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quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

‘Ode à Alegria’






O diretor artístico da Osesp narra o desafio de traduzir a obra clássica de Beethoven para comemoração dos 250 anos de nascimento do compositor. E fala sobre a importância duradoura dos ideais que a obra carrega
Traduzir a ‘Ode à Alegria’? Parece loucura. E seria, mesmo, não fossem as circunstâncias.

Em meados de 2018, o Carnegie Hall, celebrada casa de espetáculos de Nova York, começou a planejar um projeto internacional, em parceria com Marin Alsop, regente titular da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo).

Ao longo de 2020, quando se comemoram os 250 anos de nascimento de Beethoven (1770-1827), Marin vai reger a Nona Sinfonia pelos cinco continentes; começando, na verdade, agora em dezembro, em São Paulo, passando depois por EUA, África do Sul, China, Áustria, Nova Zelândia, Austrália e Inglaterra, para terminar no próprio Carnegie Hall. Em cada lugar, a Nona será ouvida em diálogo com a cultura do respectivo país e tendo a ‘Ode à Alegria’ — cantada por solistas e coro no quarto movimento — recriada na língua local.

Batizado de ‘All Together: A Global Ode to Joy’ (‘Todos Juntos: Uma Ode Global à Alegria’), o projeto quer tornar a Nona Sinfonia acessível ao maior número possível de pessoas, sem alterar a partitura, mas criando contextos novos para a audição.

Nenhuma obra do repertório clássico é mais conhecida que ela. Paradoxalmente, não serão mais que uma parcela das dezenas de milhões de ouvintes os que de fato podem acompanhar em alemão o poema de Schiller (1759-1805), crucial para o entendimento da Nona.

Beethoven mudou a noção da história da música que, depois dele – principalmente por causa dele – passa a se organizar como um cânone de grandes autores do passado.

Um desafio duplo, portanto. Antes de mais nada, definir o que, de outras músicas, faria sentido entremeado à sinfonia. A primeira versão da ‘Ode’ é de 1795. Em conjunto com a música de Beethoven (de 1824), leva ao limite ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade, que inspiram o mundo democrático moderno. Não era esse o mundo em que eles viviam. Tampouco o mundo por aqui, marcado pela tráfico de escravos — o Brasil foi a última nação das Américas a abolir a escravidão, em 1888. Situar a Nona em contexto brasileiro significa, portanto, encarar a questão, elegendo fragmentos capazes de compor outro horizonte.

Nossa Nona vai começar com um canto de capoeira baiano, ‘Navio Negreiro’, cantado pelo coro. Entre o primeiro e o segundo movimento, virão trechos de ‘Cabinda: Nós Somos Pretos’, peça sinfônica encomendada há quatro anos ao compositor baiano Paulo Costa Lima. Já para o intervalo entre o segundo e o terceiro, Clarice Assad compôs um adágio inspirado em temas de ‘Alegria, Alegria’ (1967), de outro compositor baiano, Caetano Veloso — antológica canção de reação ao arbítrio, em plena ditadura militar.

A mesma canção também é motivo de duas alusões na ‘Ode à Alegria’ em português, em minha tradução, feita na esteira de várias versões para canções de Schubert e Schumann, mas em outra escala e num espírito um tanto diferente. Dois exemplos devem bastar para dar uma ideia do que entra em jogo.

A ‘Ode’ de Schiller começa com esses versos famosos: ‘Freude, schöner Götterfunken,/ Tochter aus Elysium’. Em tradução literal: ‘Alegria, bela fagulha divina,/ Filha do Elísio’.

Para além das questões de métrica e rima, que permeiam todo o poema, um exemplo desses deixa evidente o risco de se fazer uma tradução ao pé da letra, que poderia soar não só anacrônica, mas francamente ridícula. A tentação, por outro lado, de imitar um autor romântico, como o Castro Alves de ‘Navio Negreiro’ (1869), por exemplo — poema que a seu modo conversa com a ‘Ode’ de Schiller, e que teria tudo a ver com esta Nona brasileira —, também tinha de ser deixada de lado, sob o mesmo risco.

A tradução precisa seguir minuciosamente os contornos da melodia. Sempre lembrando, também, o desejo de falar com uma plateia do nosso tempo, o resultado reforça a vertente mais moderna do pensamento do próprio Beethoven: ‘Alegria, alegria/ Filha do divino em nós’. Diferente nos termos, próximo na forma, fiel ao espírito – mais fiel até, quem sabe, que o próprio original, para um leitor nos dias de hoje. E boa de cantar.

Outro exemplo, sem sair da primeira estrofe. ‘Alle Menschen werden Brüder’, diz Schiller: ‘odos os homens se tornam irmãos’. A questão que pega é a incômoda sinonímia entre ‘homens’ e ‘humanidade’’, impossível de repetir sem mais nem menos, numa versão que busca aproximar a Nona de uma plateia atual. 
Ficaram assim os quatro últimos versos da estrofe: ‘Teu apelo vê reunido/ O que era dividido em vão,/ Homens e mulheres, juntos,/ São agora irmã e irmão’. Não seria isso o que diriam Schiller e Beethoven, hoje, defensores por excelência da liberdade e da igualdade?

A partir de agora e ao longo de todo o ano que vem, aqui como ao redor do mundo, a obra de Beethoven será ouvida nas mais variadas circunstâncias.

Nunca será demais escutar as sinfonias, os concertos, as sonatas, os quartetos de cordas, as obras corais, a ópera ‘Fidelio’. Beethoven mudou a noção da história da música, que depois dele — principalmente por causa dele — passa a se organizar como um cânone de grandes autores do passado. Mudou a ideia do que pode ou deve ser um concerto, experiência comparável à leitura de textos críticos ou filosóficos. Mudou, de maneira crucial, a própria ideia da composição, definindo o caminho da modernidade.

Pensando ainda nos ideais carregados por essa Sinfonia, não surpreende que tenha sido usada em tantos momentos críticos da história — durante a Segunda Guerra Mundial e na Queda do Muro de Berlim, para ficar nesses dois exemplos. Também não poderia ser outro o Hino da Europa, senão a ‘Ode à Alegria’.

Vivemos tempos estranhos. Para nós, também, a Nona pode ser uma inspiração e um alento. É a música da humanidade livre e justa, capaz, a despeito de tudo, de inventar a alegria.














Fonte: Arthur Nestrovski é diretor artístico da Osesp. Autor de “Tudo tem a ver – literatura e música”, entre outros livros.   |   =Nexo



(JA, Dez19)



segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Moda investe na arte para manter sua relevância, e os acervos, de pé


União entre Museu Van Gogh e grife Vans consagra tipo de mecenato que, comum no exterior, afunda no Brasil
Quanto custa restaurar a tela ‘Vaso com Doze Girassóis’ (1888), de Van Gogh? E quanto dinheiro se despeja para manter holofotes sobre uma marca, nascida nos pés dos skatistas californianos, que enfrenta a concorrência de jovens gigantes da moda urbana, como a Supreme? ‘Muito’ seria eufemismo.
Essa equação milionária consagrou nas vitrines brasileiras, na semana passada, um tipo de mecenato no qual museus de todo o mundo se fiam desde a virada do século, a fim de custear a conservação de suas relíquias e, também, para manter o apoio à produção de jovens artistas.
A grife Vans se uniu ao Museu Van Gogh, de Amsterdã, para lançar uma coleção que reproduz, em moletons, camisetas e seus famosos ‘slip on’  —tênis baixos com solado de borracha—, quadros e cartas importantes da trajetória do pintor impressionista.


Moleton base quadro 'Caveira2, 1887-1888 de Vincent Van Gogh

As pinceladas irregulares dos girassóis e de telas como ‘Amendoeira em Flor’ (1890) e ‘Vinha Velha com Mulher Camponesa’ (1890) são de domínio público, mas a marca preferiu oficializar a parceria e reverter os lucros para o museu. Não é bom-mocismo.
Ao vincular o nome da marca ao do pintor, a grife agrega à coleção um ‘conceito de exclusividade que as artes visuais propiciam’, segundo define a diretora global se calçados da Vans, Diandre Fuentes.
‘A história de resiliência de Van Gogh [que morreu pobre e não conseguia viver de seu trabalho] pode ser inspiradora para os jovens’, afirma.
À frente do projeto está o diretor do museu, Axel Rüger, celebridade no meio artístico e responsável por abrir o legado do pintor holandês para os cineastas Dorota Kobiela e Hugh Welchman, indicados ao Oscar deste ano pela animação ‘Com Amor, Van Gogh’.

Cena do Filme 'Com Amor Van Gogh'

‘Para nós, que vivemos de incentivos para manter atividades, parcerias são vitais. Do ponto de vista do legado, curadores precisam manter vivo o interesse das novas gerações acerca da história dos artistas clássicos’, diz Rüger à Folha.
Não foi aleatória a seleção de obras, muitas desconhecidas do grande público. ‘A coleção tem um papel educativo, porque não estamos falando de ‘Noite Estrelada’, mas de obras pouco exploradas’, explica Rüger.
No site da marca estão esgotados os ‘slip on’ que reproduzem versões de ‘Caveira’ e a carta enviada pelo artista ao irmão. Ainda há bonés (R$ 190) e tênis que estampam ‘Vinha Velha’ a R$ 400, e ‘Autorretrato’, vendido a R$ 350.
A relação entre arte e moda tem se feito cada vez mais presente, com grifes investindo em espaços próprios, assinados por arquitetos como Frank Gehry, que desenhou o prédio da Fundação Louis Vuitton, em Paris, ou Rem Koolhaas, que concebeu o da Fundação Prada, em Milão.
Esses centros culturais abrigam a produção de artistas contemporâneos e apoiam a exibição de jovens criadores, outro mantra associado a esse tipo de gestão cultural promovida pelas marcas.
Em parceria com a Fundação Guggenheim, de Nova York, a alemã Hugo Boss premia com R$ 450.000 o artista vencedor do Art Prize.
Do outro lado do Atlântico, a suíça Rolex mantém, além do patrocínio à Bienal de Arquitetura de Veneza, uma lista de protegidos, jovens que viajam para participar de residências com artistas famosos.
Durante a Bienal de São Paulo, em setembro, a marca alemã Montblanc entregará à brasileira Mônica Nador cerca de R$ 74.000. O nome da artista figura na lista de 17 beneficiados pelo Prêmio Montblanc de Cultura.
Nador criou o ‘Jardim Miriam Arte Clube’, no bairro da zona sul de São Paulo, que organiza eventos culturais para pessoas do entorno.
A ajuda da Montblanc é um dos poucos exemplos de integração entre a cultura brasileira e a carteira da moda.
Houve ainda o incentivo da Louis Vuitton à programação do MAC de Niterói, em 2016, como contrapartida a um desfile da grife, e o patrocínio de R$ 300 mil da suíça Jaeger-LeCoultre à Osesp, em 2013. Mas são esparsos exemplos de mostras, restaurações ou prêmios promovidos por etiquetas nacionais ou estrangeiras.

Roupa produzida pelo pintor paulistano Hercules Barsótti, exposta no Masp

O Masp tentou recriar a exposição Masp Rhodia, que convidou nos anos 1960 estilistas a transformarem em roupas obras de arte, nos moldes da parceria entre a Vans e o Museu Van Gogh.
Não conseguiu, como adiantou em dezembro último, devido ao posicionamento político do patrocinador, o empresário Flávio Rocha, da rede de lojas Riachuelo.
À época, artistas como Iran do Espírito Santo, e Caetano de Almeida, fizeram parte da debandada em massa do projeto após Rocha anunciar apoio a movimentos ligados à direita como o MBL e ao PRB (Partido Republicano Brasileiro).
Diretora do museu, Juliana Sá não desistiu da mostra e diz que ela sairá do papel.
‘É um caminho sem volta. O melhor exemplo do potencial de financiamento privado à arte é o baile anual do Metropolitan. As marcas perceberam que, entre patrocinar um time de futebol e um museu, há uma grande diferença de valor agregado’.
                                                  
 Fonte: Pedro Diniz   |   FSP

(JA, Ago18)