dia e noite, fossem representados justapostos, dotando uma cena banal de mistério e profunda solidão.

O preciosismo nos detalhes, tentando reproduzir algumas das técnicas da pintura flamenga e italiana dos séculos 15 e 16, interessou a outros artistas que também flertaram com o movimento, como Giorgio de Chirico e seu irmão Alberto Savínio (Andrea de Chirico), este último famoso pelos retratos portentosos de mulheres reclinadas em divãs com cabeças de pássaros.

Mulheres reais também tiveram papéis muito importantes no surrealismo europeu e latino-americano. A começar por Leonora Carrington, artista homenageada na Bienal de Veneza de 2022, com curadoria de Cecília Alemani.

Carrington declarou, no começo dos anos 2000, já quase no final da vida, como via os surrealistas: ‘Eram um grupo essencialmente de homens, que tratavam as mulheres como musas. Isso era bastante humilhante. Por isso, não quero que me chamem de musa de nada nem de ninguém. Jamais me considerei uma mulher-criança, como André Breton queria ver as mulheres. Nunca quis que me entendessem assim, nem tampouco ser como os outros. Eu caí no surrealismo porque sim. Nunca perguntei se podia entrar’.

A artista foi noiva de Max Ernst, até ele ser aprisionado pelos nazistas em Paris. Ernst fugiu da Europa, casando-se, em 1941, com a colecionadora Peggy Guggenheim, e jamais enviou a Carrington notícias de seu paradeiro. A pintora teve uma crise de depressão, foi internada em asilo na Espanha por algum tempo e, logo depois, migrou para o México, mantendo uma amizade estreita com a também pintora surrealista Remedios Varo.

Em território americano, o surrealismo grassou na produção de Rufino Tamayo, Wifredo Lam, Roberto Matta, Wolfgang Paalen. No Brasil, houve uma influência decisiva do surrealismo francês nas produções de Ismael Nery, Murilo Mendes e Jorge de Lima (que produziu fotocolagens em diálogo direto com Max Ernst, Alberto da Veiga Guignard e Walter Lewy). A partir de 1928, nota-se a presença do movimento nas sínteses da pintura da fase antropofágica de Tarsila do Amaral, entre outros.

Em aspectos e intensidades diferentes, o surrealismo latino-americano reverberou as questões de identidade nacional, e do papel sociopolítico dos artistas na construção das nações relativamente novas em relação ao longo processo de independência da exploração colonialista perpetrado pelas metrópoles europeias.

Mas, talvez, a presença mais significativa a adotar as proposições surrealistas de uma conotação político-social, vista aos olhos de hoje como progressista, tenha sido a mexicana Frida Kahlo. Breton se interessou prontamente pelo seu trabalho, chegando a organizar a sua primeira exposição individual, em Nova York, em 1938.

Depois que Frida passou por diversas cirurgias em decorrência de um acidente grave, em 1925, (teve uma fratura pélvica, perfurações no abdômen e no útero, três fraturas na coluna vertebral, e o pé direito esmagado), além das diversas traições sofridas durante o casamento com o também pintor Diego Rivera, sua arte acolheu com sensibilidade e magia as imagens das inúmeras reconstituições de si, atada, remendada, como se o seu corpo fosse o território de experimentação de uma obra de arte, qualquer que seja a denominação que se dê a ela.

Frida disse certa vez: ‘Pensavam que eu era uma surrealista, mas eu não era. Nunca pintei sonhos. Pintava a minha própria realidade’.

De fato, às vezes, a vida pode ser muito surpreendente, e mais surreal do que a arte possa, sequer, vir a sonhar.

 


Fonte: Luiz Armando Bagolin, Professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP | FSP

 

(JA, Jul24)