Exposições usam carranca prateada e
redes de dormir para desmontar clichês
‘A Rede’, tela de Dalton de Paula, 2008 |
Sobre o farol de uma
motocicleta, uma carranca -estátua tradicionalmente instalada na proa dos
barcos do rio São Francisco para afugentar os maus espíritos- dá as boas-vindas
aos visitantes da mostra ‘À Nordeste’, no Sesc 24 de Maio. É como se já
anunciasse que o Nordeste ali apresentado não é aquele rural e atrasado marcado
no imaginário do país.
Não que o retrato da região
concebido por Bitu Cassundé, Clarissa Diniz e Marcelo Campos, os organizadores
da mostra, negue de todo a ruralidade. Ao contrário, diz Cassundé, a proposta
era reunir o maior e mais diverso conjunto de discursos sobre essa região do
país. ‘Mais do que um panorama, queríamos realizar uma ocupação, uma
convivência’.
A convivência, no caso, é
entre mais de 300 obras de 160 artistas, uma seleção que vai de nomes
consagrados, nordestinos ou não, a artesãos e influencers digitais —nem Romero Britto ficou de fora.
Pinçados, entre outros, de
acervos de museus locais e ateliês de artistas durante uma pesquisa de cerca de
seis meses pela região, os trabalhos apresentam Nordestes múltiplos, por vezes
contraditórios.
‘Manto de Apresentação’, Bispo do Rosário |
Dessa forma, se o fervor
católico religioso figura por exemplo no ‘Manto de Apresentação’ do Bispo do
Rosário, veste que o artista pretendia usar no Juízo Final, ou na figura de
Padre Cícero esculpida na madeira por Mestre Noza, ele ganha uma nova camada de
leitura ao avistarmos os retratos de Marcio Vasconcelos de representantes de
religiões africanas espalhadas pelo mundo.
Mais do que um simples jogo
de teses e antíteses, no entanto, a mostra busca mapear olhares alternativos às
convenções sociais e aos rótulos do sistema de arte, afirmam os seus
organizadores.
Veio daí, por exemplo, a
decisão de incluir na coletiva uma toalha de mesa bordada por Leonilson, um
contraponto ao conceitualismo ao qual o cearense é vinculado hoje, ou a de
situar criações de artistas afro-brasileiros como Emanoel Araujo não no núcleo ‘(De)Colonialidade’,
mas naquele centrado na linguagem, lado a lado com um quadro cinético de
Abraham Palatnik.
‘Tivemos muito cuidado com
alguns filtros pelos quais o Nordeste passou na história das exposições’,
afirma Campos. ‘Tem uma coisa iconoclasta, de quebrar as imagens’.
O ápice dessa vontade aparece
no comissionamento de obras a personalidades das redes sociais, como o coletivo
Saquinho de Lixo, que administra uma página de memes no Instagram, ou a
pernambucana Alcione Alves.
Famosa por narrar
coreografias nas redes sociais com um vocabulário próprio (‘zaga’, por exemplo,
significa empinar a bunda), Alves criou um vídeo especialmente para a
exposição. Nele, dois bailarinos dançam uma coreografia de swingueira no marco
zero do Recife, de onde se veem as esculturas de Francisco Brennand.
‘Entender que aquilo que a
hegemonia enxerga como popular pode ser, na verdade, muito sofisticado e
contemporâneo é uma chave transformadora’, afirma Cassundé.
'100 Rede', obra de Tunga, 1997 |
Se esse Nordeste colorido,
vibrante em sua diversidade e potência política é o principal saldo de ‘À
Nordeste’, em ‘Vaivém’, coletiva que o Centro Cultural Banco do Brasil
inaugurou na semana passada, a região é vista em uma chave mais cinzenta.
Organizada por Raphael
Fonseca e quase com o mesmo número de obras que a mostra do Sesc 24 de Maio,
ela se estrutura em torno do curioso tema de redes de dormir. Indissociáveis de
uma certa identidade brasileira, os objetos são analisados desde as suas
primeiras representações iconográficas —uma delas um mapa francês do início do
século 16 em que elas surgem ao lado do que parece ser um ataque canibal— até
sua ampla presença na história da arte brasileira.
Uma das principais
preocupações de Fonseca foi, no entanto, a de dissociar as redes do Nordeste. Ele
argumenta que o fato de os itens serem mais imediatamente ligados à região do
que aos povos indígenas, seus inventores originais, é um dos muitos apagamentos
que os europeus realizaram em relação à cultura ameríndia durante a
colonização.
A solução encontrada por ele
foi, então, a de dar protagonismo a produções de alguma maneira ligadas à
questão indígena, incluindo o comissionamento de trabalhos inéditos a 32
artistas nativos, a maioria à margem do circuito artístico, como o coletivo
huni kuin Mahku, do Acre, ou Dhiani Pa’saro, da etnia wanano, que nunca havia
exposto fora do estado do Amazonas.
Além deles, nomes como a
fotógrafa Claudia Andujar, conhecida pela defesa dos povos ianomâmi, e artistas
contemporâneos completam a seleção.
Embora a presença nordestina
atravesse a coletiva, a sala especificamente dedicada à região tem um tom
agridoce. Intitulada ‘invenções do Nordeste’, o espaço busca desconstruir os
clichês de preguiça e languidez que ambos, nordestinos e redes de dormir, adquiriram,
segundo Fonseca, a partir do século 19 no imaginário brasileiro.
Ao escolher peças como as
cerâmicas de Mestre Vitalino que retratam o uso do item em rituais fúnebres,
fazendo as vezes de caixão, ou uma rede negra recortada, em que sobram apenas os
bordados laterais, a mostra propõe uma visão radicalmente diferente daquela da
indolência tropical. Mais trágica, é verdade, mas também mais complexa.
'Nenhum
clichê nasce do nada', diz Fonseca. 'A exposição tem esse esforço de pensar por
outro viés'.
A Panorama do Museu de Arte
Moderna, importante mostra paulistana do calendário brasileiro, começa em
agosto, com o tema sertão.
À Nordeste
Sesc 24 de Maio, r. 24 de Maio, 109. Grátis. Até 25/8
Vaivém
CCBB, r. Álvares Penteado,112. Até 29/7
Fonte: Clara Balbi |
FSP
(JA, Mai19)