sexta-feira, 15 de maio de 2020

Ronald Golias



Arte de Fazer Rir



São cada vez mais raros os humoristas que exercem sua nobre função com graça genuína, que é fruto não de uma ‘forçação de barra’ para ser engraçado. Em tempos de you tubers, standups de todos os tipos e gêneros, sobra muito pouco espaço para aquele humor espontâneo, ainda mais em tempos no que o politicamente correto dita as regras do que é considerado engraçado ou não.

Esse que tinha o humor na pele, num simples gestual, se estivesse encarnado, no dia 4 de maio passado teria completado 91 anos de idade, e era de uma geração de humoristas desbravadores, que  não precisava fazer muito esforço para ser engraçado. Todo esforço para ser engraçado revela uma graça artificial, e esse aniversariante, no palco, comprovava isso.

Ronald Golias, o rei do caco, do improviso, do humor do caos, e da simplicidade. Bastava dar um tema, e dali, espontaneamente, como um grande contador de causo, Golias sacava brilhantes histórias repletas de muito humor, e nos fazia enxergar graça em fatos cotidianos, aparentemente insossos, mas que, com seu imenso talento, conseguia suavizar tais fatos.

Nascido na cidade de São Carlos , interior de São Paulo, Golias era neto de italianos, nascido em uma família humilde. Ronald Golias era filho de Conceição D'Aparecida Rayol Golias e Arlindo Golias. O pai de Golias, fã do artista Ronald Colman, resolveu chamar o filho de Ronald. Sua estreia nos palcos foi aos 8 anos de idade, como artista amador, na Escola Dante Alighieri de São Carlos.

Golias não gostava de ser chamado de são-carlense, ele se intitulava carlopolitano, que também é gentílico latino de quem nasce em São Carlos.

Mudou-se para a cidade de São Paulo em 1940. Trabalhando como alfaiate e funileiro, começou a praticar natação no Clube Regatas Tietê, onde posteriormente entraria para o grupo Acqua Loucos, um dos precursores em espetáculos aquáticos no Brasil. Por sugestão de Golias, as apresentações passaram a ter uma parte com diálogos; suas performances com a trupe acabaram por levá-lo a participar do programa Calouros em Cena, da Rádio Cultura.




Na década de 1950, com o fim dos programas produzidos pela emissora, Golias passou a integrar a equipe de artistas da Rádio Nacional. Foi então que conheceu Manuel de Nóbrega, que, em 1957, o convidou a participar do humorístico ‘A Praça da Alegria’, que estreara naquele mesmo ano pela TV Paulista.

Golias despontou para a fama a partir de seu trabalho na Praça. Interpretando o inquieto Pacífico (do bordão ‘Ô Cride, fala pra mãe...’), ele acabou se tornando uma das estrelas da ainda incipiente televisão brasileira. ‘Cride’, no caso, era seu amigo de São Carlos, Euclides Gomes dos Santos, que declarou que Golias criou a frase imitando o modo como era chamado por sua mãe para voltar para casa.

Com o sucesso na TV, ele foi convencido por Herbert Richers a entrar para o cinema. A iniciativa a princípio foi complicada; com agenda ocupada na televisão, o humorista enfrentou dificuldades em conciliar as gravações. Seu primeiro filme foi a comédia ‘Um Marido Barra-Limpa’, 1957, de Luís Sérgio Person que, contudo, acabou finalizado por outro diretor, e lançado apenas em 1967.



                          

Participou também de ‘Os Três Cangaceiros’, 1961, de Victor Lima, quando contracenou com Ankito e Grande Otelo. Entre seus últimos trabalhos cinematográficos estão ‘O Dono da Bola’, 1961, e ‘Golias contra o Homem das Bolinhas’, 1969.




Golias dedicou-se a maior parte de sua carreira para a televisão. Trouxe consigo das telas o personagem Carlos Bronco Dinossauro, que acabaria se tornando um dos destaques da Família Trapo, programa exibido pela TV Record, entre 1967 e 1971, cujos cenários foram concebidos por  Antonio Rudolf. Contracenando com Jô Soares, Ricardo Corte-Real, Cidinha Campos, Renata Fronzi, e Otelo Zeloni, Golias consagrou-se definitivamente como um dos mais célebres humoristas do Brasil.

Após o término da Família Trapo em 1971, Golias protagonizou ainda na Record o seriado ‘Bronco Total’, entre 1972 e 1973. Nesta série, contracenou com Carlos Alberto de Nóbrega.

Em 1979, Golias protagonizou na Globo o seriado ‘Superbronco’. Adaptação da série ‘Mork & Mindy’ (protagonizada por Robin Williams), da rede americana ABC. O programa foi cancelado, após apenas 29 episódios, apesar de constar entre os dez programas de maior audiência da televisão brasileira, naquele ano.
Na década de 1980 foi para a Bandeirantes, onde estrelou o humorístico ‘Bronco’.

Em junho de 1990, passou a integrar o elenco fixo de ‘A Praça é Nossa’, no SBT, onde permaneceu até 2005, interpretando personagens como ‘O Profeta, Bronco’, ‘Pacífico’ e ‘Professor Bartolomeu’. Nesse meio tempo, foi protagonista na mesma emissora dos humorísticos ‘A Escolinha do Golias’ (com Nair Bello), ‘SBT Palace Hotel’, 2002, e ‘Meu Cunhado’ (com Moacyr Franco).

Na época da estreia de ‘Meu Cunhado’, em abril de 2004, Golias fez uma cirurgia para a implantação de um marca-passo. No mês seguinte voltou a ser internado em razão de um coágulo no cérebro. Seu estado de saúde a partir de então passou a se agravar.

Em 8 de setembro de 2005, Golias foi internado no Hospital São Luiz, em São Paulo. Com quadro de infecção pulmonar, ele morreu dia 27 de setembro, em decorrência de uma infecção generalizada. Foi sepultado no Cemitério do Morumbi.

Nesses 15 anos de sua passagem para outro plano, pudemos ter a exata dimensão da sua grandeza. Golias, era um homem fora do palco extremamente simplório, de vida pacata e muito discreta. Costumava carregar seus documentos e dinheiro num saco plástico, que levava para cima e para baixo, e era muito observador e intuitivo. Seu grande trunfo do humor inigualável, foi, principalmente o genial improviso, que permitia que não precisasse de nenhum ‘escada’ - jargão do humor que define aquele que prepara a piada, para realizar seu trabalho com brilho.

Golias foi casado com Lucia, e teve apenas uma filha, Paula, nascida em 1967. 
Foi, sem dúvida, criador de uma vertente de humor que ainda busca herdeiros. Deixa saudade. Um humorista não morre; simplesmente vai alegrar outros planos. Que Golias exale sua alegria em outras dimensões.


‘O Cride’, fala pra mãe!








Fonte: Marcos Rudolf , Memórias Paulistanas |  WP e Dvs



(JA, Mai20)





quinta-feira, 14 de maio de 2020

Harmonia musical, humana e cósmica


A importância da música em nossas percepções do mundo, desde o pensamento grego do século VIII a.C. até os dias de hoje




‘Necessariamente, a música que nos constitui não é nem boa nem má; ela é a música que cada um de nós anseia naquele momento para poder entrar em contato com a sua alma, com o outro e com a alma do mundo. Não há satisfação maior do que a música e do que a dança, que funcionam como orgasmos cósmicos, onde se entra em comunhão com a vida.’ Refletiu André Balboni, músico e estudioso da relação fundamental entre música e filosofia, autor do livro ‘Sopro das Musas’ (Odysseus Editora, 2018).





Na Grécia Antiga, do século VIII antes da nossa era, ocorreu, com o surgimento das cidades-estados, um ressurgimento da escrita e dos poetas-cantadores (aedos), que davam voz a tudo que poderia se apagar. Um canto passado de geração em geração, contando as histórias dos antepassados, até Homero. Cada vez que esses poetas-cantadores se apresentavam diante do público, invocavam as Musas, deidades afiliadas a Apolo, deus do sol, da luz, mas também da música e da profecia.




Diferente do que vem a cabeça quando usamos o termo ‘musas’ hoje, para os gregos, as nove Musas, filhas de Zeus e Mnemósine (Memória), são uma constelação de seres que têm papel fundamental na transmissão de sabedoria, no bem viver inspirando ciência e arte, e se relacionam diretamente com a memória. Não por acaso a morada das musas, o Museion, dá origem a palavra ‘museu’, um dos muitos ‘lugares de memória’ das sociedades ocidentais.

As musas visitam o mundo para fundar a memória do ser humano, pois auxiliam na formação da memória através da musicalidade do ritmo, melodia e harmonia, e guardam os aspectos mais fundamentais da vida humana.

A palavra ‘música’, vem de musiké e significa ‘aquilo que é das Musas’ – nesse campo cosmológico do saber. Portanto, um músico doa o divino às pessoas, imbuído de uma responsabilidade ética. Segundo a concepção grega, a música terrena emula a Harmonia Cósmica (ou das Esferas), a música silenciosa do movimento dos planetas.

Cada pessoa possui uma musicalidade inerente, que é capaz de ressaltar na alma do outro diferentes processos catárticos, através de uma melodia singular.
A musicalidade depende da relação entre as três categorias da música: ritmo, melodia e harmonia.

o    Ritmo - provém da métrica da forma poética da forma do poema, é uma duração das notas que, na concepção bergsoniana, é aquilo que resiste entre uma nota e outra, em um tempo mais interno
o   Melodia  - significa ‘canto da voz ou incorporado’, uma fala que revela a singularidade e a verdade de cada ser
o    Harmonia -  é a relação estética entre dos sons. A música do ser humano é um espelhamento da harmonia cósmica, e essa mesma harmonia cósmica permeia a alma humana. Essa conexão de almas humanas e divinas é facilitada pelas Musas.

Do ponto de vista da filosofia platônica, temos as seguintes relações entre a música e o ser humano: ritmo-corpo, melodia-palavra, harmonia-alma. Mas, do ponto de vista da filosofia contemporânea, principalmente no campo ético, como é o caso do filósofo francês Emmanuel Lévinas, temos uma mudança de perspectiva sobre essa questão da filosofia da música. Para Levinás, a questão não está somente naquilo que é bom ou ruim, mas na noção de que o encontro com o outro nos constitui enquanto seres humanos. Assim, se Platão estava em busca da ‘boa música’, em Levinás podemos alçar uma pergunta mais profunda: qual é a música que nos constitui enquanto pessoa?

Qual a melodia verdadeira? Qual o contato com a verdade que reverbera no outro? Qual a ação e reação que o eu causa no outro? A música tem essa potência do encontro, de uma relação do despertar. Há outras relações que estabelecemos, ou músicas que nos desconstituem? Esse é o Sopro das Musas, sempre em busca de descortinar um novo mundo por meio da arte.

A música amplia a nossa percepção, nos desperta e desvela outras camadas do olhar, do sentir e do viver, assim como uma pintura, uma fotografia, um filme ou um livro. Cada um tem acesso a sua melodia interna, a sua própria voz e o seu silêncio. Uma verdade que, de uma forma ou de outra, vibrará no rosto do outro, celebrando os encontros e desencontros da nossa vida.

Nesta época de pandemia, fique em casa. Tente ligar o som, balançar o corpo, e experimentar a comunhão cósmica que ecoa do seu estado de verdade.







Fonte: Cassiana Der Haroutiounian   |   FSP



(JA, Mai20)



segunda-feira, 11 de maio de 2020

Castelo de Clos Lucé Amboise, Centro-Vale do Loire, França



Há 500 anos, Leonardo da Vinci morreu em castelo que hoje abriga um museu dedicado a ele

Castelo de Amboise, antiga residência dos reis franceses, visto da margem oposta do Loire


Em 1515 Leonardo tinha 63 anos, Michelangelo, 40 e Rafael, 32. Os três viviam em Roma, o único lugar do mundo que podia comportar tantos gênios e egos. Poderíamos esperar que esses talentos trabalhassem juntos, mas não foi assim que aconteceu.

Em outubro daquele ano, o rei francês Francisco I anexou a cidade de Milão.   Dois meses depois, ele se encontrou com o papa Leão X em Bolonha, em uma ocasião em que Leonardo estava presente. O rei era admirador da obra do artista, então Leonardo recebeu uma encomenda: criou para Francisco um leão mecânico, que andava para a frente, abria o peito, e revelava um buquê de lírios. Alta tecnologia, coisa linda.

Pouco depois, em 1516, Leonardo já trabalhava oficialmente para o monarca francês. Aceitou o convite, e cruzou os Alpes em cima de uma mula, levando consigo alguns pupilos, anotações, rascunhos e três pinturas.


Fachada do Clos Lucé, que mantém um museu dedicado a Da Vinci

Ele passou a morar no Clos Lucé, castelo fortificado que um outro rei, Carlos VIII, comprou em 1490 para transformar em uma agradável residência de verão dos monarcas franceses.

O solar tinha uma passagem subterrânea para o castelo de Amboise, a então residência real. Era o palácio onde Francisco passou a infância, e onde Carlos morreu de forma estúpida, ao bater a cabeça no lintel de uma porta (lintel é a parte dura, horizontal e superior de portas e janelas).

Nada mal para o velho artista. Salário fixo, casa suntuosa e vizinho de Francisco, que ainda o nomeou ‘primeiro pintor, engenheiro e arquiteto do rei’.

Leonardo trabalhou em diversos projetos para Francisco, que foi um dos grandes monarcas de seu tempo. Fez estudos para a drenagem dos pântanos de Solonha e para uma rede de lagos e canais, conectando o Vale do Loire a Lyon, a fim de facilitar o acesso à Itália. Idealizou a cidade de Romorantin, novo distrito aristocrático que abrigaria a corte, e casas móveis para a nobreza itinerante. 

Criou também outros autômatos, na mesma linha do leão florista, para as espetaculares celebrações reais. Foram anos mais de engenheiro do que de pintor.  Mas, Leonardo também teve tempo para receber visitas ilustres do reino, líderes da Igreja, embaixadores italianos, e outros artistas. Trabalhava no térreo do edifício, e trabalhava demais. ‘A sopa está esfriando’, como deixou em uma de suas notas, preservadas até hoje.

No dia 2 de maio de 1519, há 500 anos, Leonardo morreu, provavelmente de derrame. Ele estava no Clos Lucé, a casa onde viveu os últimos três de seus 67 anos de vida, e que hoje abriga um museu dedicado a Da Vinci. Francisco chorou com a cabeça do amigo entre as mãos, embora essa seja a versão enfeitada, famosa na pintura de Ingres. Mas, dada a relação dos dois, sabemos que ele sentiu a partida do gênio.   Leonardo foi enterrado na igreja de São Florentim, no castelo de Amboise.

Quase três séculos depois, com os tempos áureos do palácio já na poeira da história, a dinastia Valois dera lugar à Bourbon, que, por sua vez, caiu na Revolução. A igreja foi destruída, e os ossos do gênio se perderam.


Capela de Saint-Hubert


Em 1863, a suposta ossada davinciana foi descoberta. Leonardo ganhou uma nova tumba, na capela de São Humberto, ali perto, nos jardins do castelo de Amboise.


A cidade de Amboise vista do castelo

Amboise, cidade histórica na margem esquerda do Loire, celebra meio milênio da morte de seu imigrante mais famoso. Paris também. As três pinturas que Leonardo levou em sua mudança para a França acabaram ficando no país. Hoje, elas integram o acervo do Louvre: A Virgem e o Menino com Santa Ana, São João Batista (que talvez nem estivesse finalizada), e Mona Lisa.



Fonte: Felipe van Deursen  |  Terra à Vista



(JA, Mai20)