Organizador de
exposição no Japão discute o que (ainda) separa seres humanos de máquinas
O que precisa
acontecer para que a inteligência artificial seja capaz de produzir obras
artísticas? Organizador de exposição sobre o tema no Japão discute o que
(ainda) separa seres humanos de máquinas no campo das artes plásticas.
O violoncelista
Jan Vogler disse que a arte é o que nos faz humanos. Mas e se máquinas também
começarem a criar arte?
Um exemplo de
uma obra de arte criada por uma inteligência artificial está na foto (1),
abaixo. Do lado direito da imagem, vemos um computador usando inteligência
artificial que foi treinada com imagens de grafitagem. Ele controla um cabeçote
de plotagem que borrifa água sobre blocos de concreto, à esquerda. Os desenhos
resultantes são uma forma de arte gerada por computador.
‘About a Theory of Graffiti’, obra feita por máquina treinada com imagens de grafitagem |
Isso é belas-artes no sentido real do termo? Se for, teremos que encarar a possibilidade de que alguma parte de nossa humanidade —a parte à qual Vogler aludiu— foi capturada por máquinas.
Mas a verdade
é que, embora o que a máquina produz possa ser artístico, ela não está criando
arte.
Quando arte é
criada para satisfazer as necessidades de uma terceira parte —neste caso, o
programador de computadores empregado pelo artista—, ela é ilustração ou arte
comercial, não belas-artes.
Se quisermos
que arte real seja criada por inteligência artificial, a obra terá que ser
gerada por ela própria: produzida por máquinas de maneira autônoma,
independente e ativa, para o seu próprio bem e com sua estética. Apenas nesse
caso a arte não seria um produto passivo de criação humana.
No dia 8 de
janeiro deste ano, a Exposição de Arte e Estética de Inteligência Artificial
encerrou sua passagem pelo Instituto Okinawa de Ciência e Tecnologia (Oist), em
Okinawa, Japão. A exposição se concentrou no conceito de arte artificialmente inteligente
de verdade. O único problema dos curadores (entre os quais me incluo): ainda
não existe arte que se enquadre nessa categoria.
Para contornar
esse fato incômodo, as mostras da exposição foram divididas em quatro
categorias: (1) Arte Humana / Estética Humana; (2) Arte Humana / Estética de
Máquina; (3) Arte de Máquina / Estética Humana e (4) Arte de Máquina / Estética
de Máquina.
A categoria 1
continha uma coleção de arte humana convencional, da Renascença em diante. As
categorias 2 e 3 apresentaram, como seus nomes indicam, coleções de arte
híbrida humana e de máquinas. A categoria quatro, por sua vez, não trazia arte
feita por máquinas porque não existe esse tipo de arte que também reflita uma
estética de máquina.
Mesmo assim,
essa última categoria foi útil como marcadora de posição —e, como vamos
descobrir, não ficou completamente vazia. Cada categoria nos ensina suas
próprias lições.
A arte na
categoria 1 mostra a transformação histórica da estética, afastando-se da
perspectiva do olhar de Deus em direção a uma visão humana. A arte sistêmica
incluída na categoria 2 (foto 2), em sua maioria arte do século 20, incluindo
minimalismo, música serial e poesia visual, caracteriza-se pelo uso de regras
ou formas matemáticas. Podemos considerar que a arte sistêmica nasceu com a
Torre Eiffel, em 1889.
Trabalhos de Mika Kusakari e Hideki Nakazawa que usam regras matemáticas |
A construção
da torre enfrentou a oposição de muitos artistas famosos, incluindo o pintor
William-Adolphe Bouguereau e o escritor Guy de Maupassant, para os quais sua
aparência básica e seu design calculado por máquina eram uma negação hedionda
da estética humana.
O fato de que
hoje a maioria de nós considera a Torre Eiffel bela é a lição fundamental
proposta pela categoria 2: que nosso senso estético pode ser modificado pela
matemática e pelas máquinas.
A categoria 3
(foto 3) contém uma espécie de arte midiática, produzida por máquinas,
mostrando-nos que, mesmo sendo um produto passivo da criação humana, a
inteligência artificial moderna é capaz de produzir objetos dotados de beleza.
Série ‘Deep Rembrandt’, gerada pelo software Deep Dream AI, do Google |
Juntas, as
três primeiras categorias da exposição descrevem um arco incompleto. Vemos o
nascimento do autor humano e os primórdios do autor de inteligência artificial.
Mas será que
um artista artificial verdadeiro existirá algum dia? Podemos prever que algum dia
a estética venha a ser gerada inteiramente pela máquina, sem qualquer design
comandado pelo homem? Essa questão esteve no cerne da exposição: a inteligência
artificial terá estética própria algum dia?
Platão
argumentou que o verdadeiro, o bom e o belo, são todos coisas que possuem valor
intrínseco. A beleza possui valor por si própria, não por servir a algum outro
propósito. Fazemos o bem por fazer o bem, e assim por diante.
Para que uma
máquina possa produzir sua própria arte, ela precisa satisfazer a regra de
Platão, e criar sem finalidade utilitária. A pergunta que está em aberto é se
as máquinas serão capazes de fazê-lo algum dia.
Uma base para
otimismo é que os humanos não são os únicos seres capazes de criar sem fins
utilitários. Por exemplo, já foi observado que chimpanzés, quando lhes são
dados materiais de pintura, fazem desenhos por simples prazer.
Aliás, a
exposição em Okinawa incluiu (foto 4) desenhos feitos por cinco chimpanzés e um
chimpanzé-pigmeu que pertencem a Tetsuro Matsuzawa, professor da Universidade
de Kyoto —e todos foram incluídos na categoria 4, ‘Arte de Máquina / Estética
de Máquina’, para nos lembrar do que é possível.
Pinturas
feitas por chimpanzés
|
Se os animais
tivessem produzido os desenhos em troca de bananas, não teriam sido incluídos
nessa categoria porque a arte deles não teria sido criada sem outra finalidade,
exceto a de criar arte.
Para a
inteligência artificial chegar ao ponto em que estão os chimpanzés, são
necessários dois passos. Primeiro, a inteligência artificial deve ser capaz de
gerar seus próprios objetivos. Hoje, suas metas são traçadas por programadores
humanos, que escrevem as chamadas funções de avaliação para calcular quão bom
ou ruim está sendo o desempenho de um algoritmo.
A primeira
obra de arte criada por máquina qualificada na categoria 4 terá que ser capaz
de escrever suas próprias funções de avaliação.
Isso não
apenas é possível como já foi feito —e se você visitou nossa exposição em
Okinawa este ano, pode tê-lo visto em ação. Kenji Doya, professor da Unidade de
Computação Neural do Oist, e sua equipe de desenvolvimento de robôs para
smartphones montaram um experimento chamado ‘Os robôs são capazes de definir
seus próprios objetivos?’
Eles colocaram
numa área comum uma coleção de robôs feitos de smartphones sobre rodas. Essas
máquinas podiam deslocar-se livremente, encontrar seus próprios lugares para se
recarregar e trocar programas, escaneando os códigos QR uns dos outros. As
recargas eram análogas a se alimentar, enquanto trocar programas era análogo a
se reproduzir.
Os robôs que
não se recarregavam paravam de funcionar, e aqueles que não trocavam programas
com outros não transmitiam seu ‘DNA’ à geração seguinte. Com o tempo, os robôs
começaram a escolher suas metas: alguns pararam de se recarregar para correr
atrás de outros robôs, por exemplo, um comportamento para o qual não tinham
sido programados.
Os resultados
deste e de outros experimentos convenceram Doya de que os robôs podem criar
seus próprios objetivos.
O segundo
passo necessário é que a inteligência artificial seja capaz de elevar as metas
secundárias —as que existem apenas para servir à sua meta principal— à condição
de metas primárias.
Suponhamos,
por exemplo, que a meta primária de um organismo ou uma máquina seja se
reproduzir. Fazer sexo é um método de se reproduzir; logo, fazer sexo é uma
submeta. Atrair um parceiro é um método para fazer sexo, logo, pode ser visto
como uma sub-submeta. Ser belo é uma maneira de atrair parceiros, podendo ser visto
como uma sub-sub-submeta, e assim por diante.
Para os
humanos, porém, o sexo e a beleza do parceiro adquiriram valor próprio. Assim
como fazer sexo pelo próprio sexo pode passar a ter valor, fazer arte pela
própria arte, também. Quando uma inteligência artificial tiver escolhido seus
próprios objetivos e começado a ir atrás deles por elas próprias, e não com
outra finalidade, ela estará a caminho de criar suas próprias belas-artes.
Vamos ser
capazes de reconhecer quando as máquinas começarem a criar arte? Podemos
ensinar à inteligência artificial nossa própria história da arte, para
incentivar uma produção que possamos reconhecer e apreciar.
Por outro
lado, a inteligência artificial não treinada terá probabilidade maior de
produzir algo fortemente original e até mesmo irreconhecível, à maneira da
chamada arte outsider ou arte bruta.
Embora não
possamos entender o sentido estético interno do artista autista Moriya Kishaba,
um de nossos expositores na categoria 2 (foto 5), muitas pessoas acham seus
azulejos com caracteres chineses minúsculos estranhamente belos. O futuro da
arte criada por inteligência artificial é análogo a um mundo cheio de artistas
como Moriya antes de serem descobertos.
Obra de Moriya Kishaba, que é autista, mostra centenas de caracteres chineses em ordem aleatória |
A verdadeira
arte criada por inteligência artificial será ao mesmo tempo dolorosamente
entediante e altamente estimulante, e isso representará progresso. Afinal, a
beleza não pode ser quantificada, e o próprio ato de questionar a definição da
estética faz toda a arte avançar, algo que já testemunhamos inúmeras vezes na
história da arte feita pelo homem
.
A
concretização da inteligência artificial vai imbuir essas questões de novas
dimensões. Será também um triunfo do materialismo, enfraquecendo ainda mais o
caráter especial da espécie humana e desvelando um mundo que não encerra nem
mistério nem Deus, no qual os humanos são meras máquinas feitas de materiais
inanimados.
Se tivermos
razão, também trará à luz uma nova geração de artistas e, com eles, novas
Torres Eiffel que vão transcender nossas visões mais desvairadas.
Fonte: Hideki Nakazawa, 55, artista japonês
fundador do Grupo de Pesquisas sobre Arte e Estética de Inteligência
Artificial. Texto publicado originalmente na revista Nautilus. Tradução de Clara Allain |
FSP
(JA, Abr18)
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