quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Exposição 'Museu Nacional Vive' traz mais de cem itens resgatados de escombros


Mostra gratuita no CCBB do Rio de Janeiro ficará aberta até 29 de abril

No centro da sala, reina iluminada uma das poucas peças que não estão protegidas por um vidro: o Trono de Daomé, um presente do reino africano que existiu até cerca de 1900, onde hoje fica o Benin, à família real brasileira.

Mas esse não é de madeira, e sim de papel machê. Também não foi doado por um rei, mas por um menino de 11 anos do Rio de Janeiro que fez o objeto com as próprias mãos ao saber que o original, exposto no Museu Nacional, foi consumido pelo incêndio que atingiu o prédio em setembro do ano passado.

O presente do aluno Miguel Nunes, que fez os pesquisadores do museu chorarem, é um símbolo do que a instituição quer a partir de agora, ao inaugurar uma exposição com mais de cem itens achados em meio aos escombros —aproximar os brasileiros de um acervo científico e cultural que é público.




A mostra ‘Museu Nacional Vive - Arqueologia do Resgate’ foi aberta na última quarta-feira (27) gratuitamente, no Centro Cultural Banco do Brasil, no centro do Rio. Durante o Carnaval, a exposição estará fechada na segunda (4) e na terça (5). Na quarta (6), abrirá a partir do meio-dia.

Ela fica em cartaz até 29 de abril e acontece quase seis meses depois da tragédia, que ainda não teve investigações concluídas pela Polícia Federal. Das 170 peças exibidas, 103 estavam no edifício no dia em que ele pegou fogo. Muitas delas ficaram inteiras e outras, parcialmente danificadas.

Coleções de antropologia, botânica, entomologia (estudo de insetos), etnologia (estudo de culturas) geologia, paleontologia, invertebrados e vertebrados fazem parte da exposição. Está ali, por exemplo, uma reprodução do famoso crânio da Luzia, esqueleto humano mais antigo descoberto na América.


Panelas de cerâmica dos Waujá, do Xingu, bonecas de cerâmica do povo Karajá, de Goiás


Há ainda as bonecas Karajá, cerâmicas feitas por mulheres indígenas no século 20 e consideradas patrimônio imaterial brasileiro. O também conhecido Bendegó, maior meteorito já encontrado no Brasil, de cinco toneladas, não está na mostra e resistiu na entrada do Museu Nacional.

Entre os itens que ainda não haviam sido apresentados estão fósseis de plantas, o fêmur de um mastodonte pré-histórico, a cabeça de um crocodilo, peças africanas e partes do prédio do prédio, como uma viga de metal retorcida e fragmentos das estátuas de musas que ficavam no alto do palácio.

Algumas peças trazem a própria história do incêndio. É o caso de pequenas mantas de algodão com insetos secos que ficaram pretas por causa do fogo e foram achadas em bairros vizinhos ao museu, localizado em São Cristóvão (zona norte). Uma delas, por exemplo, foi lançada pelas chamas até a Tijuca, a mais de um quilômetro.

Dois fragmentos de ninhos de vespas, feitos de barro e portanto resistentes, também chamam a atenção. Retorcidos pelo fogo, eles foram os únicos que sobraram da imensa coleção entomológica que ficava no edifício. Pequenos potes com sílica, uma areia lilás, ficam próximos a algumas peças para retirar a umidade.

Para o diretor do museu, Alexander Kellner, a mostra é uma espécie de ‘prestação de contas para a sociedade’ do dinheiro que está sendo investido --serão cerca de R$ 85 milhões neste ano, vindos principalmente do governo federal.

Ele afirma que busca parcerias para levar a mostra para outros locais. Ela custou R$ 230 mil e foi idealizada e inteiramente custeada pelo Centro Cultural Banco do Brasil, segundo o diretor-geral Marcelo Fernandes.


Paleontóloga Luciana de Carvalho da equipe de resgate do acervo do Museu Nacional

‘O que a gente está mostrando não é o total do que a gente conseguiu resgatar, é apenas uma pequena parcela dos tesouros do Museu Nacional. E essa pequena parcela não representa nada perante o enorme potencial que a gente ainda tem’, disse Kellner. ‘Precisamos de mais espaço, de mais contêineres [para recuperação do acervo], de mais verbas’.

Esta é a segunda exposição que terá itens resgatados. A primeira, ‘Quando Nem Tudo Era Gelo - Novas Descobertas no Continente Antártico’, foi inaugurada em janeiro no Palacete da Casa da Moeda, também no centro do Rio, e traz oito peças recuperadas, como fragmentos de troncos de árvores fossilizados que ficaram cobertos por pedaços de metal de um armário que derreteu com as chamas. Essa exibição, que vai até 17 de maio, estava sendo planejada antes da tragédia para acontecer em uma das salas do Museu Nacional, mas o incêndio fez os planos mudarem.

No total já foram catalogados mais de 2.000 itens achados nos escombros, mas ainda não há uma estimativa do que isso representa em termos percentuais. Vários desses objetos podem ser fragmentos de uma peça só, e entre eles há equipamentos, itens pessoais e fragmentos arquitetônicos.

Essas unidades foram resgatadas por uma equipe de 60 pesquisadores do próprio museu, que nos últimos meses têm entrado em cada sala do prédio bicentenário junto com operários da empresa Concrejato --contratada pela UFRJ (Universidade Federal do RJ) para reforçar a estrutura do prédio.

Os trabalhos de busca do acervo ainda devem durar até o final do ano, mas as obras de reforço do edifício e instalação de um teto provisório estão previstas para acabar em março.

Os objetos vão sendo coletados, encaminhados para a triagem, catalogados, estabilizados (processo para evitar sua deterioração) e depois restaurados, tudo isso em cerca de 20 contêineres montados do lado de fora do museu —a instituição diz que precisa do dobro.

O acervo tinha no total mais de 20 milhões de peças, incluindo o que não foi atingido pelo incêndio. As coleções de invertebrados, vertebrados e de botânica eram algumas das que estavam armazenadas em prédios anexos.

Desde dezembro, quem não conheceu o Museu Nacional também pode circular virtualmente por suas principais salas e coleções em uma visita online guiada com imagens capturadas pela plataforma Google Street View antes da tragédia.


Exposição ‘Museu Nacional Vive – Arqueologia do resgate’
Onde Centro Cultural Banco do Brasil - RJ (r. Primeiro de Março, 66, Centro - Rio de Janeiro)
Quando 27 de fevereiro a 29 de abril de 2019
Horário De quarta a segunda, das 9h às 21h
No Carnaval Não abre segunda (4) nem terça (5); na quarta (6), só às 12h
Quanto Grátis


 
                                             




Fonte: Júlia Barbon   |    FSP


(JA, Fev19)

O Copo Do Brasil: A História Do ‘Copo Americano’






Em  outubro passado,  uma das maiores tradições do nosso país comemorou 70 anos de vida. Trata-se do famosíssimo copo desenhado por Nadir Figueiredo, o ‘copo americano’, ideia nascida e cultivada na cidade de São Paulo.

Seu design foi idealizado pensando em um produto difícil de ser quebrado, fácil de segurar e que fosse barato. A ideia deu certo e, com certeza, não há no país uma padaria, bar ou restaurante que não use esse tipo de utensílio.

A capacidade oficial é de 190 mililitros, mas a Nadir Figueiredo já produz outros tamanhos do ícone. No site da empresa, além do tradicional, encontramos copos americanos de 40 mililitros, de 300 e até de 450 mililitros, bom pra quem gosta de doses generosas de cerveja, mas não abre mão do formato confortável do copo. O copo americano é considerado também um símbolo do design nacional. Em 2009, foi exposto no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York, entre outros setenta produtos que representavam o estilo de vida dos brasileiros.

Mas e a história?

Antes de falarmos do copo, vale fazer um resumo da história da Nadir Figueiredo. Ela existe há 105, completados em 2017, e sempre foi 100% brasileira. Começou, em 1912, no Cambuci e, em 1935, mudou-se para o Belém. Anos depois, em 1946, foi para a Vila Maria, berço do copo americano. Atualmente, a fábrica é em Suzano, na Grande São Paulo.

O copo foi concebido pelo próprio Nadir Dias de Figueiredo (1891-1983), cofundador da empresa, que pensou em criar um produto multiuso e de baixo custo. O nome ‘americano’ fazia alusão ao maquinário usado para produzir as primeiras unidades, importado dos Estados Unidos. Hoje, no entanto, as máquinas são brasileiras. É importante dizer que, desde sua criação, há setenta anos, foram produzidos mais de 6 bilhões de copos americanos

Nos anos 90 este ícone foi eleito o melhor copo para se tomar cerveja do Brasil. O copo se tornou parte integrante do dia a dia dos brasileiros que passou a ser utilizado como padrão de medida para receitas, bolos, soro caseiro, e até medida de sabão em pó.

A evolução da produção do copo reflete o desenvolvimento da empresa ao longo dos 100 anos de vida. Em 1947, a empresa produzia 2 copos por minuto; em 1965 esse número saltou para 60 copos por minuto, e assim, sucessivamente, até atingir a atual marca de 480 copos por minuto.

Vendido a aproximadamente R$ 1 real em supermercados, atacadistas e distribuidores, o copo já se tornou item indispensável para servir um bom ‘pingado’, uma dose de cachaça ou uma cerveja bem gelada. No mercado de atacadistas é conhecido simplesmente por ‘copo’ ou ‘2010’, que é o seu código de referência interna na Nadir Figueiredo.

Curiosidades

– Fabricado com exclusividade pela Nadir Figueiredo, é o copo mais vendido no país. Em 2010 atingiu a estratosférica cifra de 6.000.000.000 de unidades produzidas, que pesariam um total de 630 milhões de toneladas, que enfileiradas chegariam a 402 mil km, ou 10 voltas na Terra;

– São encontrados em todos os cantos do Brasil, de norte a sul, leste a oeste. Estão nas casas, padarias, botecos, bares e restaurantes por serem bonitos, versáteis e práticos;

– Nas cozinhas, servindo de medidor de ingredientes, tornam-se companheiros inseparáveis de quem elabora receitas gourmets. É referência em saúde pública quando se fala em soro caseiro;

– Suas linhas simples e elegantes chamaram a atenção de observadores atentos que o elegeram como um dos itens mais representativo do design brasileiro. Daí para o mundo foi um pulo. Há vários anos integrou a coleção de objetos de design do MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova York;

– Artistas plásticos e designers estão sempre inventando obras que utilizam o copo americano. Luminárias, vasos, esculturas que tem o copo como elemento ou suporte são apresentados constantemente em mostras e exposições.



Fonte: Abrahão De Oliveira   |  SP em Foco


(JA, Fev19)


domingo, 24 de fevereiro de 2019

Artur Lescher define posição de obra de 21 m de altura em conjunto com astróloga



Artista pediu a Lydia Vainer o mapa astral da avenida Paulista para instalar 'Anchor the Sky' no Sesc




Na primeira quinzena de fevereiro, o artista Artur Lescher passou por uma espécie de depressão pós-parto. Depois de meses gestando a obra ‘Anchor the Sky’, que ocupa agora o mezanino do Sesc Avenida Paulista com seus 21 metros de altura, ele sentiu como se tivesse parido um filho, mas sequer conseguiu visitá-lo nos primeiros dias de vida. ‘Me senti muito exposto, me deu um negócio e eu não queria nem ver’, conta.

Lescher, que chegou a pensar em cursar arquitetura antes de enveredar pelas artes plásticas, costuma criar esculturas e instalações sempre em diálogo com o espaço onde estão inseridas. Desde seus primeiros trabalhos, como o da Bienal de São Paulo em 1987 —onde dois polígonos estavam separados pelos vidros do edifício, quase como espelhos—, a relação entre obra e arquitetura aparece como fundamental.

Com ‘Anchor the Sky’, não foi diferente. Instalada na fachada do edifício, ao ar livre, a obra dialoga não só com o Sesc como com as estrelas Hamal e Shedir, para as quais está apontada. Sua posição, a sete graus de touro, foi definida em conjunto com a astróloga Lydia Vainer, que realizou, a pedido de Lescher, o mapa astral da unidade da avenida Paulista.

‘Comecei a desenvolver peças que guardam relações com as estrelas, constelações. É uma arquitetura quase ancestral’, explica o artista. Ele percebeu que poderia explorar a relação das obras com o espaço sideral quando viu ‘Para Walter’, a agulha de concreto que criou como contraponto à horizontalidade de um conjunto arquitetônico, apontada para o céu de Escobar, na Argentina, em 2015.

Em ‘Anchor the Sky’, Lescher associa o caráter masculino e independente de Hamal, ao lado feminino e amoroso de Shedir. ‘Se aponto para uma estrela, há conhecimento sobre ela e essas informações podem ser ativadas’, explica. ‘Se é verdade, não me interessa, pois acredito no ficcional’, completa o artista, que tem na construção narrativa uma das potências do seu trabalho e consegue enxergar nos materiais que utiliza até mesmo personalidade.

Para ‘Anchor the Sky’, no entanto, ele retornou apenas uma semana após a obra ter sido instalada. ‘Tive uma impressão boa, e vi que as pessoas já a adotaram’, diz Lescher, que agora se dedica à próxima cria.

A exposição de suas obras será aberta no dia 23 de março, na Pinacoteca do Estado de São Paulo.





Fonte: Nina Rahe   |  FSP


(JA, Fev19)

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Escultor Richard Serra leva lâminas de aço gigantes a museu da Paulista



Pátio do Instituto Moreira Salles recebe peças de 19 metros de altura que pesam 140 toneladas

O escultor Richard Serra não gosta de monumentos. Nem do ‘brutalismo extremo, quadrado, sem nuances’, de São Paulo. Mas sua primeira obra na cidade parece negar todo esse discurso.

Na contramão da ideia de leveza e transparência da torre envidraçada do Instituto Moreira Salles, as duas lâminas de aço que ele fincou no pátio do centro cultural numa das pontas da Paulista são lápides secas, duras, impenetráveis.


Escultura 'Echo' de Richard Serra  


E, ao menos nas dimensões, monumentais —elas têm quase 20 metros de altura e juntas pesam mais de 140 toneladas. Tanto que tiveram de esperar dois anos para serem montadas, o tempo que engenheiros levaram para estudar as correntes de vento da avenida até ter certeza que as placas não tombariam sobre gente —uma peça do americano já  desabou e matou um operário— nem sobre os prédios.

Serra, um dos maiores nomes da arte contemporânea, é da geração de autores que despontou na década de 1960 e então redefiniu a ideia de escultura, a maioria deles homens que fizeram de suas obras um desafio à escala da paisagem. Deixaram marcas gigantescas no horizonte, em rios, desertos, campos e praias, a chamada ‘land art.


Caminhão transporta lâminas de aço da escultura 'Echo' 


Mas não são monumentos. ‘É equivocado falar em monumentalidade em relação ao meu trabalho’, ele afirma. ‘Monumentos elogiam uma pessoa, um lugar, um acontecimento. Uma escultura em grande escala não significa monumentalidade’.

No caso de Serra, são obras que não expressam mais que o impacto acachapante do próprio peso, a força da matéria pura como espetáculo.

 ‘O peso é um valor para mim’, diz. ‘Não é mais convincente do que a leveza, mas tenho mais a dizer sobre o equilíbrio do peso, a concentração do peso, o posicionamento do peso, os efeitos psicológicos do peso, a rotação do peso, a desorientação do peso’.


O artista plástico americano Richard Serra, 74


Toneladas à parte, Serra reconhece nessa nova escultura o efeito contrário. ‘A verticalidade faz o trabalho parecer mais leve que sua massa’, diz. ‘E a experiência da escultura vista do chão é inquietante por causa da agitação que ocorre ao olhar para cima’.

Ele fala da vertigem causada pelas placas, que se tornam blocos um tanto ameaçadores quando vistos contra o céu da cidade. Do quinto andar do Instituto Moreira Salles, no entanto, são só obstáculos meio carrancudos retalhando a vista da metrópole.

Muito antes de mover carregamentos mastodônticos de metal para forjar essas peças que já encheram o Grand Palais, em Paris, o Guggenheim de Bilbao, na Espanha, e praças públicas mundo afora, Serra já tentava traduzir a ideia de movimento mesmo em suas obras um tanto estáticas.

Os nomes de suas primeiras esculturas, por exemplo, eram verbos. Rolar, cortar, arremessar, escorar foram algumas das ações que embasaram as peças dos primórdios de seu trabalho. Num filme da mesma década de 1960, ele mostra mãos tentando agarrar um pedaço de chumbo em queda livre, tornando visível o atrito entre as ideias de peso e leveza, imobilidade e movimento, que embasam toda escultura.

Mais tarde, já na fase mais espetacular de sua obra, a preocupação com o movimento se desloca das peças para o corpo do espectador, que adentra seus labirintos metálicos. ‘O movimento corporal pela escultura é uma premissa básica do meu trabalho’, diz.

Serra nega, no entanto, uma dimensão política desse caminhar. Mesmo já tendo criticado em cartazes os abusos políticos do governo americano na Guerra do Iraque, e fazendo questão de chamar o presidente Donald Trump de ‘mentiroso patológico’ e ‘ditador narcisista’, ele diz que seria exagero pensar a forma como suas obras ditam os passos do público como metáfora para um comentário político qualquer.

‘Isso seria hiperbólico’, diz o homem que passou suas mais de oito décadas de vida pensando e construindo coisas muito maiores do que ela.


RICHARD SERRA
Quando Ter., qua. e sex. a dom.: 10h às 20h. Qui.: 10h às 22h. Abre sáb. (23)
Onde IMS - av. Paulista, 2.424, tel. (11) 2842-9120
Preço Grátis







Fonte: Silas Martí   |   FSP



(JA, Fev19)



quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Brasileira Erika Verzutti leva seus cisnes e pavões a salas do Pompidou



Estranhas esculturas remetem à arte erudita e debocham de cultura do selfie em museu de Paris



Um enorme cisne se aboletou nos últimos dias na vitrine lateral do Pompidou, o museu de cartão-postal do centro de Paris, e anda disputando a atenção de turistas e passantes com a arquitetura industrial do prédio e com as esculturas multicoloridas da fonte Stravinski, parada infalível para selfies do lado de fora do endereço.

De gesso e isopor, a ave acolhe em sua ‘penugem’ outras esculturas, de menor dimensão, mas igualmente inspiradas por formas e volumes da natureza, sejam animais, frutas ou legumes.

A dona desse híbrido de bestiário, horta e pomar é a paulistana Erika Verzutti, que realiza aqui sua primeira grande exposição na Europa —e de cara em uma das catedrais da arte moderna e contemporânea.

Para ocupar a galeria de número três do museu, que fica no nível da rua no Marais e é quase toda envidraçada, ela queria oferecer algo a quem estivesse do outro lado, uma fulguração capaz de se produzir mesmo que num olhar de relance, mais apressado, leigo.

‘O cisne, além de uma solução para evitar aqueles pedestais tradicionais, é uma homenagem à rua’, diz ela. ‘A ideia era proporcionar uma experiência a quem estivesse de passagem ali. O que poderia ser assustador, porque tira você [o artista] do espaço protegido, do branquinho da galeria, vira uma interação legal com a vida, com a cidade’.

Também no intuito de afagar as retinas, a artista pintou de amarelo a porção superior das paredes do espaço. O resultado, sobretudo à noite, em contraposição ao breu do mundo, lembra um sol a abraçar as cinco ilhas em que estão distribuídas suas esculturas sensuais de bronze, cerâmica, cimento e papel machê.

‘Erika é uma das que se libertaram do imperativo da arte conceitual ligada a novas tecnologias, fria’, afirma a curadora da mostra, Christine Macel, que já havia escalado a artista brasileira para a mostra principal da Bienal de Veneza de dois anos atrás.
‘Não há só vídeo político ou documentário a se fazer hoje. Esses não são os únicos caminhos possíveis’, prossegue. ‘O trabalho com a matéria viva também pode ser muito interessante’.

Macel lembra que, no Brasil, o trabalho de Verzutti também se insere na contracorrente, o que gerou algum ruído de recepção, sobretudo em sua fase inicial, há cerca de duas décadas.

‘Ela flertava com o surrealismo de Tarsila do Amaral e Maria Martins em um momento em que a abstração geométrica, tributária do neoconcretismo, era a veia dominante’.




Às linhas apolíneas e formas perfeitamente simétricas Verzutti prefere a sinuosidade voluptuosa de carambolas, bananas, berinjelas, romãs, cocos, abacaxis. No lugar de polígonos, inventa pavões de papel machê, cães sem cabeça, porcos de madeira, tartarugas de pedra.

Não há temas explícitos a englobar as diferentes seções desse mostruário vegetal e bestial, apenas famílias mais ou menos delimitadas (e mais ou menos cifradas), com nomes como ‘Tarsila’, ‘Missionários’ ou ‘Brasília’.

‘O fazer artístico consiste, para mim, em deixar coisas novas acontecerem, deixar a magia se produzir. Às vezes, o tema é desnecessário’, diz Verzutti, que, antes de Paris e Veneza, também expôs na Bienal de São Paulo e no Guggenheim, em Nova York.

‘No início, sempre se trata de como representar algo que já é bonito na natureza. Entalho, moldo, pinto, às vezes os três, às vezes só um. As opções engendram uma nova natureza’.

Nessa lógica, o processo e sua cadência de tentativas e erros, hesitações e descartes são incorporados à apresentação final das obras. Ou seja, o público pode contemplar vestígios de obras nunca concluídas, esboços abandonados a meio caminho —ou mesmo experimentações simples com a matéria não concebidas para serem mais do que isso.

A abordagem genealógica fica evidente na ilha ‘Cemitérios’, de nome autoexplicativo. Mas há também ancestralidade e uma certa ideia de linhagem na base de obras como ‘Avô’, a primeira escultura de Verzutti em papel machê, de 2014, e do próprio cisne majestoso que os pedestres para lá do vidro fitam noite e dia —que atende por ‘Avó’.

A prole pluriforme se espalha pelas ilhas-continentes da galeria, que abrigam também o embrião de novas gerações, ovos de diferentes tamanhos. Fazer arte, para a escultora, é quebrar a casca para dar a ver o que está ainda em latência, promessa.

Além dos acenos a Tarsila do Amaral e Maria Martins, Verzutti polvilha suas criações com referências ao pintor americano Jasper Johns, um dos maiorais da arte pop, e ao francês Marcel Duchamp, pai dos 'ready-mades'.

A languidez da deusa Vênus, arquétipo-chave na história da arte, é encarnada em totens que invocam formas de frutas para extrair charme da matéria dura do bronze.

'Não me interessa só estabelecer uma relação narrativa com as coisas. Gosto do que é tátil, sensorial, da relação que a cor e a textura estabelecem com o corpo', diz Verzutti.

A mostra no Pompidou, como o cisne que se exibe generosamente para olhares externos, vai além do repertório erudito. Por trás da única divisória a cortar a galeria, como se se adentrasse o quarto da brasileira, surge uma intimidade descontraída, galhofeira.

Ali, um conjunto de obras brinca com os códigos da cultura da imagem, tira sarro da frivolidade das redes sociais. No alvo, o mal disfarçado narcisismo dos selfies na linha 'hoje acordei assim' e o mundo edulcorado das blogueiras de moda e de seus tutoriais de maquiagem.

Mas também os clichês sensuais que rondam a representação feminina. Ou ainda a polêmica que em 2015 consumiu neurônios e alimentou debates intermináveis —afinal, o vestido era branco e dourado ou azul e preto?

'Isso é o que mais me interessa hoje, essa cultura de Instagram, de compartilhamento de imagens', afirma Verzutti. 'A arte conceitual determina que se siga sempre a mesma regra, mesmo que você a tenha inventado: Eu trabalho assim. Para mim, é essencial buscar em fontes diferentes, ir alternando referências'.

Em Paris, ela anda fascinada pelas confeitarias e suas vitrines cobertas de bolos quadrados. ‘Às vezes, a coisa já surge pronta na sua frente. É só pegar, se apropriar’.


Erika Verzutti
Centro Georges Pompidou, Paris. Até 15/4





Fonte:  Lucas Neves   |   FSP


(JA, Fev19)

Vazio conduz exposição conjunta de Calder e Picasso na França


Netos dos artistas tiveram a ideia de juntar as criações do pai do cubismo com as do escultor americano


A relação entre as obras do espanhol Pablo Picasso (1881-1973) e do americano Alexander Calder (1898-1976) com o vazio é o fio condutor de uma mostra recém-aberta no Museu Picasso, em Paris.

A ideia de juntar as criações do pai do cubismo com as do escultor que se celebrizou pelos ‘móbiles’ que parecem desafiar a gravidade partiu de dois netos dos artistas, Alexander S. C. Rower e Bernard Ruiz-Picasso, e já havia ganhado uma primeira encarnação em 2016, em Nova York.

Agora, um conjunto de cerca de 120 obras busca retraçar a investigação do vácuo, da ausência de matéria que ambos empreenderam, cada um à sua maneira.

Picasso e Calder se conheceram em 1931, na abertura de uma exposição do americano na capital francesa, e só voltariam a se ver mais três vezes.

Apesar da distância, compartilhavam preocupações estéticas (como a busca pela forma mais potente de representar o movimento), e políticas (os dois apoiaram os republicanos na Guerra Civil Espanhola e criaram obras embebidas dessa convicção progressista, respectivamente, ‘Guernica’ e ‘Fonte de Mercúrio’).

Em Calder, a inclinação minimalista já se manifesta no começo da carreira, nos anos 1920, em trabalhos ainda figurativos e menos conhecidos do grande público, porém de grande força expressiva.

É o caso dos ‘retratos no espaço’ que dedica à dançarina Josephine Baker, esculturas suspensas feitas com fios de ferro, e nada mais. Do mesmo conjunto faz parte uma Medusa delineada com economia e uma releitura da luta de Hércules com um leão.
Na década seguinte, Calder mergulhará de vez na abstração, primeiro com objetos cinéticos motorizados, mas deixando suas obras ondularem ao sabor do vento e da curiosidade e proximidade humana.

De seu lado, Picasso busca a forma pura, essencial, espécie de átomo da representação.
Propõe-se a encapsular tempo e movimento pela sobreposição de perspectivas, logo subtraídas, simplificadas, até se reduzirem aos pontos e linhas que um dia, segundo ele, surpreenderam adeptos do surrealismo que bisbilhotavam seu caderno de croquis.
‘Admiro os mapas astronômicos. Parecem-me bonitos para além de seu significado ideológico’, diria o espanhol.

Na exposição, esse anseio de síntese fica evidente na série de 11 litogravuras (realizada entre 1945 e 1946) em que Picasso vai paulatinamente transmutando um touro figurativo em uma quase fantasmagoria animal, uma memória desencarnada cada vez mais geométrica, angulosa.

Já dos anos 1950, em outra sala, comparecem as esculturas longilíneas da série ‘Banhistas’, feitas com restos de estrados, pedaços de madeira, cabos de vassoura. Suas silhuetas de sílfide são atravessadas pela luz (no momento da criação, a da Côte d'Azur) e pelo nada.


Calder-Picasso
Museu Picasso, em Paris. Até 25/8






Fonte: Lucas Neves   |   FSP

(JA, Fev19)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Paul Klee – Equilíbrio Instável


Exposição em SP celebra a vida e a obra de Paul Klee, pintor que imitava o olhar sem filtros das crianças para revelar as alegrias e os horrores do mundo


HERÓI MODERNISTA - A última natureza-morta de Paul Klee: humor como antídoto à doença e à perseguição nazista


Deprimido por não achar um jeito original de pintar, o suíço Paul Klee (1879-1940) teve uma iluminação ao redescobrir desenhos que fez quando criança. Em uma carta de 1903, proclamou: aqueles eram os trabalhos ‘mais significativos’ que já havia criado. Sete anos mais tarde, Klee incluiu os rabiscos infantis em sua primeira exposição. Diz uma velha maldade usada para atacar artistas modernistas que qualquer pirralho seria capaz de emular suas obras. Antes que a tirada maliciosa se popularizasse, lá estava o modernista de primeira hora vestindo alegremente a carapuça.

Diante dos 123 trabalhos da mostra Paul Klee — Equilíbrio Instável, que acaba de estrear no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, a questão volta inevitavelmente à tona: afinal, uma criança poderia ter pintado obras como as que ilustram esta matéria?

O acervo vem do Zentrum Paul Klee, instituição que ocupa um prédio magnífico projetado pelo arquiteto italiano Renzo Piano nos arredores da cidade suíça de Berna, onde o artista cresceu e viveu os últimos anos. A exposição, programada para passar também pelo Rio e por Belo Horizonte, é a maior retrospectiva de Klee já realizada no Brasil. E não apenas pela extensão. Cobrindo seus passos evolutivos dos rabiscos infantis aos trabalhos finais, ela oferece um painel que não se esgota no artista: resume as causas que mobilizavam a avant-garde modernista e as tensões políticas de seu tempo.

‘Klee é visto como artista misterioso movido por uma irreverência infantil. Mas essa é só a superfície: sua personalidade complexa foge aos rótulos’, diz a curadora Fabienne Eggelhöfer.


DOCE MELANCOLIA – Klee em seu ateliê: artista celebrado por outros artistas

Ao sabor dos trancos históricos do começo do século XX, a pintura modernista foi do céu da liberdade extrema ao inferno da perseguição por regimes totalitários. Klee talvez seja o exemplo mais acabado de enfant terrible que ganhou notoriedade (e dinheiro) com suas provocações, mas depois pagou um preço alto por elas.

Antiacadêmico que tateou em busca de um estilo e espaço no mercado, ele finalmente se encontrou após tornar-se amigo do emigrado russo e mestre abstracionista Wassily Kandinsky (1866-1944) — de quem virou vizinho ao se estabelecer em Munique, na Alemanha. Com aquarelas indecisas, por assim dizer, entre os motivos abstratos e a figuração (e que influenciariam do catalão Joan Miró ao grafiteiro americano Keith Haring), Klee fez grande sucesso nos anos da I Guerra. Foi convocado para o Exército alemão, mas serviu num posto burocrático, o que lhe permitiu manter-se ativo.

‘Enquanto a maioria dos colegas lutava ou morria, Klee preenchia as paredes das galerias’, explica a curadora. Para ele, quando o mundo ia mal, nada melhor que a abstração para enlevar o público com cores aconchegantes.

Klee alcançou êxito comercial e prestígio para se tornar mestre da Bauhaus, a arrojada escola de arte e arquitetura alemã. Sua obra, enquanto isso, ganhava feições indefiníveis: ele flertava com vertentes como o cubismo ou a pintura geométrica, mas nunca a ponto de encaixar-se em padrões.

A fluidez explica por que não se notabilizou como medalhões do tipo do espanhol Pablo Picasso. Mas fez dele um artista cultuado por outros artistas e intelectuais.

É clássica a interpretação de um de seus muitos quadros sobre anjos enigmáticos, ‘Angelus Novus’, pelo filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940). Não sem alguma piração na maionese, Benjamin — que era dono da obra — enxergava o personagem como alegoria da História, a observar com horror os destroços do passado.


FORÇA PRIMORDIAL – As aquarelas ‘Olho Vermelho’ (em cima, à esq.) e ‘Busto de uma Criança’ (em baixo, à esq.) e a colagem ‘Soldado’ (à dir.) — todas da década de 30: obras de cores aconchegantes e linhas simples produzidas em ritmo febril)

O próprio Klee experimentou (assim como o suicida Benjamin) os horrores da história. Nos anos 30, com a ascensão de Hitler ao poder, seus trunfos fizeram sua ruína. 

Figurou na infame exposição da 'arte degenerada' promovida pelos nazistas, que desejavam substituir a 'decadente' pintura moderna pelo neoclassicismo estéril. Klee foi acusado de ser judeu — e teve de provar que não era. Expulso da Alemanha, voltou para Berna em 1933, e emendou o exílio com outra tragédia: a descoberta de uma doença degenerativa fatal. Passou o fim da vida produzindo de forma febril: só em 1939, foram 1 253 trabalhos.

É quando sua busca pela pureza atinge o ápice: os anjos humanizados e os rabiscos primitivos cedem lugar a vagas formas orgânicas e corpos desmembrados, como na natureza-morta achada no cavalete quando morreu. Qualquer criança seria capaz de emular as cores intuitivas e linhas simples de Paul Klee — mas raros artistas souberam usar essa força primordial para expor a alegria trágica da existência.





Fonte:  Marcelo Marthe   |   Veja


(JA, Fev19)