quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Eletricista ocultou por 40 anos obras de Picasso em sua garagem



Segundo Pierre Le Guennec, o pintor espanhol o presenteou com 180 obras


Two Women running on the Beach

Certo dia de setembro, em 2010, um homem que disse ter trabalhado como eletricista para Pablo Picasso foi ao escritório que administra o espólio do artista, em Paris, levando uma mala que continha 271 obras de arte do espanhol.

O eletricista, Pierre Le Guennec, havia viajado de sua casa no sul da França a Paris, acompanhado por sua mulher, Danielle. Ele disse que desejava autenticar 180 aquarelas, litogravuras e colagens cubistas, bem como dois cadernos contendo 91 desenhos.

O tesouro estava em sua garagem havia quase 40 anos, disse Le Guennec -Picasso o havia presenteado com as obras décadas antes.

Assim começou uma saga que durou quase dez anos e que envolveu um processo judicial que afirmava que as peças eram ‘bens roubados’; a polícia iniciou uma investigação; os tribunais ouviram depoimentos contraditórios; e múltiplos recursos e audiências conduziram os réus e os herdeiros de Picasso ao mais alto tribunal da França.


Pierre Le Guennec deixa tribunal em Lyon, em foto de setembro de 2019

Tudo isso culminou na semana passada em uma decisão por um tribunal francês, que confirmou a condenação de Le Guennec e sua mulher por receptação e ocultamento de obras de arte roubadas de Picasso.

Foi a terceira condenação para o casal, mas Le Guennec e sua mulher, que têm 80 e 76 anos, respectivamente, não cumprirão sentenças de prisão. Os dois receberam sentenças de prisão de dois anos, mas seu cumprimento foi suspenso.

Eles não estavam presentes para ouvir o veredicto final. Le Guennec declarou em entrevista por telefone no sábado que o casal havia sido informado da decisão por vizinhos, e por um artigo de jornal.

O casal sempre negou ter roubado as obras. Le Guennec trabalhou como eletricista e fazendo serviços gerais em diversas das casas de Picasso no sul da França, no começo da década de 1970, consertando um forno e instalando um sistema de alarme em pelo menos uma propriedade, entre outras tarefas.

Danielle Le Guennec disse ao The New York Times em 2010 que ‘meu marido estava se preparando para ir embora’, certo dia, quando Picasso lhe deu ‘uma caixa’. Ela acrescentou que o artista ‘nunca explicou coisa alguma’.

Entre as peças estavam nove raras colagens cubistas, uma pintura da renomada fase azul de Picasso, aquarelas, litogravuras e dezenas de desenhos em cadernos. Seu valor foi estimado em dezenas de milhões de dólares, ainda que não tenha acontecido uma avaliação precisa, de acordo com Jean-Jacques Neuer, advogado do filho de Picasso. As obras agora estão alojadas no Banque of France.

Le Guennec disse que foi ao escritório em Paris em 2010 porque havia sido informado recentemente de que tinha câncer, e queria garantir a proveniência das obras de arte para seus dois filhos.

O filho do artista, Claude Ruiz-Picasso, e o administrador do espólio de Picasso ficaram espantados e intrigados, disse Neuer à imprensa, na época.

Contemplando as obras não assinadas e percebendo que eram trabalhos do famoso artista espanhol, os dois logo desenvolveram suspeitas.

Ruiz-Picasso sabia que seu pai, um gênio temperamental, que morreu em 1973, havia sido um colecionador inveterado que só dava de presente obras produzidas recentemente, e que costumava assinar as peças que presenteava.

‘Se você procura os administradores do espólio de Picasso e lhes diz que essas 271 obras dele caíram do sótão, ou que as encontrou numa feirinha, ninguém acreditará’, disse Neuer em entrevista por telefone no sábado.

Ele disse que a decisão judicial da semana passada representava ‘o fim do acobertamento’.

As obras de arte levadas por Le Guennec aos administradores do espólio foram realizadas entre 1900 e 1932, de acordo com estimativas.

Anne Baldassari, ex-presidente do Museu Pablo Picasso em Paris, disse no primeiro julgamento do casal, em 2015 que ‘o Picasso que conheci não abriria mão de suas obras. Seria como arrancar a própria pele’.

Le Guennec mais tarde mudou sua história, dizendo que Jacqueline Roque, a última mulher de Picasso, e não o artista, lhe havia dado as obras.

‘Foi em 1971, Madame me chamou quando eu estava indo embora da casa de Picasso’, ele disse no sábado, se referindo a Roque. ‘E ela disse: leve isso; são para você’.

Danielle Le Guennec acrescentou na entrevista que o casal declarou inicialmente que havia recebido as obras de Picasso por instrução de Roque.

Eles também disseram que as obras ficaram intocadas em sua garagem por mais de quatro décadas. Mas Neuer argumentou no tribunal e na entrevista do sábado que, como as obras estavam em ótimo estado de conservação, não poderiam ter passado muito tempo armazenadas em uma garagem no sul da França, onde provavelmente teriam se deteriorado.

Segundo Neuer, mais contradições se seguiram, e Guennec afirmou ter catalogado todas as obras sozinho. Mas Baldassari afirmou que as descrições e comparações tinham ‘nível acadêmico’.


Arlequim Pensativo,  1901

No caso de um desenho, por exemplo, Le Guennec traçou um paralelo com ‘Arlequim’, um quadro a óleo de Picasso que hoje faz parte do acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).

Mas quando Neuer pediu a Le Guennec, no julgamento do casal em 2015, que citasse a peça mais famosa de Picasso no acervo do MoMA, o ex-eletricista não sabia o que era o museu nova-iorquino.

Ele e a mulher foram condenados naquele ano.

Uma instância superior sustentou o veredicto em 2016, mas a decisão foi mais tarde derrubada pela Corte de Cassação, o mais alto tribunal francês. O casal Le Guennec não pode recorrer do veredicto final, que foi pronunciado na terça-feira pelo tribunal de recursos de Lyon.

Neuer especulou que comerciantes de arte, provavelmente radicados na Suíça, usaram Le Guennec da mesma forma que traficantes empregam pessoas para carregar drogas.
Le Guennec definiu esse cenário como ‘ridículo’, e se declarou decepcionado pelo veredicto.

De sua experiência como homem de serviços gerais para Picasso, ele disse que ‘ainda assim foi fabuloso e extraordinário que alguém como eu, uma pessoa comum, tenha podido conhecer gente como aquela’.



Fonte:  Elian Peltier|  NYT / FSP



(JA, Nov19)



sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Arte Representa



São Paulo - Uma joia rara, em pleno bairro da Moóca



Mural do Ateliê Artístico Moral inspirado na obra do artista plástico José Washt Rodrigues





Douglas, dirigia seu carro pela Avenida Paes de Barros, no bairro paulistano da Moóca, quando, ao parar no semáforo, deparou com um magnífico mural sobre São Paulo, na parte interna de um edifício.


Como estava parado no trânsito, observou bem a entrada do edifício cujo nome é São Raphael, um prédio entre tantos outros desta movimentada avenida. O que viu foi uma bela pintura no corredor que leva à garagem.


O semáforo abriu, os carros que estavam atrás começaram a buzinar e Douglas teve que seguir seu caminho.

Encantado com o que viu, na mesma semana voltou ao local caminhando a pé, e observou que ali não havia apenas uma pintura. Existia, isso sim, uma verdadeira obra de arte dedicada a São Paulo.

Tocou o interfone e pediu ao porteiro para conversar com o responsável e conhecer o espetacular mural.

Foi gentilmente recebido pela síndica, Sonia Elias Vidal que prontamente contou a ele um pouco da história deste enorme painel de azulejos, colocado dentro de um edifício residencial.

Inaugurado em 1959, o edifício São Raphael é um dos mais antigos da Moóca, tendo sido construído pelo espanhol Raphael Jurado que fez o prédio pensando na moradia de suas cinco filhas e mais um único filho.

Disse a síndica ter sido este o primeiro prédio daquela avenida a ter elevador, motivo que inspirou o construtor a marcar presença com algo inusitado que chamasse a atenção dos visitantes.

Raphael Jurado então contratou os serviços em azulejos produzidos pela Ateliê Artístico Moral, cujas obras estão espalhadas em outros locais cidade de São Paulo e pelo interior paulista.

O mural mostra uma mulher apresentando a capital paulista em duas épocas, tendo do lado esquerdo a São Paulo antiga, cuja inspiração é uma das famosas aquarelas de José Wasth Rodrigues, mostrando a antiga igreja do então Largo da Sé em 1859.

Pelo lado direito do mural, se avista a São Paulo moderna na época em que o prédio foi inaugurado - cem anos depois da primeira imagem, mostrando o Viaduto Santa Ifigênia, o Vale do Anhangabaú e seus arredores, tudo isso entrelaçado pela bandeira paulista.

A magnífica obra está muito bem cuidada pelo condomínio do edifício São Raphael, cuja síndica dá uma atenção especial para que ela se mantenha sempre limpa e preservada.

Douglas Nascimento, como paulistano, agradece ao construtor Raphael Jurado pela inspiração de ornamentar seu edifício com uma obra artística de tamanha beleza, que releva a importância desta grande cidade para todos os brasileiros, e enfatiza: ‘Pessoas como ele é que nos fazem amar ainda mais a nossa cidade’.


‘São Paulo sempre nos surpreende’






Fonte: Douglas Nascimento, 2013, jornalista, fotógrafo, memorialista e pesquisador independente | Portal São Paulo Antiga



(JA, Nov19)



sexta-feira, 15 de novembro de 2019

História da estátua censurada em São Paulo



A estátua ‘O Beijo Eterno’ foi inspirada em um poema de Olavo Bilac


'Beijo Eterno', 1920, de  William Zadig, 1884-1952, escultor sueco


Ela tem uma história de vida inusitada para uma estátua.

Mas é difícil saber o motivo olhando para ela agora, em uma tarde ensolarada de quinta-feira no centro de São Paulo. Não existe qualquer placa explicativa sobre aquele beijo. Ou o que ela enfrentou para estar ali: a censura, o discurso de um político indignado, abaixo-assinado de moradores, fúria e preconceito de parte da imprensa paulistana.

Enquanto os alunos da tradicional Faculdade de Direito da USP, conhecida como Largo São Francisco, entram no prédio para assistir às aulas, o monumento ‘O Beijo Eterno’ na entrada parece apenas o que é de fato: uma estátua de bronze com um homem e uma mulher, nus, beijando-se.

Considerada ‘imoral’ nos anos 1960, ela chegou a ser retirada do espaço público algumas vezes, porque representava um ‘acinte ao decoro e aos bons costumes do paulistano’.

Uma história parecida ocorreu décadas depois, no início de setembro deste ano, quando a representação artística de outro beijo, dessa vez, entre dois personagens gays de uma história em quadrinhos, sofreu uma tentativa de censura por parte do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB).

O político e ex-pastor evangélico considerou a cena ‘inadequada’ para menores de idade, e tentou retirar a obra da Bienal do Livro, embora a lei não diga que um beijo, hétero ou homossexual, seja inapropriado para crianças e adolescente.

Porém, a censura ao livro foi proibida por uma decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Tofolli — que, coincidentemente, formou-se em Direito no Largo São Francisco, onde atualmente se encontra O Beijo Eterno.

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PSC), disse que o beijo entre dois personagens gays em uma HQ era impróprio para menores de idade

A história de um beijo

A estátua foi criada em 1922 como parte de um grande monumento em homenagem a Olavo Bilac, 1865–1918, poeta parnasiano bastante popular no início do século 20.

Antes de morrer, o escritor havia se tornado um ídolo dos estudantes do Largo São Francisco. Embora nunca tenha se matriculado no curso de Direito, chegou a frequentar algumas aulas na faculdade por dois ou três anos.

Além da literatura, ele ganhou fama entre universitários por um motivo político, segundo Heloisa Barbuy, professora de museologia da USP e autora do livro ‘As Estátuas da Faculdade de Direito’ (Ateliê Editorial).

‘Na faculdade, ele ficou famoso por ser um dos principais líderes do movimento nacionalista, que, na época da Primeira Guerra Mundial, teve bastante importância no país’, explica Barbuy. ‘Em 1915, Bilac chegou a fazer um discurso na faculdade que ficou muito famoso, emocionando as pessoas. Décadas depois, os estudantes ainda citavam de cor parte desse texto’.

Quando Bilac morreu, em 1918, um grupo de estudantes quis homenagear o poeta com um monumento público. Para isso, fizeram um financiamento coletivo para bancar o projeto, um conjunto de oito figuras: entre elas, Pátria e Família e O Caçador de Esmeraldas. Já O Beijo Eterno é uma representação de um poema homônimo de Bilac.

O trabalho foi dado ao escultor sueco William Zadig. Na última hora, entretanto, faltou dinheiro para completar as estátuas, mas os alunos da Faculdade de Direito foram socorridos pelo então presidente da Liga Nacionalista, Frederico Vergueiro Steidel. A entidade ‘passou o chapéu’ no comércio paulistano e em redações de jornais, para arrecadar o valor que faltava.


  O poeta Olavo Bilac, 1865-1918, nunca cursou Direito, mas virou um ídolo no Largo São Francisco
                    

O enorme monumento foi inaugurado na confluência das avenidas Paulista, Consolação e Angélica, em 7 de setembro de 1922, para coincidir com o centenário da Independência do Brasil.

‘Inicialmente, a obra foi muito elogiada nos jornais. Mas, depois de alguns meses, começaram as críticas’, diz Heloisa Barbuy. ‘Uma das publicações da época, de ‘A Gazeta’, criou uma campanha contra o monumento e pediu inclusive sua demolição, dizendo que ele não tinha qualidades estéticas’.

Havia também reclamações pelo fato de o escultor ser estrangeiro, embora Zadig já morasse no Brasil havia anos, e fosse casado com uma brasileira. ‘Era um momento em que o nacionalismo estava em todas as discussões, inclusive na arte. Havia um sentimento de valorização de aspectos nacionais. A Semana de Arte Moderna de 1922 tinha acontecido havia poucos meses, reafirmando essa característica, mesmo que na época ela não tenha tido a importância que se dá hoje’, diz Barbuy.

Por outro lado, o jornal A Gazeta afirmou que ‘O Beijo Eterno’ não tinha qualquer relação com o famoso poema de Bilac, porque a estátua representava um encontro amoroso entre uma índia e um português, cena que não é citada em nenhum dos 59 versos da poesia.

Essa foi a primeira vez que alguém interpretou a personagem feminina do monumento como uma índia — talvez pelo formato de seu cabelo, e por uma faixa ao redor da cabeça. O homem tinha característica caucasiana e, por isso, talvez tenha ganhado a alcunha de europeu.

‘Não se tem informação de que o artista queria retratar um beijo inter-racial entre uma índia e um branco, mas foi assim que a obra ficou conhecida. E isso foi tratado de maneira preconceituosa na imprensa. ‘A Gazeta’ chamou a personagem de bugre, uma palavra pejorativa para se referir aos indígenas’, diz Barbuy.



Uma multidão acompanhou a inauguração do monumento a Olavo Bilac, em 7 de setembro de 1922

Não há registros de que, na década de 1920, alguém tenha se escandalizado com o fato de a dupla estar nua. Reclamações contra o ‘conteúdo sexual’ só viriam décadas depois.

A historiadora Heloisa Barbuy acredita que a campanha contra o monumento a Bilac, nessa fase, tinha mais a ver com motivações políticas, que são muito difíceis de compreender agora, quase um século depois. ‘Era um momento conturbado, com a convergência de muitos grupos políticos. Talvez, essa campanha tenha ocorrido para atacar Frederico Vergueiro Steidel, presidente da Liga Nacionalista, que participou ativamente da confecção da obra’.

O monumento foi finalmente desmontado em 1935, quando a prefeitura mudou o trânsito na região. Algumas das peças foram levadas para outros pontos da cidade.

Por sua vez, ‘O Beijo Eterno’ foi parar em um depósito da prefeitura, onde permaneceu por muitos anos.

Até que apareceu Jânio Quadros.


Os bons costumes dos moradores do Cambuci

Provavelmente, quando assumiu o cargo de prefeito de São Paulo em 1953, Jânio Quadros conhecia a história de ‘O Beijo Eterno’, pois ele também havia se formado em Direito no Largo São Francisco, onde a estátua era célebre.

‘Em 1956, ao ver a obra parada em um depósito, Jânio decidiu levá-la para o Cambuci, bairro onde ele morava’, conta Giselle Beiguelman, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e autora do livro ‘Memória da amnésia: Políticas de esquecimento’ (Edições Sesc), lançado recentemente.

Segundo uma reportagem do jornal O Estado de São Paulo na época, a prefeitura tinha instalado, anos antes, a imagem na entrada do colégio estadual Fernão Dias Paes, em Pinheiros. Mas ela ficou na escola por um brevíssimo período, porque os pais dos estudantes se mobilizaram para retirá-la. Eles diziam que a figura era ‘imoral’.

Já no Cambuci, boa parte dos moradores também não ficou nada contente com a presença da escultura. Foi organizado um longo abaixo-assinado para que a obra fosse removida imediatamente do bairro, alegando que ela atentava contra os bons costumes.

O então prefeito, que depois viraria presidente da República, não resistiu à pressão e retirou o monumento das ruas do Cambuci. Censurado, ‘O Beijo Eterno’ voltou ao depósito da prefeitura, onde não podia ser visto pelo grande público.

Mas, de fato, a estátua mostra muita coisa?


A estátua foi censurada por seu 'conteúdo' impróprio aos bons costumes do paulistano

 A resposta depende da época em que você vive.

O personagem masculino está ligeiramente curvado sobre a moça, com uma das mãos nas costas dela e outra mais abaixo, na cintura. Já a mulher se estica para alcançar a boca do amante, colocando o braço direito ao redor da cabeça dele, que, aliás, parece desproporcionalmente grande em relação ao resto do corpo. 

Ambos estão nus, com seios, nádegas e pênis (não ereto) à mostra. A cena congelada em bronze poderia representar o momento anterior ao início de uma relação sexual.

Hoje em dia, nossa exposição a conteúdos eróticos e pornográficos é muito mais frequente, então a estátua não parece ‘nada demais’, tanto que ela passa quase despercebida no calçadão que se estende à entrada da Faculdade de Direito da USP. Ninguém para na sua frente e diz, escandalizado: ‘que absurdo, temos aqui uma cena de sexo’.

Mas nos anos 1950, década anterior à chamada revolução sexual, a pornografia ou cenas eróticas não eram tão acessíveis, menos ainda no espaço público. Então, para um morador do Cambuci daquela época, talvez ‘O Beijo Eterno’ fosse um pouco demais. Não que a história da arte não tenha há séculos milhares de quadros e monumentos com personagens nus, diga-se, mas é possível que eles choquem menos estando dentro de um museu.

Para Beiguelman, não apenas a cena sexual causou rebuliço, mas o contexto dos personagens. ‘Na minha concepção, além dos corpos nus, tinha essa situação de ser um homem branco com uma indígena. Isso era um problema para os padrões morais da época - as pessoas consideravam um relacionamento como esse ofensivo e censurável. A cidade era mais preconceituosa, e as questões de gênero e raça eram mais veladas’, diz.

A professora cita outras estátuas que passaram por processo semelhante, de perseguição e censura, em São Paulo, mas nenhuma foi ‘tão polêmica’ quanto ‘O Beijo Eterno’.

‘Bem ao lado dela, no Largo Francisco, há o ‘O Menino e o Catavento’, que também foi removido uma vez porque ele está nu. Há também ‘O Fauno’, do (artista modernista) Victor Brecheret, que foi retirado de uma praça no Centro, depois que algumas pessoas começaram a fazer um culto noturno em frente à obra’, explica.

‘O Monumento a Garcia Lorca virou alvo do Comando de Caça aos Comunistas, durante a ditadura militar, porque ele homenageava o poeta espanhol, que era comunista e homossexual’.


O incrível retorno de O Beijo Eterno


Quando a estátua foi retirada novamente das ruas, os alunos da Faculdade de Direito da USP decidiram agir


Dez anos depois da censura no Cambuci, em 1966, o então prefeito José Vicente Faria Lima decidiu instalar ‘O Beijo Eterno’ na entrada do túnel da avenida 9 de Julho, no centro da cidade. Mas houve nova resistência.

‘Dizendo-se portador de memorial assinado por senhoras residentes da 9 de Julho, o sr. Antônio Sampaio, membro da Arena (partido da ditadura), solicitou a retirada da estátua. A solicitação foi feita por meio de um discurso na Câmara’, escreveu o ‘O Estado de São Paulo’ em 8 de outubro de 1966. ‘Segundo o vereador, a estátua constitui um verdadeiro acinte ao decoro e aos bons costumes do paulistano'.

‘O Beijo Eterno’ então voltou a ser escondido no depósito, segundo o jornal. Mas, dessa vez, uma reviravolta selaria o destino da escultura: os estudantes da Faculdade de Direito decidiram agir. Os jovens fretaram um caminhão, invadiram o espaço da prefeitura, e furtaram a figura de bronze de 400 quilos.

Já o jornal Folha de São Paulo contou a história de uma maneira um pouco diferente: segundo a publicação, a estátua não chegou a sair da entrada do túnel. 
Antes de ir para o depósito municipal, ela foi resgatada pelos universitários.

Seja como for, momentos depois, ela foi instalada em frente ao campus. Os alunos ainda fizeram uma ameaça: se a estátua fosse retirada do Largo São Francisco, iriam cobrir com panos todas as outras representações de pessoas nuas que houvesse na cidade.

‘Os estudantes se sentiram no direito de pegar a estátua, porque ela é um patrimônio da faculdade. Foi Largo São Francisco que financiou sua construção’, diz José Carlos Madia de Souza, presidente da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da USP.


Último verso


Desde 1966, estátua está no Largo São Francisco


Depois do furto, ‘O Beijo Eterno’ não saiu mais do calçadão em frente à faculdade: passou incólume até pela ditadura militar, que tinha uma máquina ativa de censura à liberdade de expressão e artística.

Hoje, ela é só mais uma estátua no centro de São Paulo, e sua história ficou nos livros e nos arquivos de jornais. ‘Os estudantes passam por ela e nem sabem o que aconteceu. Mas isso é normal, o tempo passa e as pessoas se esquecem’, diz Madia de Souza.

Ao menos que haja outra reviravolta ou uma nova onda de censura, os dois amantes ficarão expostos por ali, paralisados em um beijo moldado em bronze para ser eterno, como queria o último verso do poema de Olavo Bilac:


"Quero um beijo sem fim
Que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo!
Ferve-me o sangue: acalma-o com teu beijo!
Beija-me assim!
O ouvido fecha ao rumor
Do mundo, e beija-me, querida!
Vive só para mim, só para minha vida,
Só para o meu amor!"



Fonte: Leandro Machado, BBC News Brasil-SP



(JA, Nov19)



quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Museu de Arte do Rio - MAR, à beira de fechar



Museu no Rio de Janeiro corre o risco de fechar por conta de atrasos nos repasses de verba da Prefeitura do Rio ao Instituto Odeon, organização social (OS) que administra o museu



Fachada do Museu de Arte do Rio (MAR), na Praça Mauá

Funcionários do Museu de Arte do Rio (MAR), na zona portuária, receberam aviso prévio esta semana, e a instituição corre o risco de fechar. O motivo são os atrasos nos repasses de verba da Prefeitura do Rio ao Instituto Odeon, uma organização social (OS) que administra o museu. A Prefeitura do Rio admite os problemas de pagamento.

O Odeon encaminhou ofício à Secretaria Municipal de Cultura (SMC) na sexta-feira, 8, informando que iniciaria nesta segunda-feira as ações de desmobilização no MAR, inclusive com o aviso prévio a seus funcionários. Segundo o instituto, o motivo era garantir os direitos trabalhistas de todos.

‘O início do processo de desmobilização acontece após os consecutivos atrasos no pagamento de parcelas do contrato de gestão, incluindo a parcela de setembro que até o momento não foi depositada. Com isso, não há mais fôlego financeiro para manter o equipamento funcionando’, informou a OS, em nota enviada à reportagem.

Segundo o instituto, 126 funcionários trabalham no MAR – 80 são próprios, e 46, terceirizados. O Odeon informou ainda que o pagamento aos fornecedores está em dia. No momento, afirmou, o museu opera normalmente, mas isso poderá ser reavaliado.

‘Desde o início do contrato com a Prefeitura do Rio de Janeiro, há 7 anos, o Instituto cumpriu com excelência todas as metas pactuadas, foi audacioso na gestão e honrou todos os compromissos assumidos, não apenas com seus fornecedores, parceiros e apoiadores, mas também com a sociedade carioca e com os artistas’, explica no texto. 

‘O Instituto Odeon ainda acredita numa solução que permita a continuidade da gestão, e coloca-se à disposição da Prefeitura para seguir à frente do Museu no caso de uma eventual melhora do cenário’.

A SMC confirmou os problemas financeiros e afirmou que busca uma solução para manter o museu em atividade. A secretaria alega que a administração municipal enfrenta problemas de caixa por estar ‘pagando uma dívida bilionária deixada pela gestão anterior’ e que o período é especialmente difícil em virtude do pagamento do 13º salário, que, segundo a pasta, ‘é uma das prioridades’.

‘O aviso prévio (aos funcionários do MAR) é uma medida preventiva adotada pelo Instituto Odeon diante de seus funcionários. A Secretaria Municipal de Cultura está buscando junto à Secretaria de Fazenda uma solução para equacionar os pagamentos’, diz texto encaminhado à reportagem. Segundo a SMC, uma solução será apresentada ainda esta semana.

Não foram localizados representantes da administração anterior para se pronunciar.



     


Fonte: Marcio Dolzan  |  OESP



(JA, Nov19)




terça-feira, 12 de novembro de 2019

Constituição da República




Pesquisa identificou personagens históricos e simbologia de disputas políticas em quadro de Aurélio de Figueiredo


Aurélio de Figueiredo, 1856-1916  -^-  'Compromisso Constitucional'

Em um contexto em que a Constituição brasileira volta ao centro das discussões políticas, o ato de jurar obediência à Carta Magna ganha nova simbologia com os 130 anos da Proclamação da República.

A era republicana, que se inicia em 1889 com marechal Deodoro da Fonseca como presidente promulgado, se consolida quando ele é eleito indiretamente em 1891 pelos parlamentares da Assembleia Constituinte. Os legisladores também formulam a primeira Constituição do novo regime.

É a Constituição de 1891 que está acima do novo presidente e à qual ele precisa jurar obediência —sua interpretação não deve mudar conforme os anseios do momento.

A cena, a primeira do tipo, foi registrada em ‘Compromisso Constitucional’, um icônico óleo sobre tela, de 3,30m de altura por 2,57m de largura, pintada pelo republicano e abolicionista Aurélio de Figueiredo, 1856-1916. O artista também pintou ‘O Último Baile da Ilha Fiscal’, que retrata o evento luxuoso às vésperas da derrubada do Império.

‘A obra tem um simbolismo muito forte. Está representado ali o início da República, é quando a República está sendo constituída no Brasil, quando o presidente jura obediência à Constituição. Isso tem uma importância extraordinária’, explica Mário Chagas, diretor do Museu da República, no Rio de Janeiro, onde a pintura fica exposta.

A tela leva o mesmo nome da cerimônia que se repete a cada novo mandato presidencial desde então. ‘Compromisso Constitucional’ foi pintado cinco anos depois da Proclamação para ornar a nova sede do governo e deixar registrado o momento para a posteridade.

O novo regime precisava de novos discursos, incluindo obras de arte.
Com o fim do Império, o governo passou para o Palácio de Nova Friburgo, chamado mais tarde Palácio do Catete e atual Museu da República, no Rio.

A cena de 1891, porém, assim como a Assembleia Constituinte, ocorreu no Palácio de São Cristóvão, atualmente Museu Nacional, destruído em incêndio em 2018.
Mais de um século depois de sua elaboração, a pintura do paraibano Aurélio de Figueiredo segue exercendo fascínio porque está repleta de símbolos a serem decifrados.



As percepções do artista foram colocadas sutilmente em detalhes que vão desde a figura do taquígrafo, que olha para fora da tela em direção a quem observa o desenho, passando pela posição das flores, até a altura em que estão desenhadas as figuras históricas.

‘É sintomático que o artista pinte as flores em frente ao Floriano Peixoto e não ao Deodoro da Fonseca. Eles disputaram o poder entre si. De modo delicado, este conflito está colocado na tela’, diz Chagas, que também é professor de museologia na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

Foram duas votações separadas, para presidente e vice. Tanto Deodoro da Fonseca (fig. 2) como Floriano Peixoto (fig. 4) disputaram a Presidência. Fonseca recebeu 129 votos e Peixoto, apenas 3. Porém, para vice, Peixoto foi escolhido com 153 votos, contra os 57 do almirante Eduardo Wandenkolk (fig. 26), o preferido de Fonseca.

As flores, segundo o pesquisador, são camélias e significam tanto o abolicionismo como o republicanismo. Elas também aparecem em frente ao taquígrafo Caetano da Silva (fig. 23). ‘Ele olha para fora do quadro, como quem olha para o futuro. O taquígrafo é quem registra a memória para o porvir’, explica o diretor.

Os personagens históricos formam um círculo no quadro. É simbólico, entretanto, que a figura de mais destaque ali não seja Deodoro da Fonseca, mas Prudente de Moraes (fig. 1). Ele está posicionado acima dos demais.

Moraes era o presidente da Assembleia Constituinte, ou seja, conduziu os trabalhos de elaboração da Constituição republicana.

‘Podemos observar um jogo de poder. Moraes presidiu a Assembleia, mas, mais do que isso, foi eleito o primeiro presidente civil do Brasil na eleição direta, de 1894. É para monumentalizar a cena na nova sede do seu governo que a pintura foi encomendada’, explica Chagas.

Desde a década de 1990 que o pesquisador investiga a pintura, dando sequência para um trabalho iniciado pela professora Gilda Lopes.

Em trabalho publicado em 2018, Chagas identificou o próprio pintor (fig. 29) em um autorretrato —ele não estava presente na sessão—, suas filhas e esposa (fig. 36, 37, 38 e 39).  As mulheres, vale lembrar, foram excluídas do direito ao voto pela Constituinte, mas estão presentes na pintura.

O irmão do artista e seu professor, Pedro Américo (fig. 30), um dos principais artistas do período imperial e deputado constituinte pela Paraíba, foi desenhado ao seu lado. A pintura tem um único negro, o abolicionista e deputado de São Paulo, Francisco Glicério de Cerqueira Leite (fig.34).

O livro que Deodoro da Fonseca segura, com a capa verde escura, é a Constituição de 1891, cujo original é parte do acervo do Museu da República.

O pesquisador chama a atenção para o fato de que todos os votos que elegeram o presidente indiretamente cabiam em uma urna do tipo papeleira, que também está no museu. Hoje, compara, são milhões de votos processados em urna eletrônica.

Além disso, o Legislativo agora é mais diversificado do que o registrado na pintura. ‘Se fosse hoje, teria mais negros, mulheres, homossexuais. Esse círculo teria outra representação’, diz Chagas.


‘Último Baile da Ilha Fiscal’, 1905


A tela ‘O Último Baile da Ilha Fiscal’ é uma representação da última festa realizada no palácio da Ilha Fiscal, no Rio de Janeiro, no dia 9 de novembro de 1889. Mais do que um retrato da festa, o trabalho de Figueiredo é uma alegoria da transição do império para a república.


Figueiredo pintando o Último baile da ilha Fiscal


Aurélio de Figueiredo pintando ‘O Último Baile da Ilha Fiscal’. Ele está em pé, e segura instrumentos de pintura. Atrás dele, um quadro traz homens e mulheres bem vestidos.



Fonte: Paula Sperb  |  FSP




(JA, Nov19)