Museu troca termo 'Era Dourada' por
'Século 17 Holandês' para abarcar lado negativo do período
Ilustração Catarina Pignato |
Numa Europa que lida com a
ascensão de governos populistas dados à glorificação do passado como forma de
reforçar a identidade nacional, um museu holandês provocou grande polêmica ao
decidir que a era mais vistosa da história de seu país não deveria mais ser
enaltecida.
Há duas semanas, o Museu de
Amsterdã determinou que a Era Dourada deverá ser chamada apenas de Século 17 Holandês em
suas exposições e coleção permanente.
Em nota, o curador Tom van
der Molen, responsável pelo setor na instituição, afirma que ‘a Era Dourada
ocupa um lugar importante na historiografia ocidental’, mas que as associações
positivas ao termo, ‘como prosperidade, opulência e inocência, não dão conta da
realidade histórica’.
‘O termo ignora diversos
lados negativos do século 17, como pobreza, guerra, trabalhos forçados e tráfico
humano’.
A discussão envolve o Brasil:
entre 1630 e 1654 a Companhia das Índias Ocidentais holandesa gerenciou
uma grande colônia no Nordeste, centrada em Pernambuco. O domínio coincidiu com
o ápice da Era Dourada —termo que segue em uso no outro museu principal da
capital holandesa, o Rijksmuseum.
O século 17 viu a miséria
citada por Van der Molen, mas também o esplendor do zênite da arte alimentada
por patronos enriquecidos pelo comércio ultramarino: gênios como Rembrandt e
Johannes Vermeer atuaram naquela época.
A decisão desagradou o
governo holandês, de centro-direita. ‘Primeiro tivemos de mudar as placas de
rua, aí caíram estátuas e agora toda a Era Dourada vai para o lixo? É covardia
reescrever a história’, disse ao jornal De Telegraaf o deputado Zohair el
Yassini.
Questionado pela Folha, o
principal especialista holandês em questões de restituição colonial, Jos van
Beurden, buscou contemporizar.
‘É preciso debater à luz da
discussão sobre o passado colonial da Europa, que geralmente acaba numa
discussão binária’, afirma. ‘O termo Era Dourada é confortável porque faz pensar
mais no nosso passado glorioso do que no seu lado sombrio. Mas o nosso
não existe mais, e é preciso discutir para quem o século 17 foi dourado’.
O episódio é apenas o mais
recente de uma longa série. Em Portugal, outro país de dimensões irrisórias,
que logrou construir um enorme império com as mesmas implicações que os
holandeses, discutem - um museu também está no centro de controvérsia.
A Câmara Municipal de Lisboa
decidiu no ano passado pela construção de um Museu dos Descobrimentos. A reação
foi imediata, com manifesto de intelectuais e historiadores pedindo a
reconsideração do nome e da temática —a escravidão, a subjugação dos indígenas
no Brasil, e outros tantos temas sensíveis entraram como argumento.
Ao fim, em dezembro os
legisladores incluíram no projeto a obrigatoriedade de uma seção dedicada à
escravidão.
Em julho, também foram
destinados fundos para a criação do primeiro Memorial da Escravatura, que deve
ficar pronto em 2020. Houve acirrados debates entre deputados de direita e
de esquerda, com os primeiros criticando o que chamam de autoflagelação em
detrimento da celebração dos exploradores.
É um equilíbrio delicado,
como demonstra o livro ‘Conquistadores’ (Ed.
Crítica, 2016), do historiador britânico
Roger Crowley: a engenhosidade portuguesa na construção de seu império era, ao
mesmo tempo, admirável e abominável.
O mesmo se pode dizer da
grande maioria das empreitadas coloniais europeias. A maior de todas, a
britânica, também é alvo de escrutínio. Ali, a questão é carregada por tintas
do politicamente correto.
Em 2017, por
exemplo, foi reaberto após uma reforma o Museu Nacional do Exército, em
Londres. Só que as longas exibições cronológicas foram substituídas pelo que um
observador poderia chamar de sessão de análise histórica.
Surgiram paredes com
advertências contra o militarismo, e até sistemas de votação, no qual o
visitante é perguntado se vale a pena colocar o dinheiro no Exército. As
coleções de arte decorrentes de séculos de domínio de terras distantes é outra
vertente do debate.
São clássicas as recusas do
Museu Britânico em devolver os tesouros adquiridos ou roubados de antigas
colônias: o Egito, por exemplo, reclama a devolução de artefatos como a Pedra
de Rosetta, tablete com textos em grego, demótico e hieróglifos, que tornou
possível a tradução da escrita dos antigos egípcios.
Na França, o governo de
Emmanuel Macron criou, no ano passado, uma comissão que está catalogando as
dezenas de milhares de peças retiradas de antigas colônias africanas.
Para o especialista em restituições
Van Beurden, não há uma regra única para lidar com essas demandas. ‘É preciso
ver o contexto de cada retirada. Só devolver não remenda o passado’, disse.
A ascensão do politicamente
correto também turva aspectos pouco agradáveis do debate, como os riscos que as
coleções correm em seus países natais. Por paternalista, o argumento da falta
de estrutura é usualmente descartado.
Mas poucos se lembram da
grande devolução de obras congolesas pela Bélgica ao regime de Mobutu Sese Seko,
no então Zaire, em 1977, quando quase tudo desapareceu para reaparecer no
mercado de arte ilegal.
Às vezes, o choque histórico
resvala o inusitado. A Marinha Real britânica fez um protesto formal, no começo
de 2018, contra a decisão do Museu Marítimo da Escócia de instituir artigos e
pronomes neutros para designar embarcações —tratadas como entes femininos em
todas as forças navais do mundo, algo que segundo a direção poderia ferir
sensibilidades modernas.
Já na mesma Holanda da
presente polêmica, o conde Maurício de Nassau teve o busto retirado do museu
que leva seu nome, em um prédio que havia erigido, em Haia.
O Mauritshuis, que hospeda a
célebre pintura ‘Moça com Brinco de Pérola’, de Vermeer, considera que o
passado do antigo dono da casa, como governador colonial no Brasil (1636-44), o
tornava indigno da homenagem.
Até o premiê holandês
protestou, mas a remoção foi mantida. Para Van Beurden, a solução é a conversa.
‘Acho que todos os interessados deveriam sentar e discutir, certamente haveria
uma alternativa inclusiva e até brilhante, como a Era Dourada’, disse.
Europa concentra casos de mudanças e
debates
A Era
Dourada
Fachada do Rijksmuseum, em Amsterdã |
O Museu de Amsterdã baniu o
termo para definir o ápice do poder colonial holandês, por considerar que ele
ignora consequências como a escravidão.
Descobrimentos?
Lisboa debate se deve criar
um Museu dos Descobrimentos, dado o passivo humano da colonização portuguesa
O patrono malvado
Museu Maurithuis fica na cidade de Haia, Holanda |
O museu Maurithuis, em Haia
(Holanda), retirou o busto de Maurício de Nassau, antigo dono do prédio, por
suas aventuras coloniais no Brasil.
Devolução de artefatos
A França formou comissão para
devolver peças de museus a ex-colônias, e há pedidos de retorno de ícones como
a Pedra de Rosetta (do Egito, está no Reino Unido) ou o busto de Nefertiti (do
Egito, está na Alemanha)
Mulher fotografa obra de Rembrandt exposta no museu Michael Kooren |
Fonte: Igor Gielow
| FSP
(JA, Set19)