Grupo jihadista proibia
representações humanas, em especial da face
Bocas, olhos,
narizes, orelhas. Estão por toda parte. Em telas, em esboços, em folhas de
papel sulfite e até nas portas dos banheiros.
Desde que as
aulas de pintura foram retomadas no Departamento de Artes da Universidade de
Mossul, os alunos estão fascinados com a ideia de voltar a pintar ou desenhar
rostos humanos, uma ofensa gravíssima, passível de morte em alguns casos, nos
tempos em que a cidade era controlada pelo Estado Islâmico.
O grupo
jihadista proibia qualquer representação humana, em especial da face, por
entender que ela poderia levar à adoração.
Shahad Azhar Saeed, 24, em sala de aula de pintura no Departamento de Artes da Universidade de Mossul, no Iraque, cidade que foi ocupada pelo Estado Islâmico até 2017 |
‘Estamos todos
felizes por poder pintar o rosto de uma mulher, uma cena com pessoas outra vez’,
diz Omar Chalby, 38, professor de pintura. Mas ele afirma que tem sido um
recomeço difícil.
‘Fizeram uma
lavagem cerebral na população, muita gente ainda vê com maus olhos o que
estamos fazendo aqui’, diz, na sua sala de aula, no único andar do departamento
que foi recuperado até agora.
Outros três
andares do prédio onde são dadas aulas de canto, teatro, música e educação
artística permanecem intocados e guardam as marcas da passagem do EI.
‘Muitos alunos
ainda têm medo de voltar’, diz Mohamed Abdulah Ahmed, diretor do departamento,
que se manteve fechado pelo período em que o EI dominou a cidade, entre 2014 e
2017. ‘Em menos de três semanas eles mandaram fechar tudo, diziam que estávamos
agindo de forma contrária ao Islã’.
A reabertura
do Departamento de Artes faz parte de um movimento amplo, incentivado pelas
forças militares xiitas que agora controlam a cidade, de tentar trazer
normalidade à cidade.
Ao contrário
dos sunitas mais radicais, os xiitas sempre incentivaram a representação
humana. Apesar do incentivo, o processo ainda é lento e há perigo para aqueles
que pretendem se dedicar às artes. Na última segunda (16), por exemplo, um
carro-bomba explodiu a poucos quilômetros da universidade.
A estudante
Shahad Azhar Saeed, 24, não pinta em casa. Tem medo de que seus vizinhos ou
algum parente veja uma de suas telas, e crie problema.
‘Por enquanto
é melhor guardar essas atividades para um lugar mais protegido, em que as
pessoas entendem o que você está fazendo’, diz ela, ao finalizar um quadro de
uma cena medieval.
Shahad diz que
não desenhou absolutamente nada nos anos em que a cidade estava sob o domínio
do EI.
Tinha medo de
ser pega e ser punida por chibatadas ou, mesmo, de perder a vida.
Ali Abed,
pianista de 26 anos, também tentou guardar seu segredo artístico dos militantes
do EI. De uma família de músicos, escondeu instrumentos que tinha em casa.
Sobre o piano alemão jogou lençóis e toalhas.
O alaúde do
pai guardou sob roupas velhas. Ali ficou três anos sem tocar; praticava em um
piano imaginário, fingindo tocar a Grande Sinfonia em Sol Menor de Mozart para
que os dedos não perdessem agilidade. ‘Ainda não recuperei totalmente minha
capacidade, mas estou evoluindo’, diz.
O piano da
família Abed, no entanto, não sobreviveu ao EI. Nos últimos meses de batalha,
quando militantes passaram a tomar a casa de civis para usar como esconderijo
ou depósito, encontraram o instrumento. ‘Atiraram, destruíram-no com chutes,
pauladas, não sobrou nada’.
O alaúde do
pai teve o mesmo destino. Agora, Ali toca um movimento de Mozart em um teclado
emprestado de um amigo que vive no Curdistão.
Texto: Yan Boechat |
FSP
(JA, Abr18)
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