quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Exposições criam paralelos entre navios negreiros e refugiados do Holocausto

Mostras contrastam visões de Rugendas no século 19 com as de judeus que fugiram do nazismo





No porão do navio, negros algemados uns aos outros rodeiam a comoção. Um deles, só pele e osso, desmaia nos braços de uma mulher branca à luz da lanterna de um capataz. Outro negro estende as mãos em busca de um pote de água passado pelo alçapão do convés, como num gesto de socorro.

Johann Moritz Rugendas, o alemão que imaginou essa e outras cenas de uma terra exótica nos desenhos de seu livro ‘Voyage Pittoresque dans le Brésil’, ficou impressionado com a luz dos trópicos e sua incidência sobre a pele negra —de escravos açoitados, rendidos à dor e à exaustão agravadas pelo calor inclemente.

Sua passagem pelo Brasil no início do século 19, no rastro dos primeiros registros neoclássicos da colônia construídos por Debret, rendeu imagens dramáticas da vida nesse mundo novo e selvagem.

Baías coalhadas de barcos a vela, tempestades no mar, rituais indígenas, plantas estranhas e extensos panoramas criados por ele agora abarrotam as paredes de uma mostra no piso térreo da Caixa Cultural, mas são as imagens dos negros, entre os flagelados em praça pública ou acorrentados por capitães do mato, que têm maior ressonância.

‘Ele está diante de outra realidade, outra luz. A pele negra, a opressão do branco, as lutas e as danças acendem nele um traço romântico que ele já tinha na Alemanha’, diz Angela Ancora da Luz, que organiza a exposição. ‘É uma realidade contada com uma liberdade artística, porque é lógico que Rugendas não vê um navio negreiro, mas vê navios’.

E também o mar ao redor deles. Duas marinhas lado a lado na mostra, aliás, atestam a evolução de seus traços, de um rigor acadêmico seguido à risca, com ondas claras retratadas sob um horizonte firme e equilibrado, à visão de um mar revolto debaixo de um céu de nuvens espessas.

Rugendas parece desenhar ali o caos que ameaça os homens e mulheres confinados em seu ‘Negros no Fundo do Porão’, desenho de 1835. Sequestrados para a escravidão, eles se rendem ao desespero —uns, aos prantos, levam as mãos ao rosto, enquanto outros se encolhem acuados contra as paredes do barco.

Mesmo que romantizada,  tomando emprestadas algumas estratégias de composição então em voga entre os abolicionistas na representação da escravidão, a cena criada por ele não esconde o horror de verdade daquela época.

Não fica muito claro, aliás, se havia inclinações políticas por trás de seus retratos de escravos. Rugendas, cindido entre os excessos do romantismo alemão, o academicismo dos franceses vivendo no Brasil e os primeiros lampejos de um realismo vindouro, foi um artista ambíguo nesse sentido.

Mas o olhar de seus escravos, entre o espanto diante da barbárie e a letargia resignada, ainda emociona. Da mesma forma que os rostos fotografados em outra exposição no mesmo espaço cultural do centro paulistano.




No segundo andar, Leila Danziger mostra o horror um século depois de Rugendas. Descendente de judeus alemães que escaparam do Holocausto, a artista contemporânea resgatou imagens dos navios que atravessaram o Atlântico carregados de judeus fugindo da violência dos nazistas.

Eles, todos brancos, encaram a câmera como quem disseca um abismo. Qualquer promessa de paz e felicidade nas Américas tinha ainda um oceano infinito como obstáculo, toda uma jornada encarada a contragosto por gente forçada a deixar a vida inteira para trás.

Na instalação de Danziger, essas fotografias surgem lado a lado com os cantos dobrados, como se ela quisesse marcar a página de um livro com histórias parecidas tanto antes quanto depois.

Isso porque se existe um paralelo visual com o tráfico negreiro, em especial pelo volume de homens e mulheres espremidos nas embarcações, Danziger aponta ela mesma outro eco dolorido daquele momento histórico na atualidade, lembrando a morte de refugiados durante a travessia do Mediterrâneo rumo à Europa de portos cada vez mais fechados.

Ela lembra, aliás, o naufrágio recente de um barco de migrantes, que compara ao destino trágico do Struma, um navio com quase 800 judeus romenos a bordo, bombardeado por um submarino no auge da Segunda Guerra.

‘Era um escombro que não encontrava porto, e todas essas pessoas morreram’, conta Danziger. ‘Tive vontade de fazer esses trabalhos porque isso não parou de acontecer. É recorrente nesta segunda década do século 21, com navios afundando no Mediterrâneo’.

Em paralelo às imagens históricas de sua exposição, a artista mostra alguns vídeos de resgates de refugiados de agora em alto mar, mas editou as imagens dos telejornais para mostrar só os momentos de salvamento, nunca os flagras de corpos sem vida, esboçando à força uma ideia de esperança em meio ao maremoto.


Johann Moritz Rugendas e Leila Danziger
Caixa Cultural - pça. da Sé, 111, São Paulo, tel. (11) 3321-4400
Ter. a dom., 9h às 19h. Até 31/3
Preço Grátis
Classificação Livre




Fonte: Silas Martí   |   FSP


(JA, Jan19)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Passado/Futuro/Presente: Arte contemporânea brasileira no acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo





José Damasceno, 2000


Fruto da colaboração entre o Phoenix Art Museum (Arizona, EUA) e o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), a exposição ‘Passado/Futuro/Presente: Arte contemporânea brasileira no acervo do MAM-SP’ exibe na capital paulista uma seleção de 72 obras, resultado do trabalho conjunto de dois curadores: a norte-americana Vanessa Davidson e o brasileiro Cauê Alves.

Com obras icônicas da coleção do MAM, produzidas entre 1990 e 2010, a mostra foi montada primeiro nos Estados Unidos (sendo a primeira dedicada ao acervo do MAM nos EUA), em 2017, e exibiu ao público do país trabalhos brasileiros de arte contemporânea que demonstraram que a ‘brasilidade’ não é um traço essencial da arte brasileira, que pode ser bem diversa no estilo, nos temas abordados e nos suportes utilizados, dando um caráter internacional e cosmopolita à arte produzida no país.

A exposição é organizada em torno de cinco temas: O corpo/O corpo social; Identidades mutáveis; Paisagem reimaginada; Objetos impossíveis; e a Reinvenção do monocromo. Entre os artistas participantes estão nomes como: Adriana Varejão, Beatriz Milhazes, Tunga, Dora Longo Bahia, Waltercio Caldas, Carlito Carvalhosa, Leda Catunda, José Damasceno, Rosângela Rennó, Anna Bella Geiger, Carmela Gross e Nelson Leirner.

A seleção de nomes representa os variados estilos, temáticas e suportes presentes na arte contemporânea brasileira, mostrando que o conceito de ‘brasilidade’ não pode ser definido apenas por uma questão geográfica. ‘Com essa mostra, revelamos aos estrangeiros um Brasil com o qual não estavam familiarizados. Para o público brasileiro, queremos trazer a mesma sensação de surpresa com trabalhos contemporâneos de artistas renomados e também dos menos conhecidos’, afirma o curador Cauê Alves.


Dora Longo Bahia, 2006


Momentos históricos do país, normas sociais, mitos indígenas e transgressões revelam como os artistas brasileiros têm se adaptado à realidade da globalização: ‘Eles falam com fluência em linguagens artísticas com foco na cena global, ao mesmo tempo que sua arte, imbuída tanto de especificidade local quanto de ressonância universal, tornou-se, ela mesma, um ponto de referência internacional’, avalia Vanessa Davidson.

Incluindo pintura, escultura, instalação, fotografia, vídeo e performance, esta exposição apresenta um olhar sobre a prática de artistas reconhecidos como pioneiros da sua geração. A mostra traz trabalhos de artistas seminais, bem como várias âncoras históricas da década de 1970 que ilustram continuidades e rupturas conceituais entre passado e presente. Cinco núcleos estruturam a exposição com limites porosos, permitindo aos visitantes traçar seus próprios caminhos


Por apresentar uma das mais importantes coleções de arte brasileira do mundo, esta exposição pretende contribuir para a continuidade do debate sobre o que é e pode ser a arte brasileira, a partir do acervo do MAM.

Serviço
Exposição 'Passado/Futuro/Presente: Arte contemporânea brasileira no acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo'
Local: Museu de Arte Moderna de São Paulo - Parque Ibirapuera (av. Pedro Álvares Cabral, s/nº – Portões 1 e 3); Tel. (11) 5085-1300
Curadoria: Vanessa K. Davidson e Cauê Alves
Data: de 22/01 a 21/04/2019
Horários: Terça a domingo, das 10h às 17h30 (com permanência até as 18h)
Ingresso: R$7,00. Gratuidade aos sábados. Meia-entrada para estudantes e professores, mediante identificação.


 Fonte:  INFOART sp 




(JA, Jan19)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Burle Marx: Arte, Paisagem e Botânica



O Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE) exibe desde o dia 15 de dezembro de 2018, a mostra ’Burle Marx: arte, paisagem e botânica’, com curadoria de Cauê Alves. Natureza, arte e arquitetura convergem na obra de Roberto Burle Marx, homenageado na exposição que permanece em cartaz até 17 de março de 2019.

O artista transpunha com destreza a linguagem pictórica ao paisagismo, contrapondo formas orgânicas abstratas à rígida geometria da arquitetura. Não à toa, tornou-se um dos maiores paisagistas do século XX, somando ainda, os adjetivos de arquiteto, pintor, escultor, designer, botânico, ecologista e ativista pelas causas ambientais. A entrada na exposição é livre e gratuita.


Roberto Burle Marx, Mangue azul, 1963

A exposição é dividida em três núcleos, já enunciadas em seu título, evidenciando a faceta polivalente do artista. No total, são cerca de 70 trabalhos, entre desenhos, pinturas, esculturas, tapeçarias, peças de design, projetos paisagísticos e registros de espécies botânicas e de expedições científicas que realizou ao longo da vida
.
‘Queremos chamar a atenção para os mais diversos atributos de Burle Marx, mas sem um tom de retrospectiva. Ao contrário, trazemos ao público singularidades pouco exploradas de um artista de múltiplas capacidades. Sem dúvida alguma, o paisagismo foi sua grande contribuição para o mundo, mas ele foi muito mais do que um grande paisagista’, pontua Alves.

No núcleo ‘Arte’, destaque para as telas que vão do realismo figurativo, como é o caso de uma natureza morta Sem título (s/d), à abstração informal, tal qual o óleo sobre tela Mangue azul (1963). Em outros suportes, Sem título (1984), uma pintura sobre o tecido de uma toalha de mesa, e Sem título (1965), tapeçaria de lã.

Autor de centenas de projetos paisagísticos no Brasil e no mundo, Burle Marx se valeu de plantas, construções, relevos, painéis de azulejos e de mosaicos de tradição portuguesa. À essa produção se volta o núcleo "Paisagem". Entre os trabalhos aqui apresentados, duas plantas do projeto criado para o Terraço Itália, no centro de São Paulo. Hoje já descaracterizado, o projeto do restaurante instalado na cobertura do icônico Edifício Itália foi fruto de uma parceria entre o paisagista e o arquiteto Paulo Mendes da Rocha.


Roberto Burle Marx, Sem Título, s/d

Devido a sua fama, Roberto Burle Marx foi inúmeras vezes convidado por nomes da elite brasileira para projetar jardins de suas residências. Foi o caso, por exemplo, de Ema Klabin, figura emblemática do mundo das artes, mecenas e colecionadora. O jardim de sua casa, hoje sede da fundação cultural que leva seu nome, foi uma das criações do paisagista. Situada exatamente à frente do MuBE, o espaço funcionará como uma extensão da exposição.

O grande destaque da seção ficará por conta da remontagem provisória em vinil do monumental mosaico de pedras desenhado pelo artista no primeiro estudo para o jardim do MuBE. É dele o projeto paisagístico do espaço externo que circunda a também construção modernista de Paulo Mendes da Rocha. A composição do jardim foi elaborada a partir da relação com a cidade e da humanização do urbanismo. Na mostra, o projeto, jamais executado em sua totalidade, será apresentado temporariamente, em tamanho real, ocupando toda a área externa do museu durante o período da exposição.

‘Paulo Mendes da Rocha e Burle Marx, a quem coube a questão da ecologia do MuBE, idealizaram um museu integrado com o bairro, que já é um jardim, o Jardim Europa. Ele integra o projeto justamente com a ideia de dar conta desse aspecto que está na origem da instituição. Cidade e natureza estão em diálogo constante em sua obra’, comenta o curador.

Filho de pai alemão e mãe pernambucana com descendência francesa, Burle Marx começou a colecionar plantas na infância, com sete anos de idade. Formou-se em artes plásticas e arquitetura nos idos de 1933 e, na mesma década, descobriu a flora brasileira de forma antropófaga, durante uma viagem a Berlim.


Roberto Burle Marx, Mata Atlântica, 1991

Ao longo de sua vida, descobriu cerca de 35 espécies de plantas em suas famigeradas expedições Brasil adentro. O núcleo ‘Botânica’ reúne os registros destas viagens e traz ao público desenhos, exsicatas e fotografias assinados pelo artista e também trabalhos de contemporâneos influenciados por sua obra, como a britânica Margaret Mee, que se especializou em plantas da Amazônia, e o brasileiro Caio Reisewitz, que retrata o jardim berlinense que despertou no paisagista o olhar apurado para a flora tropical.

Nesse sentido, o curador chama atenção para a íntima relação que Burle Marx nutriu com o meio ambiente. ‘Ele é um personagem que tem uma relação muito forte com o campo da ciência. Foi militante pelas causas ambientais quando esta não era ainda uma pauta da sociedade brasileira’, recorda.

Entre os embates que abraçou, uma ferrenha e crítica oposição à derrubada de árvores para a construção de estradas pelo país nos anos 1970, quando a ação era, inclusive, propagandeada pelo Governo Federal.

‘Neste setor cometem-se erros diários. Por diversas vezes naturalistas alertaram contra o fato de se fazer propaganda de grandes obras públicas, como a abertura de estradas (...) Mostram isso como um símbolo de vitória da tecnologia sobre a natureza. (...) Ninguém é contra a derrubada necessária de uma árvore para abrir estrada. O que não se pode aceitar é a propaganda disso com a chancela do próprio chefe da Nação. Esse é um erro tremendo’, afirmou Burle Marx em 4 de agosto de 1973, em uma entrevista do O Estado de São Paulo, referindo-se a um vídeo que registrava a derrubada de uma árvore para a construção da rodovia Perimetral Norte, no Rio de Janeiro, ação presenciada pelo então presidente da república e veiculada em programas televisivos e até mesmo no cinema.


Roberto Burle Marx, sem título, 1993


Sobre o MuBE

O MuBE, Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia, foi criado em 1986, a partir da concessão do terreno na Av. Europa pela Prefeitura de São Paulo. Surgiu de um movimento de milhares de cidadãos a favor da preservação da qualidade de vida e do verde em uma das regiões mais valorizadas da cidade de São Paulo. Para a construção do prédio do Museu foi realizado um concurso que contou com a participação de vários arquitetos de renome e foi vencido por Paulo Mendes da Rocha, que convidou Roberto Burle Marx para realizar projeto paisagístico.

O MuBE é uma das mais importantes construções brutalistas do mundo, uma das principais obras de Paulo Mendes da Rocha, grande nome da arquitetura brasileira e mundial, vencedor do prêmio Pritzker em 2006, considerado o Oscar da arquitetura mundial, e do Leão de Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza, entre outros. Uma maquete do prédio do museu e seu projeto fazem parte hoje do acervo do MoMA de Nova York.


Roberto Burle Marx, desenho da série Pithecolobium

  
Exposição: Burle Marx: arte, paisagem e botânica


Curadoria: Cauê Alves.
Local: MuBe - Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia | Rua Alemanha, 221 - Jardim Europa, São Paulo.
Datas e horários: Abertura dia 15 de dezembro de 2018, sábado, das 10h às 18h. Em cartaz até 17 de março de 2019. De terça-feira a domingo, das 10h às 18h.
Entrada livre e gratuita.


Parque Burle Marx, São Paulo-SP






Fonte: InfoArt SP



(JA, Jan19)


sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

O ano de 1999 gerou obras-primas da indústria do cinema



Há 20 anos, Hollywood viveu um de seus momentos mais férteis e lançou bases para o cinema de hoje

‘Matrix’, Keanu Reeves

Foi o ano do bug do milênio e também de certo ‘bug’ na indústria do cinema. Uma confluência de fatores fez de 1999 um ano bastante fértil em Hollywood. Pense em ‘Matrix’, ‘O Sexto Sentido’, ‘Clube da Luta’, ‘Beleza Americana’—títulos originais e que ressoam até hoje.

Aqueles 12 meses foram o auge de fenômenos que vinham fermentando ao longo daquela década e que são indispensáveis para compreender a produção feita em 2019.

O cinema independente, que havia ganhado força no começo dos anos 1990, virou mainstream dez anos depois, e fez despejar uma torrente de ‘filmes médios’, isto é, que não são nem blockbusters nem longas de nicho.

O início da era digital mudou a forma de promover lançamentos, hoje a principal engrenagem publicitária, e influenciou tramas e linguagem.

Foi em 1999 que os irmãos Wachowski —agora irmãs Wachowski— apresentaram ‘Matrix’, hit que ainda inspira cópias e paródias de suas cenas de ação em câmera lenta.

Charlie Kaufman, um dos roteiristas mais originais de Hollywood, teve sua grande estreia no cinema com ‘Quero Ser John Malkovich’, outro título que causava uma pane na cabeça do espectador ao questionar a noção do que é realidade. ‘Magnolia’, estruturado em vários núcleos narrativos, firmou Paul Thomas Anderson como um dos principais cineastas americanos.


‘Clube da Luta’, Brad Pitt

‘Clube da Luta’ consolidou o status cult de David Fincher e, no Brasil, ganhou particular notoriedade após um atirador entrar num cinema de São Paulo e metralhar as pessoas.



‘De Olhos Bem Fechados’, Nicole Kidman e Tom Cruise



E Stanley Kubrick, expoente de outra geração, teve no elogiado “De Olhos Bem Fechados” sua obra derradeira.



‘Sexto Sentido’, Haley Joel Osment


Nenhum, contudo, superou o inesperado êxito de “O Sexto Sentido”, suspense lançado de forma discreta por M. Night Shyamalan, diretor de origem indiana até então pouco conhecido e para quem os estúdios não davam tanta bola. Tornou-se a segunda maior bilheteria do ano. Hoje, é muito difícil encontrar alguém que não conheça a reviravolta que encerra o longa.

A perenidade dos filmes lançados em 1999 tem muito a ver com uma postura dos estúdios em Hollywood na época. Apostando menos em celebridades e mais em novos diretores e projetos mais ousados, assumiram riscos que seriam impensáveis na indústria de 2019, tão atada a franquias e adaptações de obras que já são conhecidas do público.

Isso não significa que aquele ano tenha sido prolífico só em pérolas autorais. O cinema adolescente, que havia vivido o seu auge nos anos 1980, voltou a viver um pico no período. E, curiosamente, veio a reboque de fontes improváveis.


‘10 Coisas que Eu Odeio em Você’, Heath Ledger e Julia Stiles

‘Segundas Intenções’ se esbaldava na intriga teen tomando por mote a trama de ‘As Ligações Perigosas’, a obra epistolar de Choderlos de Laclos. Já ‘10 Coisas que Eu Odeio em Você’ levava ‘A Megera Domada’, de Shakespeare, para o universo colegial americano.


‘American Pie’, Eugene Levy e Jason Biggs


‘American Pie’, ‘Nunca Fui Beijada’ e ‘Ela É Demais’ foram outros hits a formar filas.

Hoje, as sacadas desses filmes soam datadas. Não se pode mais conceber uma trama em que uma menina malvestida precise se arrumar e se maquiar para ser notada (‘Ela É Demais’) ou que seja correto que um garotão contrate uma banda de fanfarra e pare o colégio com o único propósito de constranger uma garota a sair com ele (‘10 Coisas que Eu Odeio em Você’).

Eram tempos em que filmes adolescentes eram ambientados em cenários mundanos (como as escolas do subúrbio), e não distopias encenadas em mundos fictícios de regimes tirânicos, como ‘Jogos Vorazes’, ‘Divergente’ e afins.


‘Noiva em Fuga’, Julia Roberts e Richard Gere

Além disso, foi um ano em que a comédia romântica ainda era um filão popular e rendia grandes retornos. Só Julia Roberts esteve em duas, ‘Noiva em Fuga’ e ‘Um Lugar Chamado Notting Hill’ —respectivamente 9ª e 11ª bilheterias americanas daquele ano.

De qualquer forma, 1999 foi a época em que a atual estratégia de divulgação de filmes, online, começou a germinar.

O primeiro título a se aproveitar disso foi ‘A Bruxa de Blair’. Lançado em julho, o filme não só originou uma linhagem de longas terror na ideia da chamada ‘found footage’ (filmagem encontrada), como usou a internet para criar burburinho
.
O site reunia boletins de ocorrência falsos sobre o desaparecimento dos personagens do filme. A dúvida sobre se aquilo era ficção ou realidade ajudou a obra a se tornar a 14ª mais vista do ano.

Hoje, a internet é indispensável à promoção do cinema. Pense na estratégia meticulosa por trás do lançamento dos teasers da Marvel, por exemplo. Isso tem a ver com o boom dos trailers de 20 anos atrás.

É claro que Hollywood já lançava mão do recurso havia décadas, mas em 1999 estúdios notaram que se ia ao cinema para ver o trailer. Isso, graças a ‘Star Wars: Episódio 1 - A Ameaça Fantasma’, o campeão de bilheteria do ano.

A curiosidade em relação a como George Lucas retomaria sua saga espacial 16 anos após o fim da trilogia original fez americanos lotarem as sessões de ‘O Rei da Água’ e ‘Encontro Marcado’, antes dos quais o trailer do novo ‘Star Wars’ havia sido programado.

Lançado na rede numa era pré-YouTube, o vídeo foi baixado 6,4 milhões vezes em três semanas, o que fez Steve Jobs chamar aquilo de ‘o maior fenômeno de downloads da história da internet’.

As sequências, por sinal, ganharam fôlego em 1999 e provaram que, com um bom marketing, poderiam se tornar filmes-eventos, com retorno por vezes superior aos originais —algo raro na época, quando continuações faziam pouco mais da metade do que rendiam as bilheterias dos primeiros longas.

Um caso interessante é o de ‘Austin Powers’, o agente bestalhão vivido por Mike Myers. O primeiro filme, de 1997, teve um lucro modesto (US$ 67 milhões no mundo), mas foi impulsionado pelos lançamentos em VHS e DVD, que deram uma vida nova à produção. E a sequência veio logo, dois anos depois, com um retorno quase cinco vezes maior.


‘Toy Story 2’

Já ‘Toy Story 2’ fez US$ 497 milhões no mundo todo, contra os US$ 373 milhões do primeiro filme da franquia, de quatro anos antes. Com tantos retornos, 1999 acabou com a má fama antes atribuída a sequências cinematográficas.

Ainda assim, é interessante perceber como os maiores sucessos da época vinham de ideias originais. Se compararmos as dez maiores bilheterias de 1999 nos Estados Unidos, entre elas ‘O Sexto Sentido’ e ‘Matrix’, às do ano passado —a maioria derivada de quadrinhos, como ‘Pantera Negra’ e ‘Vingadores’—, vemos como os sucessos recentes são todos sequências de franquias ou reboots.

E as produções de duas décadas atrás, mesmo quando eram adaptadas de outra obra, tinham cara de original.

‘Talentoso Ripley’, Matt Damon e Jude Law

Casos como ‘Clube da Luta’, versão do romance de Chuck Palahniuk, ou ‘O Talentoso Ripley’, originalmente um livro de Patricia Highsmith, resistiram ao tempo e superaram o sucesso de seus originais porque não foram exatamente fiéis às obras em que se basearam e criaram algo novo.

Não há uma fórmula para replicar o sucesso de 1999. Mas, olhando em retrospecto, fica claro como a abertura da indústria para linguagens e histórias originais fez germinar uma safra que sobreviveu por anos a fio. Já no ano seguinte, um certo ‘X-Men’ abriu a porteira para uma nova leva de super-heróis que até hoje não deixaram os cinemas.




Fonte: Guilherme Genestreti e Maria Luísa Barsanelli   |   FSP


(JA, Jan19)

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

O que aconteceu na noite em que Van Gogh cortou a própria orelha?




Em 1888, na cidade francesa de Arles, aconteceu um dos episódios mais famosos da história da arte: um estrangeiro foi até um bordel da cidade e entregou a uma garota que estava no local um pacote com um pedaço sangrento de sua própria carne.

Era Vincent van Gogh, que acabara de cortar a própria orelha. Na época, tratava-se de um pintor desconhecido e sem sucesso, mas que posteriormente se tornaria um dos artistas mais famosos de todos os tempos.

O ano que ele passara na região francesa de Provença o definiu: foi o período em que criou suas obras-primas mais apreciadas, mas também aquele em que se mutilou.

Horas depois do episódio no bordel, às 7h da manhã na véspera de Natal, ele foi encontrado pela polícia em sua cama, em posição fetal e com a cabeça envolta em trapos empapados de sangue.

Os policiais pensaram que ele estava morto, mas não estava.

O quarto de Van Gogh em Arles foi retratado por ele nesta pintura

Van Gogh morreu 18 meses depois, em 29 de julho de 1890, como consequência de uma infecção que contraíra alguns dias antes, após tentar se matar com um revolver.

A história do corte de sua orelha é o incidente mais famoso do mundo da arte moderna. No entanto, ninguém sabe o que ocorreu realmente naquele dia de dezembro de 1888.

Até pouco tempo atrás, não havia nem certeza de que ele realmente tivesse cortado a própria orelha – se desconfiava que tinha apenas cortado o lóbulo.

A BBC acompanhou a historiadora de arte Bernadette Murphy, que desde 2010 se dedica a desvendar o mistério.

Curiosidade

Bernadette Murphy se mudou para Provença em 1983 e acabou ficando fascinada pela história de Van Gogh.

Se surpreendeu ao descobrir que se sabia muito pouco sobre a noite em que ele cortou a orelha.


A historiadora de arte Bernadette Murphy desvendou os eventos da noite em que o pintor se auto mutilou


‘Me perguntava: Não há registros médicos? Como pode essa história ser tão ambígua?’, disse ela à BBC.



Em 2010, Murphy começou pesquisas nos cartórios da cidade, nas bibliotecas e nos arquivos de Arles e outras cidades da região.

Cidade pequena

A antiga cidade de Arles fica a menos de 30km da costa mediterrânea francesa, e perto da Espanha, mesclando aspectos das duas culturas - tanto um ar romântico quanto a presença de vaqueiros e ciganos.

Nascido na Holanda, Vincent van Gogh chegou ali aos 35 anos, quando era um artista fracassado que fugira de Paris para um ambiente mais calmo e, achava ele, mais puro.
Pouco após chegar, em abril, Van Gogh assistiu a uma tourada.


As pessoas do público chamaram mais a atenção do artista do que a arena de tourada

Quando pintou a cena, deu mais destaque às mulheres exóticas nas arquibancadas do que à ação sangrenta na arena.

‘A multidão era magnífica’, escreveu a um amigo. ‘As mulheres e crianças locais usavam roupas simples em verde, vermelho, rosa ou amarelo-pimenta. E, sobretudo, um sol sulfuroso em um céu azul vibrante’.

‘Foi tão alegre quanto a Holanda é deprimente’, disse.

Para os habitantes de Arles, o final sangrento das touradas é a explicação para o episódio brutal de automutilação de Van Gogh na cidade – ao final de uma tourada bem-sucedida, as orelhas do touro são cortadas e entregues para alguém do público.

O problema dessa versão é que quando Van Gogh esteve em Arles, ainda não se cortavam as orelhas do touro. Essa tradição sangrenta foi importada da Espanha mais tarde.

Poucas certezas

Para tentar entender melhor o mistério, Bernadette Murphy começou pela cena da automutilação: o estúdio onde Van Gogh pintou muitas de suas obras-primas.

A famosa ‘Casa Amarela’ ficava no norte de Arles, na Place Lamartine, até 1944, mas foi bombardeada na Segunda Guerra Mundial.

Em Arles, Van Gogh morava nesta casa amarela com janela verdes, que era tanto residência quanto estúdio


Sobre os acontecimentos da noite de 1888, Murphy contava com as reportagens da imprensa local.

‘Às 11h30, um homem chamado Sr. Vincent apareceu na porta de um bordel na rua de Bour d'Arles. Porguntou por uma jovem chamada Rachel. Quando ela chegou, ele lhe entregou sua própria orelha cortada’, dizia um dos relatos.

Mas será que esses relatos eram confiáveis? Alguns dos artigos da época diziam, corretamente, que sua nacionalidade era holandesa. Em outros, ele era retratado erroneamente como polonês. Três versões diziam que a orelha estava em um pacote. Outro relato dizia que ele a segurava ao lado da cabeça. A maioria das reportagens afirmava que Rachel era um prostituta, mas uma dizia que ela trabalhava em um café.

Com tantas inconsistências, era difícil saber até mesmo se ele de fato havia cortado a própria orelha: muitos especialistas não estavam convencidos de que isso havia realmente acontecido.


Fundado por descendentes do pintor, o Museu Van Gogh, em Amsterdã, recebe quase 2 milhões de pessoas por ano

 Uma carta do pintor Paul Signac, que visitou Van Gogh pouco depois de sua lesão, parece dizer o contrário.

'O vi pela última vez em Arles na primavera de 1889', diz o pintor na carta, atualmente arquivada no Museu Van Gogh, em Amsterdã. 'Ele estava no hospital da cidade, mas no dia de minha visita estava perfeitamente bem, tinha a famosa faixa de atadura ao redor da cabeça e usava um chapéu'.

‘Alguns dias antes’, escreveu Signac, ‘ele havia cortado o lóbulo da orelha’.

Essa versão, de que Van Gogh teria cortado apenas o lóbulo, e não a orelha toda, também parecia ser confirmada por um desenho feito de Van Gogh em seu leito de morte pelo médico que o atendeu.

No desenho é possível ver Van Gogh com os olhos fechados e a parte superior da orelha intacta.

Desenho de Van Gogh em seu leito de morte, com a parte superior da orelha intacta


Para os especialistas do Museu Van Gogh, a versão de que ele havia cortado apenas o lóbulo da orelha era a mais aceita.

Então será que o episódio famoso tinha sido, na verdade, um evento menor, que acabou sendo exagerado com o passar do tempo?

Bernadette Murphy descobriu que não. Ela encontrou novas evidências que apontavam que Van Gogh havia de fato cortado a orelha toda, e no lugar que menos esperava.

Van Gogh no cinema

Em 1956, a MGM Pictures lançou o filme Sede de Viver, em que o ator Kirk Douglas interpretava o pintor holandês.

Sua forte trilha sonora e as atuações dramáticas cimentaram uma imagem de Van Gogh mais excêntrica, em que ele corta sua orelha em um ataque de loucura.

Os especialistas, no entanto, consideravam o filme uma versão exagerada. Ironicamente, foi ele que levou Murphy a uma pista crucial.

Nos arquivos do Museu Van Gogh, a historiadora encontrou uma carta de 1955 em uma antiga edição da revista Time.

Nela, um leitor questionava uma reportagem que dizia que Vincent havia cortado a orelha inteira. O leitor afirmava que ele cortara apenas o lóbulo, reiterando o que dizia Paul Signac.

A resposta editorial da revista contestava essa versão. Afirmava que Irving Stone, autor do livro no qual o filme foi baseado, tinha provas de que a orelha inteira havia sido cortada.

Investigando o caso de Arles, o biógrafo Irving Stone visitara o médico Félix Rey.

‘Rey era o único homem que havia visto Vincent van Gogh e ainda estava vivo (àquela ocasião)’, conta Murphy.

A resposta da Time dizia que Rey mostrou um boletim médico para Stone e que o boletim estava com o escritor.

Félix Rey, médico e amigo

Félix Rey foi o médico que cuidou do ferimento de Van Gogh em sua estadia no hospital, e os dois ficaram tão próximos que o holandês o pintou.

Para Murphy, Rey era a melhor testemunha de o que se passou com o pintor – e era possível que o documento que ele dera a Irving Stone ainda existisse.

Murphy procurou o arquivista David Kessler para encontrar o documento no arquivo de Stone, que fica em Berkeley, na Califórnia.


Van Gogh pintou Felix Rey em sua série de retratos

 Após procurar várias vezes, o arquivista finalmente encontrou o documento.

Murphy então viajou a São Francisco e ficou encantada quando Kessler lhe mostrou ‘uma pequena e fina folha de papel, mas que dizia muito’.

‘A assinatura com certeza é do Dr. Félix Rey. Tem a data de 18 de agosto de 1930, e é incrível, é um desenho de antes e depois’, conta Murphy.


A parte superior da carta do médico Félix Rey com o desenho da orelha e uma linha pontilhada onde ela foi cortada

‘Estou feliz de poder dar a informação que você pediu sobre meu infeliz amigo Van Gogh’, diz Rey na carta enviada para Stone.

‘Espero que glorifique a genialidade deste notável pintor. Cordialmente, Dr. Rey’.

O papel tem um desenho com uma linha pontilhada e diz que a orelha foi cortada com uma navalha seguindo essa linha.

Depois há um desenho retratando como o pintor ficou após a mutilação.


A parte inferior, com o retrato de como a orelha ficou depois

‘(Rey) documenta que a orelha inteira foi extraída... Deve ter sido algo incrivelmente doloroso. O que estava passando pela cabeça (de Van Gogh) nesse momento deve ter sido terrível’, afirma Kessler, o arquivista que encontrou o documento.

‘Eu estava pesquisando isso havia um tempo. Quando você vê algo assim, se dá conta de quão horrível realmente foi o que se passou... A violência do ato’, diz, Murphy, comovida.

A historiadora levou uma cópia do documento para ser verificado no Museu Van Gogh.

A vida de Vincent van Gogh é tão conhecida quanto sua obra - encontrar novas evidências sobre ele é raro, ainda mais uma prova de que ele de fato cortou a orelha.

Mas afinal, o que o levou a esse ato extremo?

Alma inquieta

O homem que chegou a Arles tinha 35 anos e uma alma torturada.

Pessoas próximas desconfiavam que ele tinha problemas psicológicos.

Nascido em 1853, filho de um pastor protestante holandês, ele não conseguia manter uma carreira estável como comerciante de arte, pastor ou assistente de ensino.

Gostava da companhia de camponeses e pobres mulheres de rua – as únicas pessoas que toleravam sua personalidade estranha e obsessiva.


Seu irmão Theo, a quem escrevia com frequência, era a pessoa mais próxima do artista

Houve momentos em sua vida em que esteve tão sozinho que a única pessoa com quem falava durante o dia era a garçonete da cafeteria onde pedia seu almoço.

Mas uma pessoa sempre esteve a seu lado: seu irmão mais novo, Theo.

Theo era um bem-sucedido comerciante de arte, e foi ele quem sugeriu a Vincent uma carreira como pintor.

No entanto, Theo não conseguiu vender nenhuma das primeiras obras do irmão.

Em fevereiro de 1888, quando se mudou para Arles, Van Gogh era um pintor fracassado, totalmente dependente de seu irmão.


Suas primeiras obras eram tão escuras quando o mundo que ele percebia ao redor

 Mas as coisas melhoraram muito na Provença.

Ele fazia passeios diários pelo campo em busca de inspiração para um novo tipo de arte, e a encontrou.

Abandonou completamente os grilhões e modelos do norte da Europa e, no sul da França, descobriu um mundo completamente novo e deslumbrante.

Quando chegava onde queria, começava a preencher a tela. 'Não sigo nenhum sistema conhecido", escreveu. "Golpeio a tela com pinceladas irregulares, que deixo como estão'.

‘Estou tentado a pensar que os resultados são tão perturbadores justamente para não agradar as pessoas com ideias preconcebidas sobre a técnica’.

Tinha razão: na época, ninguém o entendeu, mas hoje elas são vistas como suas obras-primas.


Campos de trigo e ciprestes foram um tema comum para o artista


‘Me perguntava: Não há registros médicos? Como pode essa história ser tão ambígua?’, disse ela à BBC.

Escreveu a Theo dizendo que havia encontrado o futuro da arte moderna. E sonhava como todo um movimento de artistas se uniria em torno de uma missão compartilhada


Nas semanas anteriores ao decepamento de sua orelha, Van Gogh estava tentando fazer esse sonho virar realidade, e tinha a companhia de um grande artista, muito bem-sucedido já na época: Paul Gauguin.

O grande Gauguin

Gauguin foi um pintor muito apreciado, complicado e interessante, mas também muito arrogante.

Deve ter sido muito carismático, porque não atraía apenas mulheres, mas muitos seguidores.
Van Gogh era um de seus admiradores quando se ocupou de converter a casa amarela na sede da irmandade que queria criar. E o primeiro em quem pensou foi Gauguin.

Passou semanas lhe escrevendo para convencê-lo a se unir a ele em sua utopia.

Pintou o quadro Os Girassóis para decorar o dormitório de Gauguin.

Comprou 12 cadeiras de vime para os artistas e uma mais ornamentada para Gauguin – sua idade e sucesso faziam que se ele fosse visto como líder em sua comunidade.


Cadeira de Gauguin pintada por Van Gogh


No entanto, o verdadeiro Gauguin não poderia ter sido mais diferente do ideal de Van Gogh.

Era um ex-bancário astuto, bom em se autopromover e adúltero em série. Ao chegar a Arles, encontrou uma pessoa difícil e sem autoestima.

Gauguin só tinha ido porque Theo o havia pagado por isso. Depois de poucos dias começou a escrever a seus amigos de Paris dizendo: 'Tenho que sair daqui. Não aguento mais'.

O sonho de fraternidade de Van Gogh estava condenado desde o começo. Ele e Gauguin não tinham apenas personalidades diferentes, mas também discordavam a respeito da arte.

Gauguin gostava de pintar a partir de sua imaginação, e o costume de Van Gogh de pintar o que via e que lhe parecia risível.

Chegou a produzir um retrato de Van Gogh pintando os girassóis.


Van Gogh pintando girassóis, em retrato de Gauguin

Van Gogh viu o quadro e disse: ‘Este sou eu, mas eu louco’.

Segundo Gauguin, depois que mostrou o quadro a Van Gogh, os dois foram a um bar. Van Gogh pediu um copo de absinto e jogou no colega. Gauguin se esquivou, levou Vincent para casa e o colocou na cama.

Na manhã seguinte, Van Gogh acordou dizendo: ‘Meu querido Gauguin, tenho uma vaga lembrança de que te ofendi à noite’.

Seus sonhos de fraternidade artística estavam se tornando pesadelos, e Van Gogh estava perdendo o controle de sua frágil saúde mental.

Mas não era só isso: uma de suas pinturas contém uma pista de outro assunto que o incomodava naquele momento.

A carta no quadro

No Museu Kroller-Muller, no interior da Holanda, há um quadro pouco conhecido de Van Gogh.

É uma das primeiras pinturas que ele fez após a noite em que cortou sua orelha e dá indícios sobre seu estado mental naquela noite.


Um dos primeiros quadros pintados por Van Gogh após se auto mutilar trouxe pistas sobre seu estado mental

 No canto inferior direito, há uma carta que ele recebeu na manhã do dia em que se passou o incidente.

Sabe-se que a carta é de seu irmão, pois sua letra é discernível e porque leva o selo 67, da casa de correios que Theo usava. Além disso, a marca na carta é uma que só se usava no Natal e no Ano Novo, comprovando que ela fora enviada em dezembro.

Uma das hipóteses levantadas pelos estudiosos da vida e da obra do artista é que a carta trazia o recado de Theo de ele iria se casar com Johanna Bonger.

Theo era o melhor amigo de Vincent. Era seu apoio emocional e financeiro. Se a notícia o fez ficar com medo de perder o irmão, isso pode ter contribuído para o declínio de sua saúde mental.

Van Gogh recebeu a notícia do noivado do irmão em 23 de dezembro, no mesmo dia em que Guaguin lhe disse que estava indo embora.

A orelha do centurião

O próprio Gauguin mais tarde registrou a conversa errática de Van Gogh naquele dia.

‘Ele mencionou novelas góticas, em que o herói era atormentado pela loucura. Refletiu sobre os assassinatos de prostitutas que saíam nos jornais, e sobre a traição de Cristo no Jardim de Getsemani, quando São Pedro cortou a orelha de um centurião’.


Pintura bizantina retrata a traição no jardim de Getsemani: Judas beija Jesus e Pedro corta a orelha do centurião


‘Estava tão estranho que não aguentei’, escreveu Gauguin. ‘Inclusive ele me disse: 'Vai embora?', e quando eu disse 'sim' ele cortou uma frase de um jornal e colocou na minha mão’.
‘Ela dizia: O assassino escapou'.

Horrorizado, Gauguin foi passar a noite em um hotel, deixando Van Gogh sozinho com seus demônios.

Rachel

A história de Gauguin e de Theo estava bem esclarecida quando Bernadette Murphy começou a investigar o que se passou com o artista.

Mas, além das incertezas sobre como foi o corte da orelha, outro aspecto confuso era a identidade de Rachel, a jovem que Van Gogh procurou naquele noite.

Saber quem era ela poderia ajudar a entender o que levou o artista a procurá-la.

Murphy concentrou sua investigação no último lugar em que ele foi visto no dia do episódio: a rua de Bout d'Arles, a 100 metros da Casa Amarela.

 
As noites estreladas no campo foram um tema frequente para o artista


É fato conhecido que Van Gogh era um cliente frequente de bordéis, porque ele falava abertamente sobre isso com seu irmão em suas cartas.


‘Na França do século 19, os bordéis eram regulados pelo Estado. Se chamavam Casas de Tolerância’, explica Murphy à BBC.

‘As prostitutas e as cafetinas eram registradas no censo da cidade, com eufemismo para seus trabalhos. As madames eram registradas como limonadier, que pode ser tanto alguém que vende limonada quanto alguém que dirige um bordel. As prostitutas eram registradas como 'fille soumise' – garota submissa, em francês’, conta Murphy.


Prostitutas e cafetinas eram registradas no censo da cidade com eufeminismos como 'limonadier' e 'fille soumise'

Mas entre as registradas no censo da época não há nenhuma Rachel, que é um nome pouco comum nessa região.

Murphy encontrou um velho artigo de jornal que ajudava a resolver o mistério. O texto citava o policial que investigou o caso dizendo que o nome da jovem era Gaby.

Revisando os registros, a historiadora notou que muitos dos nomes das prostitutas apareciam seguidos pelas palavras 'dite Rachel', ou seja, 'chamada Rachel'.

‘Rachel não era um nome real – era apenas um apelido. Então talvez Gaby fosse o verdadeiro nome da jovem’, explica Murphy.


Arles era cercada por campos de trigo que o artista gostava de pintar

Em Arles de 1888 havia 31 mulheres chamadas Gabrielle, ou ‘Gaby’.

Depois de muitas pistas falsas e frustrações, Murphy encontrou um livro pouco conhecido sobre Van Gogh que dizia: ‘Rachel, que se chamava Gaby, morreu em 1952 aos 80 anos’.

Só uma Gabrielle havia morrido nesse ano, com essa idade. Com a identidade verdadeira da jovem, a historiadora conseguiu descobrir que seus descendentes viviam fora de Arles. Eles pediram anonimato, mas confirmaram que sua parente Gabrielle era a moça chamada de Rachel na história de Van Gogh.

Murphy descobriu depois que Gabrielle não era prostituta, mas um jovem que fazia faxina no bordel e em vários dos lugares favoritos de Van Gogh na Place Lamartine.


Vincent visitava bastante o café da Place Lamartine, seu local preferido da cidade

A moça que Van Gogh foi procurar naquela noite parece ter sido uma amiga, não uma prostituta – uma amiga que ele provavelmente conheceu em Paris.

Murphy encontrou mais tarde evidências de que Gabrielle havia sido enviada ao Instituto Pasteur em janeiro de 1888 para ser tratada após ser mordida por um cachorro contaminado com raiva.

A historiadora também encontrou uma carta de Van Gogh em que ele mencionava as pobres meninas tratadas por raiva na instituição.

Gabrielle ficou em Paris por 18 dias e depois voltou para Arles. Van Gogh chegou à cidade no mês seguinte.

Segundo a estudiosa, é possível que Gabrielle tenha sido o motivo que levou Van Gogh a Arles – e isso sugere uma nova interpretação sobre o que se passou na noite do corte.

‘Van Gogh sempre se sentiu atraído por pessoas em dificuldades, anjos feridos que ele queria ajudar’, explica Murphy. ‘Além disso, alimentava fantasias como o martírio de Cristo pelos pobres’.

‘Parece que, em sua angústia, enxergou a entrega de sua orelha a Gaby como um ato de auto sacrifício e compaixão’.

É uma teoria difícil de comprovar, mas descobrir a identidade de Rachel foi mais um passo importante para entender o que se passou naquela noite.

Juntando o quebra-cabeça

Juntando todas as pistas recolhidas por Murphy em suas pesquisas, é possível se ter uma visão um pouco mais clara de o que se passou na Casa Amarela no dia em que Van Gogh cortou sua própria orelha.

Ele estava em seu estúdio, cercado por todas essas incríveis pinturas que não conseguia vender.


Os girassóis eram um tema frequenta nas pinturas do artista

Perturbado pela carta do irmão e pelo abandono de Gauguin, pensou em sua vida, pegou uma navalha e cortou sua própria orelha de cima a baixo.

Sem querer, cortou também a artéria atrás da orelha, e mais tarde foram encontrados os trapos que usou para conter o fluxo de sangue.

Mas, em vez de chamar um médico, escondeu a ferida com os panos e um chapéu e saiu de casa. Envolveu a orelha cortada em um jornal e se dirigiu ao bordel, onde entregou o pacote à Gaby.

Depois foi para casa, onde a polícia o encontrou ensanguentado e em posição fetal, mas vivo.

Van Gogh morreria apenas 18 meses depois, em um episódio também muito trágico
.
Ele saiu de manhã do albergue Ravoux, onde estava morando na cidade de Auvers-sur-Oise. Quando voltou à noite, estava sangrando, com um tiro no ventre, e disse aos donos do hotel que havia tentado se matar.

Um médico foi chamado, e também o irmão do pintor, Theo, que chegou a tempo de conversar com ele antes de sua morte. O artista não resistiu ao ferimento e morreu na manhã de 29 de julho de 1890.

No entanto, assim como no caso da orelha cortada, há biógrafos que desconfiam dessa versão – um livro publicado há alguns anos afirma que ele fingiu tentar se matar para proteger dois amigos que haviam atirado nele por acidente.


'Aqui repousa Vincent van Gogh', diz a lápide do pintor, enterrado ao lado de seu irmão, Theo, em Auvers-sur-Oise




Fonte: Esta matéria foi baseada no documentário ‘The Mystery of Van Gogh's Ear’, ou ‘O Mistério da Orelha de Van Gogh’, em que a BBC acompanhou Bernadette Murphy em suas pesquisas. A historiadora publicou em 2016 o livro’ Van Gogh's Ear: The True Story’ ou ‘A Orelha de Van Gogh: A Verdadeira História’.   |   BBC News Brasil



(JA, Jan19)