Supor subversão de Rafael em pintura no Vaticano é indecoroso,
avalia professor da USP. Para ele a interpretação de crítico de arte americano
sobre 'Escola de Atenas' é exagerada
‘Escola de Atenas’, de Rafael Sanzio - Musei Vaticani
Professor da USP contesta interpretação de crítico de arte americano,
segundo a qual Rafael incluiu detalhe em seu célebre afresco no Vaticano para
subverter a homenagem aos pensadores da antiguidade encomendada pelo papa, o
que teria realçado na obra a efemeridade de todo poder. Embora interessante,
essa conclusão desconsidera as características da produção artística do início
do século 16, argumenta o texto abaixo.
Em um artigo recente, publicado na BBC Culture e intitulado ‘The School of Athens: A Detail
Hidden in a Masterpiece’ (a
escola de atenas: um detalhe escondido na obra-prima), Kelly Grovier, escritor, poeta, e
crítico de arte norte-americano, propõe-nos uma nova interpretação sobre o mais
famoso dos quatro painéis pintados por Rafael Sanzio para a Stanza della
Segnatura, no Vaticano: o artista teria deixado ali um detalhe, com o propósito
de subverter a principal mensagem do quadro.
A pintura ‘Escola de Atenas’ foi
executada entre 1509 e 1510, atendendo a um pedido do papa Júlio 2º
para redecorar o lugar.
Rafael tinha então apenas 26 anos. Grovier parte fundamentalmente de duas hipóteses para
construir a sua nova interpretação desta obra, lembrando de início que Rafael
deve ter se conscientizado da grande ‘aposta’ e dos imensos riscos de sua
empresa.
A ‘Stanza della Segnatura’ (Sala da Assinatura) era o lugar onde os mais importantes
documentos papais eram assinados, e o artista talvez tenha pensado na
possibilidade do poder de aconselhamento de suas pinturas sobre os poderosos
que se utilizavam daquele cômodo.
Para o crítico, o primeiro grande
desafio de Rafael foi tornar reconhecíveis as figuras dos principais pensadores
da antiguidade pagã (filósofos,
geômetras, matemáticos e outros), uma vez que apenas pelas vestes de cada um, muito
semelhantes entre si, as atribuições e os caracteres de cada personagem em cena
não poderiam ser claramente expressos.
Diferentemente de Michelangelo, que
um ano antes lidara com as figurações para a Capela Sistina, onde facilmente se
pode reconhecer os personagens das histórias bíblicas, Rafael tinha ao seu alcance
apenas meios insuficientes para compor figuras que correspondessem às
expectativas dos futuros observadores da pintura: como representar Anaximandro,
Sófocles, Antístenes, Boécio etc.? Como diferenciá-los?
Os dois personagens centrais do
afresco, Platão e Aristóteles, trazem em suas mãos livros cujos títulos,
legíveis para o espectador, embora discretamente pintados, nos mostram as obras
‘Timeu’ e a ‘Ética’, revelando, deste modo, por alusão, os seus autores. O
problema, neste caso, está resolvido. Mas e todas as outras figuras? Como
identificá-las?
Platão e Aristóteles em ‘Escola de Atenas’
Para Grovier, a solução inventada por
Rafael foi compor ‘retratos’ híbridos, misturando os caracteres dos pensadores
antigos com os de personagens modernos, e de figuras religiosas.
Assim, em seu Platão, unem-se as
feições de Leonardo da Vinci (o seu perfil ligeiramente inclinado para a esquerda lembra o autorretrato
do artista feito em sanguínea, atualmente pertencente à coleção da Biblioteca
Real de Turim) com a do
apóstolo são Tomé, presente na Última Ceia, pintada por Da Vinci entre 1495 e 1498.
Nas mãos de Rafael, Da Vinci, com seu
espírito indômito de tudo duvidar e investigar, tornou-se Platão. Tal
estratégia teria sido utilizada também para a composição do retrato de
Pitágoras, que rabisca uma tabuinha, no primeiro plano, na parte inferior do
painel. Ao seu lado, vemos uma figura a sussurrar algo em seus ouvidos,
lembrando o anjo de são Mateus.
Para o crítico, todas as figuras ali
presentes são mescladas a personagens reais, históricos e bíblicos. Ele
acredita ainda que alguns dos principais artistas modernos desempenharam o
papel de ‘dublês’ para os personagens a serem representados na pintura,
emprestando não apenas suas aparências, mas também suas personalidades.
Pitágoras em ‘Escola de Atenas'
A sua segunda hipótese se baseia num
outro destes ‘retratos’, que foi acrescentado ao afresco, ao que tudo indica,
algum tempo mais tarde: o do filósofo Heráclito. A sua figura não está presente
no cartão preparatório feito por Rafael para a composição da pintura (atualmente na coleção da Pinacoteca
Ambrosiana).
Trata-se, na hipótese de Grovier, de
Michelangelo, também contemporâneo de Rafael e alguns anos mais velho. A sua
inclusão na pintura, numa posição melancólica (a cabeça apoiada no braço esquerdo, apertando o
ouvido, enquanto escreve com a direita de modo quase displicente ou
desconcentrado) serviria
como uma advertência aos usuários da Sala da Assinatura: Heráclito se tornou
célebre pelos seus pensamentos sobre a superfluidade, e transitoriedade de
tudo, sobre o devir, e como aquele que pregou que ‘não se pode percorrer duas
vezes o mesmo rio’.
Instalada no primeiro plano e abaixo
das figuras que dominam a parte central do afresco, Platão e Aristóteles, a
figura de ‘Heráclito-Michelangelo’ seria assim um ‘símbolo subversivo’,
propositadamente feito por Rafael para lembrar sobre a efemeridade do poder e
dos poderosos, pois tudo muda o tempo todo.
O ‘detalhe’ a que se refere o
subtítulo de seu artigo seria o pote de tinta ao lado, ao fundo da figura de
Heráclito: ‘Remova o pote de tinta do epicentro do afresco de Rafael, e a obra
se dissolve em um fiasco de formas confusas e que confundem’, diz ele.
Heráclito em ‘Escola de Atenas’
Trata-se de uma crítica interessante,
porém a sua conclusão, muito embora de todo estranha ao campo de pensamento da
idade de Rafael, é um exagero.
É necessário lembrar aos leitores e
espectadores de hoje que, na época da produção do afresco, personagens reais,
históricos e fictícios eram compostos de acordo com lugares-comuns, tópicas
como se dizia, conhecidíssimas da audiência, como caracteres a serem louvados (ou vituperados).
Isso valia tanto para a composição de
textos, poesias, histórias e cartas quanto para as obras artísticas, pinturas,
esculturas, etc.
Esses ‘lugares-comuns’ eram comuns
não só porque circulavam em muitos lugares, mas também porque podiam ser
imitados e usados livremente para a composição de uma figuração, como no caso
da pintura, verossímil para os espectadores.
Notícias sobre as ‘excentricidades’
de Michelangelo, assim como a respeito do caráter polissêmico ou investigativo
de Leonardo já circulavam como ‘retratos’ não verdadeiros, mas louváveis e
críveis, embora a primeira edição das ‘Vidas dos Artistas’, de Giorgio Vasari,
livro em que estes personagens se tornaram mais conhecidos, tenha vindo a público
apenas 40 anos depois da execução dos afrescos
(1550 na primeira edição
e 1568, na segunda).
Nesta obra se lê que ‘Rafael, ao
chegar, foi calorosamente recebido pelo papa Júlio 2º, e começou na Sala da Assinatura uma cena em que os
teólogos conciliam a filosofia e a astrologia com a teologia, na qual são
retratados todos os sábios do mundo, tudo adornado por figuras, entre as quais
alguns astrólogos, a gravarem caracteres de geomancia e astrologia em tábuas,
que enviam aos evangelistas.
Entre eles há um Diógenes com sua
taça recostado na escada, figura reflexiva e absorta, digna de louvores pela
beleza e pelas vestes. Semelhantes a este, veem-se Aristóteles e Platão, um com
o Timeu nas mãos, o outro com a Ética, ambos rodeados por uma grande escola de filósofos.
(...) Entre estes se vê um jovem de
formosa beleza, com os braços abertos de admiração e a cabeça inclinada;
trata-se do retrato de Frederico 2º,
duque de Mântua, que então estava em Roma. (...)
Também há uma figura agachada, a girar um compasso sobre as tábuas; dizem que
se trata do arquiteto Bramante, e que não se pareceria mais com ele se
estivesse vivo, tão bem retratado está’.
Não é preciso recorrer à hipótese de ‘retratos
híbridos’ feitos por Rafael para interpretar aquelas figuras. A reunião de
retratos de príncipes ou homens ilustres de sua época com os de indivíduos
antigos, tornaria a pintura mais encarecida, além de produzir uma forma de
elogio aos modernos.
Num outro trecho deste mesmo livro (sobre o outro afresco que figura os
poetas em Parnaso),
Vasari diz: ‘Há ali retratos de todos os mais famosos poetas antigos e
modernos, dos que tinham vivido e dos que viviam até o seu tempo: alguns
reproduzidos a partir de estátuas, alguns de medalhas, muitos de pinturas
antigas, enquanto outros, ainda vivos, foram retratados do natural por ele
mesmo’.
Mesmo quando não há uma concordância
plena com Vasari, parece não ter sido problema no passado a compreensão geral
do afresco como uma alegoria, dentro da qual são rendidas homenagens a diversas
figuras consideradas importantes para o círculo de Júlio 2º.
Portanto, seria impensado e
indecoroso embutir qualquer mensagem subversiva ali, ou mesmo supor qualquer
teoria conspiratória instrumentalizada pela pintura.
Roger de Piles, artista e erudito
francês, que escreveu no século 17 uma
‘Descrição da Escola de Atenas, para servir de exemplo ao tratado de invenção’,
refuta que a pintura trate da ‘concordância da filosofia e da astrologia com a
teologia’, como propôs Vasari.
De Piles nos lembra que as mensagens
transmitidas pelas pinturas feitas para as quatro câmaras estão inscritas nelas
mesmas: a primeira representa a teologia com as palavras Scientia Divinarum Rerum;
a segunda, a filosofia (‘Escola
de Atenas’) com as
palavras Causarum cognotio; a terceira, a jurisprudência com as palavras Jus
suum unicuique tribuens; a quarta, a poesia (o Parnaso) com as palavras Numine afflatur.
Rafael, diz ele, ‘que queria
representar essa ciência por meio de uma assembleia de filósofos, não pode
fazê-lo reunindo apenas aqueles de um século. Não é uma história simples que o
pintor quis representar: é uma alegoria em que a diversidade das épocas e dos
países não impede a unidade dos assuntos’.
Outrora, era também comum que
artistas recebessem alcunhas ou apelidos que denotavam algum traço de seu
caráter, ou alguma parte distintiva na sua maneira de execução ao pintar, ao
esculpir etc.
Autorretrato atribuído a Rafael, datado do começo do século 16
Por exemplo, Antônio Francisco
Lisboa, o Aleijadinho, ou Francisco José de Goya y Lucientes, o Turbulento.
Nunca existiu, contudo, um Rafael, o Rebelde. Muito pelo contrário. Diversos
discursos antigos o representaram como alguém muito disciplinado, cortês,
afável e pacificador (Leão
10º, que sucedeu a Júlio 2º, pensou em nomeá-lo cardeal) e que inclusive, segundo Vasari,
morreu ‘por excesso de amor’.
Finalmente, não há qualquer menção
nos dois autores aqui citados sobre Leonardo da Vinci ter servido para o papel
de Platão, ou de Michelangelo para o de Heráclito, o que não impossibilitaria,
dentro das preceptivas seguidas por Rafael em seu tempo, de se pensar na
possibilidade desses retratos terem sido compostos com base em suas
fisionomias, como homenagens a duas das principais emulações do jovem Rafael no
campo da arte da pintura. Só não dá para reduzir toda essa história à
representação de um único pote de tinta.
Madonna Sistina, detalhe Putti (querubins)
Fonte: Luiz Armando Bagolin, Professor
da USP e ex-diretor da Biblioteca Mário de Andrade |
FSP
(JA, Out20)