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sexta-feira, 9 de agosto de 2019

'Abaporu', Tarsila do Amaral






‘Esnobaram o Abaporu’, diz ex-dono do mais famoso quadro brasileiro. Raul Forbes revela detalhes da tumultuada venda da tela assinada por Tarsila do Amaral

O que vivenciei é uma amostra fiel de como parte dos brasileiros trata a arte nacional. Eu adquirira a obra-prima Abaporu, de Tarsila do Amaral, em 1984, do empresário Érico Stickel. Foi-me dada a chance de pagá-la em cinco parcelas, mas acertei de uma vez só: 250 000 dólares.

Depois de ganhar e perder muito dinheiro com ações, vivi um período de problemas financeiros e tive de vendê-la a um colecionador argentino, com dor no coração. O ano era 1995. Como integrava o conselho da Bolsa de Valores, que à época montava sua coleção de arte, ofereci algo que qualquer especialista em arte jamais recusaria.

Para minha surpresa, ninguém se apresentou. Fui em busca de outros compradores, de empresas a pessoas físicas, sem sucesso. A única saída foi vender o quadro em um leilão fora do Brasil, na Christie’s de Nova York. Uma vez marcada a data do evento, aconteceu o imprevisível. Precisei travar uma batalha judicial contra o governo do Estado de São Paulo, que, ao saber da venda da tela modernista, tomou uma medida inédita: tombou o Abaporu como patrimônio estadual.

Com essa medida arbitrária, o colecionador seria impedido de comercializar o quadro e até mesmo de emprestá-­lo a um museu sem autorização prévia.

Entrei com uma liminar e, finalmente, o Abaporu embarcou para os Estados Unidos, menos de 24 horas antes de o leilão começar, escoltado por polícia armada. Em Nova York, houve outra surpresa. A guerra judicial com o governo paulista afugentou os dois únicos interessados que até então tinham feito os cadastros. A diretora da Christie’s perguntou se eu queria desistir, diante do iminente risco de encalhe. Não topei, já não poderia desistir. Imagine voltar para o Brasil com o Abaporu debaixo do braço. Seria um retrocesso enorme para a arte brasileira.


Raul Forbes, ex-dono da mais famosa tela brasileira: 'Não sinto tristeza por ter vendido o Abaporu, pois a obra me ajudou em um momento de dificuldade financeira'


Na hora do leilão, uma surpresa: o argentino Eduardo Costantini deu o maior lance e arrematou a tela por 1,3 milhão de dólares. Levou também o Autorretrato com Macaco e Papagaio, da Frida Khalo, por outros 3,2 milhões de dólares. Costantini formava sua coleção de obras de arte latinas para compor o acervo do Malba, em Buenos Aires.

Se foi complexo tirar o Abaporu do Brasil, também foi difícil permitir seu ingresso na Argentina. O governo do país vizinho decidiu taxar em 10% o valor das obras adquiridas. Enquanto Costantini lutava na Justiça local para diminuir o imposto, os quadros de Tarsila e Frida ficaram exilados no Uruguai.

À época, eu possuía uma casa em Punta del Este, e tive a chance de rever meu antigo quadro, já um ano após o leilão. Costantini organizou uma exposição no Museo Nacional de Artes Visuales, de Montevidéu, com a presença do então presidente uruguaio, Julio María Sanguinetti. O quadro da Frida, que eu particularmente acho horrível, estava cercado por uma proteção de vidro, na expectativa de ser a grande atração da mostra.

Na abertura, no entanto, a realidade: apenas quatro gatos-pingados apreciavam a tela da mexicana, enquanto 150 pessoas admiravam o Abaporu. Na hora, Costantini teve a certeza de ter feito um excelente negócio. Aliás, ao perceber a bobagem de não ter ficado com o Abaporu, a Bolsa de Valores pediu que eu tentasse repatriá-lo. O orçamento era de 3 milhões de dólares. Ainda estiquei a corda para 4 milhões, mas o atual dono não quis nem saber.

Hoje, o quadro está avaliado em pelo menos 75 milhões de dólares. Acompanhei, agora, o extraordinário interesse pela obra da Tarsila no Masp, em São Paulo, com filas a perder de vista, e me senti orgulhoso.

Não sinto tristeza por ter vendido o Abaporu, pois a obra me ajudou em um momento de dificuldade financeira. Infelizmente, nos últimos dias, por uma questão de saúde, não tive a chance de apreciá-lo pessoalmente.




Fonte:  Raul Forbes |  João Batista Jr, Rev.Veja





(JA, Ago19)




terça-feira, 30 de julho de 2019

Tarsila destrona Monet e vira mostra mais vista na história do Masp



Artista se firma como emblema da nova modernidade ao assumir ambivalência entre o europeu e o popular





Minutos antes da meia-noite, na virada do domingo (28) para a segunda (29), as galerias do primeiro andar seguiam abarrotadas. O público testava a paciência de seguranças posando para selfies até o apagar das luzes da mostra mais visitada da história do museu.

Encerrada no fim de semana, depois de quatro meses em cartaz, uma exposição de Tarsila do Amaral destronou Claude Monet como o maior sucesso de público do Masp —402.850 pessoas foram ver a modernista brasileira neste ano, contra 401.201 atraídos pelas telas do impressionista francês em agosto de 1997.

Na semana passada, quando chegou a 350 mil visitantes, Tarsila já tinha se tornado o artista brasileiro mais visto no museu da avenida Paulista, que alardeou cada marco dessa escalada fazendo barulho nas redes sociais e esticando os horários de abertura.

Quando os seguranças começavam a tocar o público para fora das galerias, passados dois minutos da meia-noite, Adriano Pedrosa, diretor-artístico do museu, comemorava olhando a tela de seu celular. ‘Hoje batemos 6.074 pessoas’, dizia ele, antecipando o recorde confirmado no dia seguinte.

Os números não são ultra precisos, vale lembrar. Isso porque o museu só tem os dados da atual gestão, iniciada há cinco anos. Mas um levantamento rápido das últimas décadas comprova que nada bateu a marca dos 400 mil visitantes no maior museu do país, muito menos a exposição de um artista brasileiro.


Abaporu, 1925


Mais do que a gratificação instantânea de postar o selfie perfeito diante dos quadros, no entanto, a multidão alvoroçada pelas cores de Tarsila talvez buscasse nas galerias do Masp uma sensação que julgava inacessível tão perto de casa. O ‘Abaporu’, alvo de metralhadas de obturadores de telefone, virava ali um parente tropical da ‘Mona Lisa’, a grande obra-prima do Louvre.

Se o museu parisiense foi um palácio da realeza, o prédio modernista erguido por Lina Bo Bardi na avenida Paulista é um templo da fase mais heroica da nossa vanguarda arquitetônica, uma caixa de vidro flutuante tão transparente quanto impenetrável.

Não só pelo preço do ingresso —exorbitantes R$ 40—,  impagável para as classes mais baixas, mas porque museu parece até um palavrão num país que vive um de seus momentos mais agudos de ataque à cultura. Nunca uma mostra de um artista brasileiro foi tão visitada e nunca o Brasil pareceu flertar de forma tão descarada com a ideia de se firmar como o grande império da burrice.

Tarsila, na história da arte e à luz dessa ambivalência, ocupa o incômodo lugar de um agente duplo. E é inegável entender as muitas fases de sua obra como reflexo disso.
Num primeiro momento, a celebrada década de 1920, ela foi a caipirinha alternativa em Paris, uma dama da elite cafeeira que plasmou em suas telas um exotismo calculado. Estava em sintonia com o que alguns estudiosos chamam de auge da negrofilia parisiense, capitaneada por Picasso, e disposta a injetar o calor dos trópicos no seio da vanguarda europeia.

Sua obra canonizada pela crítica sugava o poder sedutor da gente, da fauna e da flora de uma ex-colônia ancorada na escravidão para decantar toda essa potência nas superfícies anódinas, resplandecentes de um cubismo dúbio. Suas figuras parecem mecânicas e artificiais, mas não na tentativa de seguir um plano estético e conceitual traçado de antemão e sim para se adequar ao filtro plástico mais superficial das modas da época.

Depois, naquilo que talvez fale bem mais de perto à realidade daqueles que nunca pisaram num museu mas encararam horas de espera nos dias de entrada grátis, Tarsila amansou seus filtros geometrizantes e retratou altares improvisados nas casas de interior, anjinhos e santinhos, festas do povo. Desafiou o que ela mesma chamava de ‘gosto apurado’ para se entregar à exuberância do popular ou do caipira, aquilo que, décadas mais tarde, seria o Brasil da bossa nova em atrito com aquele das modinhas de viola.

Quando batizou sua exposição mais vista de todos os tempos ‘Tarsila Popular’, o Masp deixava claro que era o Brasil da feira de frutas, o das procissões na roça e do Carnaval que moldava as dezenas de obras da artista fora de sua fase arquitetada para impressionar olhares estrangeiros.

Mas encaixou no mesmo recorte aquilo que catapultou Tarsila ao núcleo duro do que agora se entende como a mais nova modernidade. A artista enfim encontrou abrigo na concepção plural e esgarçada desse movimento que tardou a dominar o pensamento dos maiores e mais influentes museus do planeta.

Em Nova York, o MoMA acaba de desembolsar US$ 20 milhões por 'A Lua', um quadro menor da fase mais aclamada da artista —a negociação concluída há pouco impediu que a pintura estivesse na mostra.

O ‘Abaporu’, talvez a obra mais célebre a deixar o país na história recente, detona discursos ufanistas a cada uma das muitas vezes que aparece numa exposição em solo nacional. A tela comprada pelo argentino Eduardo Costantini, na década de 1990, por pouco mais de US$ 1 milhão, foi a vedete inevitável da mostra, mesmo que sua última passagem por São Paulo, há 11 anos, tenha levado só 108 mil pessoas à Pinacoteca.


Antropofagia,  1929

 Em todo caso, o quadro do Malba, de Buenos Aires, é só uma ponta de um triângulo. Enquanto ‘Abaporu’ e ‘Antropofagia’, ambas na mostra, são a síntese plástica mais bem-sucedida do ‘Manifesto Antropófago’ de Oswald de Andrade, marido da artista à época da criação desses trabalhos, uma terceira obra foi a raiz dessa espécie de santíssima trindade da modernista.


A Negra, 1923

Mais controversa das telas de Tarsila, ‘A Negra’ foi o quadro abre-alas da mostra, num gesto ousado de seus organizadores —a visão estilizada da velha ama de leite da fazenda da família da artista no interior paulista não deixa de carregar todas as marcas de uma pintora atravessada pela força do furacão das vanguardas e um apego ainda que torto e fetichista à sua terra natal.

Tarsila pintou o quadro em 1923 em Paris, vista de perto por seu mestre à época, Fernand Léger. Não espanta que a visão então prosaica de uma negra velha anônima, tenha se transformado em máscara de feições animalescas, desproporcional em relação às dimensões do quadro. Ela é mais seios, mais lábios, mais nariz e pés que qualquer outra coisa. No lugar da delicadeza feminina, a brutalidade feroz de um bicho enjaulado.

Enquanto a artista pintava ‘A Negra’, Oswald de Andrade discursava na Sorbonne sobre como faltava ao Brasil se reconciliar com sua identidade negra e indígena ao adentrar a modernidade, mesmo que a visão de Tarsila lançada sobre a ex-escrava fosse a de uma branca enquadrando sua serviçal de pele escura castigada pelo trabalho braçal.

 
Tarsila do Amaral, Autorretrato, 1923 – ‘Manteau Rouge’


Tarsila, em seu autorretrato de vestido vermelho pendurado ao lado da ‘Negra’, faz com a mão o mesmo gesto da ama de leite, como se visse NELA algo da própria identidade.

Sua mãe preta, já dizia o crítico venezuelano Luis Pérez-Oramas, que organizou a retrospectiva da modernista no MoMA no ano passado, seria ‘a mãe de todos nós’. Gilberto Freyre, lembra a pesquisadora Irene Small no monumental catálogo da exposição do Masp, já celebrava —não sem controvérsia— a figura da mulher negra escravizada como a ‘bela mulata’ pronta para ‘amamentar o Brasil inteiro’.


Fila gigante no vão livre do MASP para exposição de Tarsila do Amaral


Talvez as hordas que lotaram o museu da avenida Paulista estivessem mesmo ali à procura de uma linha evolutiva à qual se filiar num país sem memória. Tarsila foi alçada à estranha condição de matriarca de Pindorama, lembrando Oswald, a artista na origem de tudo e de todos.


Os maiores públicos do MASP

  1. ‘Tarsila Popular’ (2019)  - 402.850
  2. ‘Monet: o Mestre do Impressionismo’ (1997) -  401.201
  3. ‘Salvador Dalí no Masp’ (1998)  -  200.143
  4. ‘Picasso: Anos de Guerra 1937-1945’ (1999)  -  202.522
  5. ‘Caravaggio e Seus Seguidores’ (2012)  -  185.117
  6. ‘Histórias Afro-Atlânticas’ (2018)  -  180.174



Fonte: Silas Martí   |   FSP



(JA, Jul19)


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