quinta-feira, 29 de julho de 2021

Relíquias no armário - a redescoberta de obras de mestres da pintura

Esquecidas em closets, sótãos ou depósitos, peças são resgatadas por pesquisadores e agora voltam a ser exibidas ao público 


VAN GOGH - Aquarela que não era exposta desde 1903: deixada em um sótão e vendida como quinquilharia


Mantida por mais de cinquenta anos dentro de um armário, uma tela quadrada com 40 centímetros de lado chamou a atenção do herdeiro que acabara de receber do espólio do pai uma casa no Maine, nos Estados Unidos. A obra em papel trazia no canto inferior direito a assinatura de Pablo Picasso e a data de 1919.

Acredita-se ser um estudo do pintor espanhol para a cortina de palco do espetáculo de balé O Chapéu de Três Pontas, produzido pela companhia francesa Ballets Russes, que estreou naquele mesmo ano em Londres, na Inglaterra. No início de julho, a relíquia esquecida foi a leilão pela LiveAuctioneers, que a vendeu por 150 000 dólares.

Nem o vendedor nem o comprador quiseram se identificar. Segundo o herdeiro, a avó e uma irmã dela estudaram na Europa nos anos 1920. A tia-avó acabou se tornando professora de história inglesa na Universidade Rutgers, em Nova York, e gostava de colecionar livros raros e de arte. ‘A pintura foi descoberta em uma casa de propriedade de minha tia-avó, que foi passada a ela por um parente no fim dos anos 1930’, disse o vendedor em uma declaração. ‘Havia várias pinturas guardadas em um armário durante cinquenta anos (incluindo essa) que foram deixadas por ela’. 


O valor baixo se explica porque a tela ainda não foi autenticada por Claude Ruiz-Picasso, herdeiro do pintor e principal responsável pelo espólio. O comprador tem 120 dias para submeter a obra à avaliação.

A semelhança entre o estudo e a cortina, porém, é impressionante. Com 6 metros de comprimento por 5,8 metros de altura, a peça foi comprada em 1959 por Phyllis Lambert, filha de Samuel Bronfman, fundador do império Seagram, por 50 000 dólares. Durante décadas, ornamentou o restaurante Four Seasons, em Nova York. Em 2015, passou a integrar o acervo da Sociedade Histórica de Nova York, onde está em exposição até hoje.

Histórias como a do Picasso perdido não são raras no mundo da arte.

No ano passado, um colecionador comprou por valores não revelados a aquarela O Prado de Van Gogh com Igreja Nova ao Fundo, e a cedeu em comodato ao Museu de Arte Moderna de Saitama, em Tóquio.

Datada de 1882, a obra ficou esquecida em um sótão durante anos e, mais tarde, chegou a ser vendida como quinquilharia por um carpinteiro.

De volta aos Estados Unidos, a Apolo e Vênus, do mestre holandês Otto van Veen, 1556-1629), foi encontrada no depósito do Hoyt Sherman Place, mansão histórica em Des Moines, em Iowa. A tela, que retrata Vênus como uma pintora em ação, passou por restauração para recuperar suas cores vivas. Avaliada entre 4 milhões e 11 milhões de dólares, ela está em exibição permanente no próprio teatro Hoyt Sherman.

O maior desafio dos pesquisadores é comprovar a autenticidade dos achados artísticos, e evitar a ação de falsificadores.

Na era moderna, análises laboratoriais detectam se o estilo, a técnica e o material utilizado são compatíveis com um determinado pintor, o que aumenta a probabilidade de identificação. Em alguns casos, nem isso é preciso.

No século passado, uma equipe do museu das Capelas dos Medici, em Florença, na Itália, encontrou a entrada da sala secreta de Michelangelo, debaixo de um armário na Basílica de São Lourenço. O lugar dava acesso a um alçapão que conduzia ao aposento, cujas paredes estavam repletas de desenhos do mestre italiano. Não houve dúvidas a respeito da autoria: Michelangelo provavelmente passou dois meses escondido lá, em 1530.

Tirar Picassos, Van Goghs e Michelangelos do armário não é ótimo apenas para os colecionadores e herdeiros que os encontraram, mas também uma dádiva para a humanidade. 





Fonte: Alessandro Giannini | Revista Veja

 

(JA, Jul21)

 


domingo, 25 de julho de 2021

Tereza de Benguela, homenageada no Dia da Mulher Negra

 

Chamada de rainha, ela comandou quilombo em Mato Grosso no século 18 

 

Óleo sobre tela do pintor e gravurista suíço Félix Edouard Vallotton, 1865 -1925; imagem é comumente associada a Tereza de Benguela, líder quilombola brasileira no século 18

 

‘No seio de Mato Grosso, a festança começava / Com o parlamento, a rainha negra governava / Índios, caboclos e mestiços, numa civilização / O sangue latino vem na miscigenação’, cantava a Unidos de Viradouro no Carnaval de 1994.

Com o samba enredo ‘Tereza de Benguela: uma Rainha Negra no Pantanal’, a escola alcançou o terceiro lugar na competição, sua melhor posição em muito tempo. Mais do que isso, antecipou em 20 anos a homenagem a essa líder quilombola, que viveu em meados do século 18.

Pois foi só a partir do dia 25 de julho de 2014 que a ‘Rainha Negra’ passou a ser celebrada anualmente no Brasil. A lei 12.987, sancionada por Dilma Rousseff - PT, instituiu o ‘Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra’, com o propósito de resgatar a memória de uma heroína negligenciada pela história.

Há poucos registros sobre seus feitos, mas o que se sabe é que a Rainha Tereza, como era chamada, esteve à frente do Quilombo do Quariterê depois que seu companheiro, José Piolho, foi morto pelas forças coloniais.

Naquele momento, ela assumiu a organização política e militar da comunidade. ‘Foi uma liderança muito especial, porque ela não só pensava em toda a estratégia de guerra e de resistência, como também era uma guerreira combatente’, diz Jaqueline Fernandes, 41, idealizadora e fundadora do maior festival de mulheres negras da América Latina, o Latinidades.

Localizado no Vale do Guaporé, em Vila Bela da Santíssima Trindade, Mato Grosso (perto da fronteira com a Bolívia), o quilombo era controlado com mão de ferro por Tereza, que castigava quem a desobedecia.

De acordo com Aline Nascimento, 34, historiadora, mestre em relações étnico-raciais e que integra a equipe do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), havia um motivo por trás desse comportamento: ‘Essa liderança mais rígida era não só por ser uma mulher, mas por dar conta de toda uma estrutura de defesa e articulação’.

Registros históricos apontam que Tereza constituiu no quilombo um sistema parlamentar, e comandou uma comunidade composta de negros e indígenas, que viviam do cultivo de algodão, milho, feijão, mandioca, banana e a comercialização dos excedentes.

‘Os quilombos não eram lugares de negros fugidos, e de economia de subsistência, como afirmam os registros coloniais. Eles nunca foram isolados dos mercados regionais. Pelo contrário, se mantinham por meio de atividades agrícolas e da comercialização’, afirma Emmanuel de Almeida Farias Júnior, 41, professor da Universidade Estadual do Maranhão, e pesquisador das comunidades quilombolas na Amazônia.

Mas eram locais de resistência, e Rainha Tereza transformou-se numa ameaça ao poder central. Em fins do século 18, ela terminou capturada e presa.

De acordo com uma versão da história, uma vez no cárcere, ela parou de comer, e morreu em decorrência dos maus-tratos, e da falta de alimentação. Sua cabeça foi cortada e exposta na praça do quilombo. Segundo outra versão, ela se matou.

Para a historiadora Aline Nascimento, celebrar a líder quilombola no dia 25 de julho é uma escolha simbólica, porque chama a atenção para o poder de uma mulher negra. Na sua opinião, é importante conhecer trajetórias como a de Tereza, para que a população negra não seja vista apenas em uma relação de subserviência da escravidão, em detrimento de histórias que também são de luta.

‘Por isso, é urgente retomar essas narrativas para entendermos que não tem [só] uma Marielle, ou uma Tereza de Benguela, existem muitas, que são silenciadas todos os dias, em todos os lugares, mas que mesmo assim não abaixam a cabeça, e seguem em frente’, afirma Nascimento.

A escolha de 25 de julho, por sua vez, se deu porque, no mesmo dia, comemora-se o ‘Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha’. A data virou um marco de luta e resistência após o 1º Encontro de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe, realizado na República Dominicana, em 1992.

Para Jaqueline Fernandes, do festival Latinidades, a data não só traz o protagonismo dessas mulheres, como também vem lembrar que, na América Latina e no Caribe, houve um processo brutal de escravidão. ‘A abolição inacabada deixou como mal legado os piores índices de acesso às políticas públicas, e violência aplicada às mulheres negras’, diz.

Marcar no tempo a data, é trazer a necessidade de repensar como as mulheres negras avançam, e continuam sofrendo todas as combinações de violência, segundo a historiadora Aline Nascimento.

Para ela, as mulheres negras recebem o ônus de toda a estrutura, principalmente a econômica. Por isso, ‘olhar para as mulheres negras que estão na base, é pensar e construir soluções para toda a sociedade, e não só para um grupo’, afirma. 


 

Fonte: Priscila Camazano | FSP

 

(JA, Jul21)

 


quinta-feira, 22 de julho de 2021

Murais de Di Cavalcanti fogem das musas sensuais, atacam elite e celebram povo

 Instituto Tomie Ohtake reúne 23 obras políticas do artista e discute aproximação das obras com os muralistas mexicanos

 

‘Trabalhadores’ – painel de Di Cavalcanti, 1952 


Emiliano Di Cavalcanti é vastamente conhecido por suas pinturas de um Brasil considerado popular e miscigenado, mas o curador Ivo Mesquita defende que o artista ainda não recebeu reconhecimento pelo período em que fez algumas de suas maiores produções, e talvez as mais políticas de sua carreira —a de painéis e murais.

 

Brasil em 4 Fases II, 1965


O painel ‘Brasil em Quatro Fases’, por exemplo, narra a formação de um país que passa por florestas exuberantes, por um sol a pino, e por trabalhadores que ocupam as ruas e as sacadas da cidade de um Brasil que rumava para a modernidade.

A história formada por essa obra se amarra, no entanto, com um último pedaço do painel de cores escuras, com cidadãos que dançam nas sombras —e que se relaciona com quando foi feito, 1965, um ano após a ditadura militar começar no Brasil.

É essa e outras obras, predominantes na produção dos anos 1950 do artista brasileiro, que são retomadas em ‘Di Cavalcanti, Muralista’, que fica até outubro deste ano no Instituto Tomie Ohtake, com 23 trabalhos produzidos a partir da década de 1920.

‘O Di se tornou o pintor das mulatas, do samba, que virou um estereótipo dele’, afirma Mesquita. Não se vê esse outro lado dele que, para mim, é sua grande obra. Ele era um muralista’.

Acontece que não é possível transpor vários de seus murais mais importantes para dentro do museu. A solução para aproximar o público dessas obras, então, foi trazer pinturas de grandes dimensões, que anunciam técnicas e temas que Di usou em seus murais, apresentar uma linha do tempo com imagens desses murais mais emblemáticos que estão pelo Brasil, e exibir outros dois painéis, como ‘Trabalhadores’ e o próprio ‘Brasil em Quatro Fases’.

Distante dos cavaletes, o público é apresentado para um Di que trabalha com uma tinta mais lavada, mesmo com um traço firme. Há também composições de um fundo decorativo, quase bordado, como em ‘Feira Nordestina’, que Mesquita aponta uma influência de Delacroix. 


Feira Nordestina, de 1951, de Di Cavalcanti 


O curador também busca debater a aproximação que se faz entre o muralismo do Di Cavalcanti e dos muralistas mexicanos, como Diego Rivera —mais do que uma influência do outro país, Mesquita defende que se trata de uma produção feita na mesma época, no espírito do tempo.

‘Sempre me perguntei onde o Di conheceu o muralismo, porque nos anos 1920 não tinha mural, e em 1922 ele começa a pintar os primeiros. Ele só vai ao México em 1949’, diz Mesquita, que considera que o artista teve contato com painéis primeiro no Rio de Janeiro.

‘Essa talvez tenha sido a grande linguagem dele. Mesmo que pinte, por exemplo, painéis com mulatas, o que predomina neles é o trabalho, que é o tema dos muralistas’.

Essa atitude carregada de um certo vanguardismo que a exposição levanta, se dá em torno principalmente do mural que o artista fez para o teatro João Caetano, no Rio de Janeiro —na mostra, há uma reprodução grande dele, ainda que não em tamanho real, numa tentativa de reproduzir parte do impacto que a obra causa.

O que faz do díptico ‘Samba e Carnaval’ uma obra tão solar no posicionamento de Di Cavalcanti que a mostra propõe é, primeiro, ela ter sido feita em 1929 e ser considerada o primeiro mural modernista brasileiro —ou seja, uma produção que acontece anos antes de Portinari, conhecido como grande muralista, fincar sua produção como tal.

A segunda razão é, de novo, política. ‘É a primeira vez que nós temos uma representação do povo brasileiro, da rua, do subúrbio, do morro por um artista modernista’, afirma Mesquita. O ineditismo era tanto que há registros de uma elite que se dizia desconfortável com aquele povo num salão de um teatro, considerado tão elegante e refinado.

Mesmo que não esteja na mostra propriamente, a linha do tempo resgata a memória de murais de Di Cavalcanti que apontam para um certo humor do artista, que também era cartunista.

Uma tapeçaria que está na biblioteca do Palácio da Alvorada, por exemplo, foi chamada ‘Múmias’, numa referência um tanto irônica aos que habitam o prédio. Já no painel que ele faz para o Congresso Nacional, com os candangos, reina uma sobriedade ordenada da força de trabalhadores que ergueram a capital do país.

‘Era um trabalho que envolvia muitas pessoas, mas acredito que era até disso que ele gostava’, afirma o curador sobre Di, que era declaradamente de esquerda. ‘Era a produção de uma arte para as ruas e sobre as ruas’.

 


 

DI CAVALCANTI, MURALISTA

  • Quando - Até 17/10. Ter. a dom.: 12h às 17h
  • Onde - No Instituto Tomie Ohtake - av. Faria Lima 201 (entrada pela r. Coropés, 88), Pinheiros, São Paulo
  • Preço - Gratuito

 

Fonte: Carolina Moraes | FSP

 

(JA, Jul21)