Enquanto seus desenhos custam a partir de R$ 40 mil, tela de sua fase áurea foi posta à venda por R$ 38 milhões em feira
Havaianas, imãs de geladeira,
cadernos e até filme para crianças. Tarsila do Amaral está em todas. Pop e a
preços cada vez mais estratosféricos, desde que o MoMA de Nova York comprou sua tela ‘A Lua’
por uma cifra próxima dos US$ 20 milhões, no ano
passado.
‘Idílio’, pintura com as cores fortes
e os traços curvos característicos da modernista brasileira, foi posta à venda
por US$ 7 milhões, ou cerca de R$ 38 milhões, na edição nova-iorquina da tradicional feira de
arte Tefaf, realizada na semana passada.
Neste sábado (14), em um museu de Itu, no interior de São Paulo, será
inaugurada uma exposição com 200 de seus
desenhos, cada um podendo valer de R$ 40 mil
a R$ 1 milhão, caso de um estudo de ‘A
Negra’, obra de 1923, a primeira no processo de seu
reconhecimento internacional.
A coleção reúne desenhos com estudos
e anotações para suas futuras obras, feitos entre os anos 1910 e 1940. Inclui,
portanto, seu período áureo, de 1923 a
1933, quando, além de ‘A Negra’, pintou ‘Abaporu’,
‘A Lua’, ambas de 1928, e ‘Operários’, de 1933. Foi recém-adquirida pelo artista plástico,
empresário e colecionador Marcos Amaro, 36,
que investiu mais de R$ 200 milhões, incluindo essa coleção, no
museu Fama (Fábrica de
Artes Marcos Amaro), em
que acontecerá a exposição.
Os desenhos haviam sido vendidos por
um marchand em 1970 ao empresário Oscar Fakhoury, que os
manteve guardados, sem acesso ao público e a pesquisadores. Com a sua morte,
sua viúva negociou a venda a Amaro, através da galeria Almeida & Dale, segundo o colecionador. ‘Eu já havia flertado
com várias obras da Tarsila, mas as negociações não avançaram. Quando soube
desses desenhos, fiquei apaixonado pela ideia de adquirir um conjunto tão
representativo do percurso da artista’, diz Amaro.
Após a compra, o colecionador achou
que seria preciso um complemento na trajetória da modernista. Por meio de um
marchand, adquiriu mais dois desenhos da fase antropofágica de Tarsila —a mais
conhecida do público, marcada por ‘Abaporu’—, e outro galerista o levou a um
exemplar do período no qual a pintora esteve na União Soviética, quando se
casou com o psiquiatra, crítico de arte e comunista Osório César e desenvolveu
suas obras de viés político, cujo grande exemplar é ‘Operários’.
Amaro, apesar de não falar sobre o
valor que pagou por esses três desenhos e pela coleção, dá parâmetros: ‘No
mercado, os desenhos menos representativos da Tarsila valem entre R$ 40 mil e R$ 50 mil. E um
estudo de ‘A Negra’ [como
o que faz parte da coleção] foi vendido por quase R$ 1
milhão. Apesar disso, eu não comprei com o interesse comercial, especulativo,
quero que a coleção faça parte do acervo do Fama para ser vista pelo público e
para basear estudos e pesquisas’, afirma o colecionador.
Para Amaro, Tarsila,1886-1973, ‘teve uma defasagem’ na valorização
mercadológica, o que mudou desde que o MoMA adquiriu ‘A Lua’. ‘Um movimento como esse cria uma
legitimidade da artista para o mercado, é um endosso para um resgate histórico’.
Ele menciona também a exposição ‘Tarsila
Popular’, realizada pelo Masp no ano passado, que bateu o recorde histórico do
museu, com mais de 402 mil visitantes fazendo filas e
tirando selfies em frente às obras, destronando uma lista formada por Monet,
Picasso e Salvador Dalí. ‘Isso a popularizou muito. Ela acaba virando um ícone
pop, como Frida Kahlo,1907-1954. A vantagem da Frida em relação à
Tarsila, em relação a essa popularização, é a proximidade do México com os
Estados Unidos’, analisa.
Uma das maiores especialistas em
Tarsila, com quem teve contato, a crítica de arte Aracy Amaral, 90, diz que esse movimento em relação à artista está
diretamente relacionado ao crescimento do mercado da arte.
Na década de 1960, Aracy realizou pesquisa na casa de Tarsila, na rua
Albuquerque Lins, em São Paulo, onde catalogou os 200 desenhos que agora chegam à exposição do Fama, da
qual é curadora. Em 1969, organizou ‘Tarsila – 50 Anos de Pintura’, no Museu de Arte Moderna do Rio, mostra
relevante na construção do reconhecimento da modernista. À época, lembra Aracy,
Tarsila vendeu algumas de suas obras. ‘Era um dinheiro suficiente para cuidar
da sua casa e viver bem. Mas não tinha a noção da valorização das suas obras’,
lembra Aracy.
Se a evolução do mercado de arte
ajudou Tarsila a se consolidar no país, o marco de sua valorização
internacional foi a aquisição de ‘A Lua’ pelo MoMA, afirma Paulo Kuczynski, 72, que intermediou a venda. ‘Com isso, ela passou do patamar
do modernismo brasileiro para o do modernismo internacional’, avalia o
galerista, que diz saber de outras instituições interessadas em adicionar
Tarsila a seus acervos.
É um sinal de que a escalada de
preços não deve arrefecer nos próximos anos. Até porque, diz Kuczynski, a
última grande venda sempre inaugura uma nova faixa de valores, mesmo que a obra
em negociação não seja tão aclamada quanto ‘A Lua’.
À frente das negociações de ‘Idílio’
iniciadas na Tefaf, o galerista Thiago Gomide, 42, afirma que o quadro, de uma fase em que a artista retratou a vida
interiorana brasileira, já atraiu o interesse de colecionadores dos EUA, da Inglaterra e da China.
Ele torce para que a pintura de
traços arredondados, que mostra um casal de namorados em uma fazenda, seja
adquirida por um museu internacional. Segundo Gomide, Tarsila foi muito
beneficiada por uma tendência recente dessas instituições de revisar as suas
coleções de modo a incluir mais trabalhos de mulheres, negros, latinos. ‘A
venda para o MoMA
criou um precedente muito importante, em que instituições passaram a se sentir
confortáveis para pagar valores altos em um quadro como esse’, diz.
Esse fato, aliado à raridade de telas
da fase mais valorizada de Tarsila —menos de 50—, deve continuar a projetá-la. ‘E a valorização ainda crescerá porque
esse movimento de igualdade de gênero está só começando. A Tarsila acabou se
tornando um ícone que todos conhecem, crianças, trabalhadores de todas as
classes. Criou uma identidade brasileira, é a cara do Brasil, da mesma forma
que a Frida é a do México’, diz Gomide.
Doutora em estética e história da
arte pela USP, Regina Teixeira de Barros, 54, curadora da exposição dos desenhos no Fama e que já
organizou mostras da artista na Pinacoteca e no Malba, na Argentina, onde está
o ‘Abaporu’, também acredita que esse discurso de gênero ajude a fazer de
Tarsila uma artista expoente. Características de sua obra, como as formas
reduzidas e o colorido, têm apelo com o público, trazem uma facilidade de
acesso. ‘É muito fácil gostar da Tarsila’, diz a historiadora.
Kuczynski concorda: ‘Ela é tão
Brasil, tão caipira, suas cores, suas formas... É tudo muito sedutor. Tem a
dimensão de sonho com a qual as crianças se identificam’.
No longa-metragem, em fase de
finalização, a garota Tarsilinha envolve-se em uma aventura em um mundo repleto
de figuras, personagens e cenários das obras de Tarsila. Entraria em cartaz nos
cinemas neste ano, o que foi adiado em razão da pandemia. A produtora lança
nesta sexta-feira (13) um clipe do filme, com música de
Zeca Baleiro, que canta no refrão: ‘Tarsilinha não tem medo, leva na mochila
coragem sem fim’.
É um perfil ideal para protagonistas femininas dos novos tempos, inclusive as princesas da Disney. E que tem tudo a ver com a heroína da vida real que a inspirou.
Fonte: Laura Mattos e Clara
Balbi | FSP
(JA, 13-Nov20)