sexta-feira, 20 de abril de 2018

Após Estado Islâmico, iraquianos voltam a pintar em Mossul


Grupo jihadista proibia representações humanas, em especial da face
Bocas, olhos, narizes, orelhas. Estão por toda parte. Em telas, em esboços, em folhas de papel sulfite e até nas portas dos banheiros.

Desde que as aulas de pintura foram retomadas no Departamento de Artes da Universidade de Mossul, os alunos estão fascinados com a ideia de voltar a pintar ou desenhar rostos humanos, uma ofensa gravíssima, passível de morte em alguns casos, nos tempos em que a cidade era controlada pelo Estado Islâmico.

O grupo jihadista proibia qualquer representação humana, em especial da face, por entender que ela poderia levar à adoração.
Shahad Azhar Saeed, 24, em sala de aula de pintura no Departamento de Artes da Universidade de Mossul, no Iraque, cidade que foi ocupada pelo Estado Islâmico até 2017

‘Estamos todos felizes por poder pintar o rosto de uma mulher, uma cena com pessoas outra vez’, diz Omar Chalby, 38, professor de pintura. Mas ele afirma que tem sido um recomeço difícil.

‘Fizeram uma lavagem cerebral na população, muita gente ainda vê com maus olhos o que estamos fazendo aqui’, diz, na sua sala de aula, no único andar do departamento que foi recuperado até agora.

Outros três andares do prédio onde são dadas aulas de canto, teatro, música e educação artística permanecem intocados e guardam as marcas da passagem do EI.

‘Muitos alunos ainda têm medo de voltar’, diz Mohamed Abdulah Ahmed, diretor do departamento, que se manteve fechado pelo período em que o EI dominou a cidade, entre 2014 e 2017. ‘Em menos de três semanas eles mandaram fechar tudo, diziam que estávamos agindo de forma contrária ao Islã’.

A reabertura do Departamento de Artes faz parte de um movimento amplo, incentivado pelas forças militares xiitas que agora controlam a cidade, de tentar trazer normalidade à cidade.

Ao contrário dos sunitas mais radicais, os xiitas sempre incentivaram a representação humana. Apesar do incentivo, o processo ainda é lento e há perigo para aqueles que pretendem se dedicar às artes. Na última segunda (16), por exemplo, um carro-bomba explodiu a poucos quilômetros da universidade.

A estudante Shahad Azhar Saeed, 24, não pinta em casa. Tem medo de que seus vizinhos ou algum parente veja uma de suas telas, e crie problema.

‘Por enquanto é melhor guardar essas atividades para um lugar mais protegido, em que as pessoas entendem o que você está fazendo’, diz ela, ao finalizar um quadro de uma cena medieval.

Shahad diz que não desenhou absolutamente nada nos anos em que a cidade estava sob o domínio do EI.

Tinha medo de ser pega e ser punida por chibatadas ou, mesmo, de perder a vida.

Ali Abed, pianista de 26 anos, também tentou guardar seu segredo artístico dos militantes do EI. De uma família de músicos, escondeu instrumentos que tinha em casa. Sobre o piano alemão jogou lençóis e toalhas.

O alaúde do pai guardou sob roupas velhas. Ali ficou três anos sem tocar; praticava em um piano imaginário, fingindo tocar a Grande Sinfonia em Sol Menor de Mozart para que os dedos não perdessem agilidade. ‘Ainda não recuperei totalmente minha capacidade, mas estou evoluindo’, diz.

O piano da família Abed, no entanto, não sobreviveu ao EI. Nos últimos meses de batalha, quando militantes passaram a tomar a casa de civis para usar como esconderijo ou depósito, encontraram o instrumento. ‘Atiraram, destruíram-no com chutes, pauladas, não sobrou nada’.

O alaúde do pai teve o mesmo destino. Agora, Ali toca um movimento de Mozart em um teclado emprestado de um amigo que vive no Curdistão.






Texto: Yan Boechat   |   FSP



(JA, Abr18)

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