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sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Tarsila reforça escalada no mercado de arte com esboços beirando o R$ 1 milhão

 Enquanto seus desenhos custam a partir de R$ 40 mil, tela de sua fase áurea foi posta à venda por R$ 38 milhões em feira

 

Autorretrato de Tarsila do Amaral de 1923, também conhecido como 'Manteau Rouge'
 

Havaianas, imãs de geladeira, cadernos e até filme para crianças. Tarsila do Amaral está em todas. Pop e a preços cada vez mais estratosféricos, desde que o MoMA de Nova York comprou sua tela ‘A Lua’ por uma cifra próxima dos US$ 20 milhões, no ano passado.

‘Idílio’, pintura com as cores fortes e os traços curvos característicos da modernista brasileira, foi posta à venda por US$ 7 milhões, ou cerca de R$ 38 milhões, na edição nova-iorquina da tradicional feira de arte Tefaf, realizada na semana passada.

 

‘A Negra’, 1923
 

Neste sábado (14), em um museu de Itu, no interior de São Paulo, será inaugurada uma exposição com 200 de seus desenhos, cada um podendo valer de R$ 40 mil a R$ 1 milhão, caso de um estudo de ‘A Negra’, obra de 1923, a primeira no processo de seu reconhecimento internacional.

A coleção reúne desenhos com estudos e anotações para suas futuras obras, feitos entre os anos 1910 e 1940. Inclui, portanto, seu período áureo, de 1923 a 1933, quando, além de ‘A Negra’, pintou ‘Abaporu’, ‘A Lua’, ambas de 1928, e ‘Operários’, de 1933. Foi recém-adquirida pelo artista plástico, empresário e colecionador Marcos Amaro, 36, que investiu mais de R$ 200 milhões, incluindo essa coleção, no museu Fama (Fábrica de Artes Marcos Amaro), em que acontecerá a exposição.

Os desenhos haviam sido vendidos por um marchand em 1970 ao empresário Oscar Fakhoury, que os manteve guardados, sem acesso ao público e a pesquisadores. Com a sua morte, sua viúva negociou a venda a Amaro, através da galeria Almeida & Dale, segundo o colecionador. ‘Eu já havia flertado com várias obras da Tarsila, mas as negociações não avançaram. Quando soube desses desenhos, fiquei apaixonado pela ideia de adquirir um conjunto tão representativo do percurso da artista’, diz Amaro.

Após a compra, o colecionador achou que seria preciso um complemento na trajetória da modernista. Por meio de um marchand, adquiriu mais dois desenhos da fase antropofágica de Tarsila —a mais conhecida do público, marcada por ‘Abaporu’—, e outro galerista o levou a um exemplar do período no qual a pintora esteve na União Soviética, quando se casou com o psiquiatra, crítico de arte e comunista Osório César e desenvolveu suas obras de viés político, cujo grande exemplar é ‘Operários’.

 

Operários
 

Amaro, apesar de não falar sobre o valor que pagou por esses três desenhos e pela coleção, dá parâmetros: ‘No mercado, os desenhos menos representativos da Tarsila valem entre R$ 40 mil e R$ 50 mil. E um estudo de ‘A Negra’ [como o que faz parte da coleção] foi vendido por quase R$ 1 milhão. Apesar disso, eu não comprei com o interesse comercial, especulativo, quero que a coleção faça parte do acervo do Fama para ser vista pelo público e para basear estudos e pesquisas’, afirma o colecionador.

Para Amaro, Tarsila,1886-1973, ‘teve uma defasagem’ na valorização mercadológica, o que mudou desde que o MoMA adquiriu ‘A Lua’. ‘Um movimento como esse cria uma legitimidade da artista para o mercado, é um endosso para um resgate histórico’.

 

‘Tarsila Popular’, MASP, 2019
 

Ele menciona também a exposição ‘Tarsila Popular’, realizada pelo Masp no ano passado, que bateu o recorde histórico do museu, com mais de 402 mil visitantes fazendo filas e tirando selfies em frente às obras, destronando uma lista formada por Monet, Picasso e Salvador Dalí. ‘Isso a popularizou muito. Ela acaba virando um ícone pop, como Frida Kahlo,1907-1954. A vantagem da Frida em relação à Tarsila, em relação a essa popularização, é a proximidade do México com os Estados Unidos’, analisa.

Uma das maiores especialistas em Tarsila, com quem teve contato, a crítica de arte Aracy Amaral, 90, diz que esse movimento em relação à artista está diretamente relacionado ao crescimento do mercado da arte.

Na década de 1960, Aracy realizou pesquisa na casa de Tarsila, na rua Albuquerque Lins, em São Paulo, onde catalogou os 200 desenhos que agora chegam à exposição do Fama, da qual é curadora. Em 1969, organizou ‘Tarsila – 50 Anos de Pintura’, no Museu de Arte Moderna do Rio, mostra relevante na construção do reconhecimento da modernista. À época, lembra Aracy, Tarsila vendeu algumas de suas obras. ‘Era um dinheiro suficiente para cuidar da sua casa e viver bem. Mas não tinha a noção da valorização das suas obras’, lembra Aracy.

 

‘A Lua’
 

Se a evolução do mercado de arte ajudou Tarsila a se consolidar no país, o marco de sua valorização internacional foi a aquisição de ‘A Lua’ pelo MoMA, afirma Paulo Kuczynski, 72, que intermediou a venda. ‘Com isso, ela passou do patamar do modernismo brasileiro para o do modernismo internacional’, avalia o galerista, que diz saber de outras instituições interessadas em adicionar Tarsila a seus acervos.

É um sinal de que a escalada de preços não deve arrefecer nos próximos anos. Até porque, diz Kuczynski, a última grande venda sempre inaugura uma nova faixa de valores, mesmo que a obra em negociação não seja tão aclamada quanto ‘A Lua’.

À frente das negociações de ‘Idílio’ iniciadas na Tefaf, o galerista Thiago Gomide, 42, afirma que o quadro, de uma fase em que a artista retratou a vida interiorana brasileira, já atraiu o interesse de colecionadores dos EUA, da Inglaterra e da China.

 

'Idílio', 1929, pintura de Tarsila do Amaral exibida pela galeria Bergamin e Gomide na feira online Tefaf, Nova York, 2020 

Ele torce para que a pintura de traços arredondados, que mostra um casal de namorados em uma fazenda, seja adquirida por um museu internacional. Segundo Gomide, Tarsila foi muito beneficiada por uma tendência recente dessas instituições de revisar as suas coleções de modo a incluir mais trabalhos de mulheres, negros, latinos. ‘A venda para o MoMA criou um precedente muito importante, em que instituições passaram a se sentir confortáveis para pagar valores altos em um quadro como esse’, diz.

Esse fato, aliado à raridade de telas da fase mais valorizada de Tarsila —menos de 50—, deve continuar a projetá-la. ‘E a valorização ainda crescerá porque esse movimento de igualdade de gênero está só começando. A Tarsila acabou se tornando um ícone que todos conhecem, crianças, trabalhadores de todas as classes. Criou uma identidade brasileira, é a cara do Brasil, da mesma forma que a Frida é a do México’, diz Gomide.

Doutora em estética e história da arte pela USP, Regina Teixeira de Barros, 54, curadora da exposição dos desenhos no Fama e que já organizou mostras da artista na Pinacoteca e no Malba, na Argentina, onde está o ‘Abaporu’, também acredita que esse discurso de gênero ajude a fazer de Tarsila uma artista expoente. Características de sua obra, como as formas reduzidas e o colorido, têm apelo com o público, trazem uma facilidade de acesso. ‘É muito fácil gostar da Tarsila’, diz a historiadora.

Kuczynski concorda: ‘Ela é tão Brasil, tão caipira, suas cores, suas formas... É tudo muito sedutor. Tem a dimensão de sonho com a qual as crianças se identificam’.

 



É na identificação com o público infantil a aposta o filme de animação ‘Tarsilinha’, da PinGuim Content, criadora dos desenhos animados ‘Peixonauta’ e ‘O Show da Luna!’.




No longa-metragem, em fase de finalização, a garota Tarsilinha envolve-se em uma aventura em um mundo repleto de figuras, personagens e cenários das obras de Tarsila. Entraria em cartaz nos cinemas neste ano, o que foi adiado em razão da pandemia. A produtora lança nesta sexta-feira (13) um clipe do filme, com música de Zeca Baleiro, que canta no refrão: ‘Tarsilinha não tem medo, leva na mochila coragem sem fim’.

É um perfil ideal para protagonistas femininas dos novos tempos, inclusive as princesas da Disney. E que tem tudo a ver com a heroína da vida real que a inspirou. 



Fonte: Laura Mattos e Clara Balbi   |   FSP

 

(JA, 13-Nov20) 


 

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Millôr tem obra gráfica reunida em exposição


Instituto Moreira Salles, que guarda acervo e arquivo do desenhista, mostra 500 originais
Primeira retrospectiva dedicada aos desenhos do humorista, dramaturgo e tradutor carioca Millôr Fernandes, 1923-2012, a exposição que o Instituto Moreira Salles (IMS) aberta no último dia 18, reúne 500 dos mais de 6 mil originais sob a guarda da entidade desde 2013. A mostra, ‘Millôr: Obra Gráfica’, que tem como curadores Cássio Loredano, Julia Kovensky e Paulo Roberto Pires, destaca os principais temas abordados por Millôr em 70 anos de produção, sendo o marco zero a coluna Pif-Paf, publicada na revista O Cruzeiro, entre 1945 e 1963.
A exposição foi organizada levando em conta esses temas recorrentes na obra de Millôr. Assim, os curadores a dividiram em cinco núcleos: os desenhos autor referenciais, o processo embrionário do humorista, que começou escrevendo o texto ilustrado por Péricles em Pif-Paf, sua visão do Brasil com todas as suas contradições (nos núcleos Brasil e Condição Humana) e as obras essencialmente visuais, que não têm o propósito de servir de comentário político, como era comum no trabalho de Millôr.


Crítico. No desenho, Millôr comenta a luta de classes no Brasil  
O humor gráfico do artista foi marcado por sua visão aguda da política brasileira. Millôr trabalhou para os principais veículos da grande imprensa (Jornal do Brasil, Veja) e participou ativamente do mais popular tabloide publicado durante a ditadura (O Pasquim). No livro que acompanha a mostra, o segundo a examinar a obra do artista (o primeiro, Desenhos, é de 1981), o recorte é diferente, mais variado. De qualquer modo, o assunto principal é o próprio Millôr e sua relação com o mundo – o que não surpreende, em se tratando de um artista que não fazia autorretratos como autoanálise, como Rembrandt, mas por puro egocentrismo.

Cássio Loredano, apontando para um desenho na exposição que mostra Millôr assistindo ao nascer de um novo dia, chama a atenção para os elementos que confirmam essa irresistível vocação cabotina: Millôr é o próprio sol, o pão de cada dia, ‘o alimento e a luz’ que oferece ao leitor. ‘Ele era mesmo vaidoso, sabia qual era seu tamanho’, define Cássio, comentando a sofisticação do seu traço e sua inteligência visual. Seu desenho, de fato, exige um espectador erudito, capaz de identificar citações a Mondrian, Picasso, Pollock, Steinberg e ao brasileiro Willys de Castro – uma série de quatro desenhos na mostra evoca o esquema dos objetos ativos do artista neoconcreto.


A ambição intelectual de Millôr não se restringiu às artes visuais – ele foi dramaturgo e tradutor de autores como Shakespeare e Fassbinder. O outro curador da mostra, Paulo Roberto Pires, lembra que o desenhista lutou contra as adversidades de uma vida marcada pela ‘infância dura’ no subúrbio carioca do Méier. Basicamente, foi um autodidata com uma breve passagem pelo Liceu de Artes e Ofícios. Trabalhando na revista O Cruzeiro como contínuo, aos 14 anos, aproveitou a convivência com jornalistas e veio a se tornar uma referência no meio. Ganhou autonomia nos 18 anos em que escreveu a coluna Pif-Paf, publicando sem censura (até 1963) sob o pseudônimo Vão Gogo, clara alusão ao gênio holandês da pintura Vincent Van Gogh.
Entre as peças preciosas da mostra está a reprodução de um pedido de desculpas dos editores de O Cruzeiro a leitores furiosos com uma sátira de 12 páginas da história bíblica da criação do mundo feita por Millôr em 1963. Indignado, ele transformou a Pif-Paf numa revista independente justamente às vésperas do golpe militar de 1964. Desnecessário dizer que durou pouco. O resto da história é mais ou menos conhecido. Millôr foi um dos humoristas mais censurados durante a ditadura – e há vários exemplos na exposição de ilustrações proibidas de circular pelo regime, riscadas com um enérgico ‘x’ dos censores.
Interdito. O paraíso de Millôr foi abjurado pela direção de 'O Cruzeiro

Todo esse material, conta a coordenadora da área de iconografia do IMS, Julia Kovensky, só está hoje disponível ao grande público porque Millôr, ao morrer, vítima das consequências de um acidente vascular cerebral, deixou como legado 94 volumes que reúnem material publicado em jornais como O Estado e revistas como O Cruzeiro e Veja.
Entre os 500 desenhos expostos no IMS, evidentemente os políticos, inspirados pelos absurdos do regime militar, se destacam, embora as obras mais autônomas, que dispensam uma narrativa, sejam as que definem a excelência do traço de Millôr. 



Fonte: Antônio Gonçalves Filho  |  OESP

(JA, Set18)



sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Exposição de desenhos revela o manancial infinito de Tunga


Mostra em cartaz no Museu de Arte do Rio revolve o legado do artista como material vívido e dinâmico


John Berger dizia que a atividade mais profunda dentre todas é desenhar. A exposição ‘Tunga - O Rigor da Distração’ é uma confirmação exuberante dessa ideia.
Com curadoria de Luisa Duarte e Evandro Salles, a exposição que pode ser visitada no Museu de Arte do Rio até novembro abrange trabalhos produzidos entre 1975 e 2015, oferecendo contato privilegiado com uma dimensão menos conhecida do artista, morto em junho de 2016.
Sem pretender ser retrospectiva em sentido estrito, a exposição no entanto permite uma visão aprofundada da trajetória de Tunga. Lembra-nos inclusive que sua primeira exposição individual, ‘Museu da Masturbação Infantil’, aconteceu no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1974 e consistia precisamente em uma série de desenhos.

Xifópagas Capilares, 1984

Segundo declaração do próprio artista à época, seus trabalhos investiam contra as repressões simbólicas e imaginárias, 'contra o comércio do desejo em nossa sociedade'.
A exposição aborda o desenho em Tunga não simplesmente como técnica ou obra acabada, mas como um método de pensamento visual e um manancial capaz de explicitar seus diferentes processos plásticos —ou teóricos, como defendia o artista.
O título enfatiza a articulação solidária entre rigor e a distração numa obra cujo fascínio está ligado à energia erótica que atravessa os corpos, contagia e abre as formas, encetando processos metamórficos infinitos.
Nas articulações propostas pela curadoria percebe-se que o desenho foi para o artista tanto um gesto inaugural, um laboratório de pesquisa topológica e morfológica, quanto um espaço residual, de acolhimento e transformação de todo um imaginário mítico-psíquico latente, mas em geral reprimido.
O amplo e heteróclito conjunto de obras —incluindo precioso material inédito, documentos, estudos, filmes— foi disposto de modo a sublinhar ecos e elos entre desenho e a produção escultórica e performática (‘instaurações’) por meio das quais o artista se tornou conhecido. Assim, as tranças que comparecem em diversos trabalhos de Tunga passam a serem vistas também como arquitetura de linhas e, portanto, desenho.
Outro eixo condutor da exposição é a relação de Tunga com as palavras. Entre desenho e palavra circulam formas fluidas, irredutíveis ao visível e nunca esgotáveis pelos discursos ou interpretações. Desenhar era também perseguir a dimensão erótica do pensamento, sua morfologia imprevisível e sedutora, de certo modo também mítica.
Em entrevista exibida no espaço expositivo, o artista fala de duas práticas do desenho em seu percurso, uma proveniente da lógica arquitetônica, com desenhos de alta precisão que tornam visível o que se pretende tornar concreto; a outra estaria mais próxima de uma força do imaginário, imagens que não são projetos de obras, nem se querem semelhantes ao que já existe no mundo.
Suas linhas vão da visceralidade dos primeiros desenhos ao etéreo da série ‘Anjos Maquiados’, de 2011, feita de zonas erógenas em tons de rosa e vermelho não completamente visíveis, ou a delicadeza extrema de ‘Quase Autora’, de 2009, aquarelas que parecem querer dar a ver o momento de nascimento da imagem. Tunga sabia nos reconectar com o fascínio dos começos e com o enigma do que nunca termina.
Diferentemente de muitas exposições póstumas que se contentam com o apelo aurático do luto ou com a transformação do espólio em relicário, esta revolve o legado de Tunga como material vívido e dinâmico.

Tunga - O Rigor da Distração’
MAR (Museu de Arte do Rio), pça. Mauá, 5, Rio de Janeiro
Até 4/11
Ter. a dom.: 10h às 17h.
Preço R$ 20. Grátis às terças




Fonte: Laura Erber, escritora, crítica e professora de teoria e história da arte da Unirio  |   FSP

(JA, Ago18)

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Mostra em Nova York traça retrato íntimo de Michelangelo


Vermelho talvez seja a cor mais lembrada pelos que saem da mostra de Michelangelo agora no Metropolitan. Não um vermelho vivo, mas o tom opaco do giz, algo entre a carne e o mármore. Seus anjos, homens e monstros tomam forma aos poucos, em traços vaporosos, nos mais de cem desenhos dessa exposição.

Em grande parte estudos e esboços, essas obras reunidas até o mês que vem, em Nova York, revelam os métodos e a arquitetura secreta por trás dos trabalhos de um dos maiores artistas da história.
Suas figuras ali mudam de posição e escala -montanhas de músculos sobre a folha de papel que lembram às vezes deslizamentos de terra quando o artista mudava de ideia sobre seus contornos e não apagava versões anteriores.
Nesse sentido, estar diante desses trabalhos é como observar o mestre renascentista em seu ateliê, uma intimidade reforçada pela escala das obras. Esses pequenos desenhos ficam quase na penumbra –frágeis demais para aguentar um holofote– e exigem que os espectadores cheguem muito perto deles.
É esse contato com os mínimos detalhes que acaba revelando a monumentalidade de sua obra. Morto aos 88, em 1564, Michelangelo atravessou um momento de transformação na história da arte em que o desenho e a perspectiva se tornavam os alicerces inabaláveis de um universo retratado à base da fricção entre a anatomia e a geometria.
Escultor, arquiteto e anatomista, Michelangelo trabalhava sobre a folha de papel como quem construía um mundo real e físico, os traços como linhas mestras de algo que poderia ter vida própria.
E essa mostra deslumbrante do Metropolitan revela os momentos em que as figuras deixam de ser abstrações ou coisas mentais para respirar pela primeira vez –músculo por músculo, fibra por fibra.
Em sequências quase cinematográficas, em que um traço se sobrepõe a outro até as linhas tomarem corpo em esboço atrás de esboço, surgem figuras como o Adão do teto da Capela Sistina, um jovem arqueiro, os soldados amontoados da batalha de Cascina e coleções de braços, pernas, mãos, pés e olhos, como um catálogo de corpos infinitos.
Michelangelo, que desenhava seus homens começando pelas pernas fortes como colunas de sustentação de um templo, não escondeu o desejo que sentia pelo corpo masculino, um encanto por formas e volumes robustos que frequentam sua obra dos primórdios até o fim.
O número estonteante desses desenhos reforça essa impressão, mas outra ala belíssima da mostra, onde estão retratos de alguns dos homens pelos quais Michelangelo se apaixonou, revela como o artista também se deixou levar por emoções e sentimentos que vão além de um estudo anatômico cerebral.

Seu retrato do jovem aristocrata Andrea Quaratesi, que parece olhar para o artista que o desenha, é de uma força sublime. Em vez de músculos, é um rosto delicado, de espontaneidade chocante, que domina o quadro.
Toda a dureza arquitetônica de Michelangelo se dissolve nesses retratos ao mesmo tempo firmes e reticentes, como se fosse mais fácil desenhar deuses musculosos em torções dramáticas do que fixar o poder desarmado do olhar desses jovens amantes.
Tanto que em seus esboços quase nunca aparecem rostos. Enquanto pernas, braços, costas e peitorais têm contornos nítidos, nunca há uma face que possa dizer seu nome. É como se Michelangelo estivesse mais à vontade com a pedra do que com a carne que tentava imitar no mármore.


MICHELANGELO
QUANDO de dom. a qui., 10h às 17h30; sex. e sáb., 10h às 21h; até 12/2
ONDE Metropolitan, 1.000 5th Ave., Nova York; informações em www.metmuseum.org
QUANTO US$ 25 (ou R$ 78,50)
AVALIAÇÃO ótimo


Texto: Silas Marti
Imagens:   ‘Retrato de Andrea Quaratesi’, esboço concluído em 1534 por Michelangelo
                  ‘Punição de Tício’
                  ‘Estudos para a Sibila Líbia no Teto da Capela Sistina’



(JA, Jan18)