A mão que segura a caneta é a que escreve a história
A escritora francesa Gabrielle Colette, 1873-1954, nasceu no dia 28 de janeiro em Saint-Sauveur-en-Puisaye, França.
Ela tinha apenas vinte anos
de idade quando se apaixonou por Henry Gauthier-Villars, um homem de trinta e
quatro anos, e amigo de seu pai.
Muda-se para Paris em 1893 quando se
casa com Henry. A jovem deixa sua rural e bucólica cidade natal para entrar em
um universo completamente diferente, e que fará de Colette uma outra pessoa.
Com uma trajetória
vanguardista em meio à sociedade conservadora de Paris no século passado, ela
passou anos na sombra do marido, até o momento em que subverteu as regras do
machismo da época, e se tornou uma das principais figuras na luta pelo
reconhecimento feminino.
Primeiros
Trabalhos
Seu marido, o crítico e
escritor Henry Gauthier-Villars se apropriou da série de romances ‘Claudine’,
um sucesso editorial, que ela escreveu se baseando nas memórias de sua
infância.
Willy, como era chamado,
escravizou sua esposa, chegando a trancá-la, escrevendo por até 16 horas em um
só dia. Em 1909 eles se divorciaram e a escritora empreendeu uma
batalha legal para recuperar a autoria de seus textos.
Polêmica
Sua separação causou espanto
na sociedade aristocrática francesa. Com isso ela se reinventou como dançarina,
e artista nos principais teatros da cidade. Ela foi amante da marquesa Mathilde
de Morny, se casou mais duas vezes, e teve dezenas de casos, inclusive com seu
enteado de 16 anos.
Mundo
da moda
A escritora foi muito
importante no mundo da moda feminina. Além de trabalhar como colunista de moda
em um jornal, o grande sucesso dos seus quatro romances ‘Claudine’ teve uma
grande influência na indústria. O nome da protagonista foi associado a vários
acessórios como chapéus, colares e perfumes. Colette também foi uma das
primeiras mulheres que se atreveu a usar calças em público, mantendo uma
estreita amizade com a estilista Coco Chanel.
Biografia no
cinema
Recentemente foi lançada uma cinebiografia a respeito da vida da escritora francesa. O filme, livremente inspirado na vida escritora francesa, foi muito bem avaliado pela crítica, e traz um retrato bastante fiel da luta de Colette pelo reconhecimento de seus trabalhos como escritora.
‘Colette’, o filme, estreou
no Brasil no final de 2018 e busca retratar os primeiros anos de sua
protagonista em Paris, suas descobertas a respeito de si mesma e também o
relacionamento abusivo em que vivia com o marido.
Com Keira Knightley no papel principal e
Dominc West como Henry ‘Willy’ Gauthier, acompanhamos a transformação de
Colette, de uma jovem inocente do interior para uma mulher determinada a ser
dona de si mesma, ainda que tenha que sofrer um bocado até isso acontecer.
Quando se casa com um homem
quatorze anos mais velho do que ela, Colette tem em mente apenas o amor que
sentem um pelo outro.
Quando ela começa a ser
apresentada nas festas mais ricas e restritas de Paris, repletas de
intelectuais e escritores, é que Colette percebe que o mundo que conhece, e
aquele em que está entrando, são completamente diferentes; as pessoas pensam
ser genuínas e se dão muita importância, a começar por seu próprio marido,
enquanto ela enxerga apenas uma porção de esnobes tentando aparentar ser o que
não são.
Em determinado momento,
quando Colette é apresentada como esposa do renomado autor, uma das mulheres
comenta que, finalmente, o libertino Willy havia sido fisgado, apenas para, no
instante seguinte, depreciar a moça por conta do modelo de vestido que está
usando.
A vida de casada de Colette não demora a entrar em uma rotina: ela permanece em casa como parte do grupo de escritores fantasma de Willy, enquanto o marido sai para se encontrar com editores, escritores e também suas amantes.
A fama de Willy como autor
nasceu com base nos escritores fantasma que ele contrata para escrever por ele,
enquanto sua parte no acordo é a de fornecer o esquema geral da narrativa, e
posterior edição do trabalho feito por outros, colocando apenas seu nome na
capa do livro finalizado.
No início de seu casamento,
Colette escreve pequenas produções, mas quando as economias do casal vão de mal
a pior, ela decide, por incentivo de Willy, escrever um romance. É assim que
nasce o primeiro trabalho de Colette, ‘Claudine à L’école’, um livro inspirado
na própria vivência e memórias de sua autora.
Em um primeiro momento, Willy
não dá a devida atenção ao livro, o que deixa Colette visivelmente chateada,
mas quando a obra é finalmente publicada, ela se transforma em sucesso de
público e crítica, vendendo milhares de cópias, um verdadeiro best-seller. ‘Claudine
à L’école’ também se transforma na obsessão de muitos, principalmente de
mulheres em transição da vida adolescente para a adulta, que se veem, pela
primeira vez, retratadas em um livro.
A obra, que pode ser
caracterizada como um coming of age, conta a história de uma jovem de quinze
anos, e suas aventuras em um município rural e bucólico, similar ao que a
própria autora nasceu, tanto que o livro é considerado semi biográfico, e fala,
não apenas das brigas da protagonista com a nova diretora de seu colégio, como
também das descobertas sexuais de Claudine com outra mulher.
Willy chega a fazer algumas
alterações no manuscrito original durante sua edição, mas sempre com a anuência
da esposa — o que não quer dizer muita coisa, visto que, no final das contas, a
obra ainda é publicada como autoria única de Willy.
O sucesso de ‘Claudine à
L’école’ logo faz surgir a ânsia por mais material contando as histórias e
aventuras da jovem, mas Colette não está muito disposta a escrever.
Com o dinheiro recebido das
vendas, Willy compra uma casa nos arredores de Paris para que Colette possa se
sentir mais próxima do campo, lugar de que sente falta, e ela parece mais
inclinada à cuidar da nova propriedade do que a escrever.
Não demora e Willy, em um
rompante, decide prender a esposa em um dos cômodos da casa com a promessa de
soltá-la apenas quando um novo Claudine tenha sido escrito.
Essa não é, inclusive, a
única demonstração de abuso por parte de Willy, uma vez que ele não deixa que a
esposa tenha ciência das economias do casal, e a mantém escrevendo sob pressão
um livro que sequer poderá assinar.
É dessa maneira que Colette escreve o segundo livro de sua vindoura trilogia. e o batiza de ‘Claudine à Paris’. O livro causa novo rebuliço não apenas entre as rodas de intelectuais de Paris, como a qualquer um que leia a obra.
A partir de então Claudine se
transforma em uma marca, sendo estampada em produtos variados como sabonetes,
maquiagem e vestidos. Não demora também para que Claudine seja editado para uma
peça de teatro, o que coloca um novo peso sobre os ombros de Colette: a
obsessão de Willy em transformar qualquer tema possível em um Claudine faz até
mesmo com que a esposa tenha que cortar o cabelo para que fique ainda mais
parecida com a atriz que interpretará sua personagem nos palcos de Paris.
Com o reconhecimento de ‘Claudine
à L’école em Paris’, logo Willy e Colette ficam ainda mais famosos, recebendo
olhares e comentários onde quer que vão. É quando o casal está passeando por um
dos parques de Paris que se aproxima Georgie Raoul-Duval (Eleanor Tomlinson),
a bela e jovem esposa de um rico empresário da Louisiana, nos Estados Unidos.
Georgie, tendo sido criada em
Paris, está acostumada com o ritmo da cidade e não sente falta do marido que
está sempre viajando à negócios, e é valendo-se da ausência dele que a moça
decide convidar Colette para visitá-la em seu apartamento.
É Willy quem incentiva a
esposa a comparecer ao encontro, interpretando as segundas intenções de Georgie
de maneira correta — e não é que Willy esteja sendo altruísta ou qualquer coisa
do tipo: para ele é perfeitamente aceitável que a esposa tenha um caso com uma
bela mulher, desde que ele também o tenha, mas sem que Colette saiba.
Willy visita o apartamento de
Georgie em dias alternados aos de Colette, e a esposa não sabe o que se passa
entre os três. No início do casamento, Colette, inclusive, briga com Willy
quando descobre que ele tem amantes, ameaçando deixá-lo caso ele não seja
completamente honesto com ela. Mas o apelo de Colette de nada vale para Willy
que decide também tomar Georgie como amante.
Todo o relacionamento entre
os três degringola quando Colette descobre o que está acontecendo, mas ela e
Willy acabam chegando a um entendimento de como lidar com o affair, o que é
concluído quando Colette escreve seu terceiro livro, ‘Claudine en Ménage’,
inspirada pelos encontros entre ela, Willy e Georgie — o que a norte-americana
não acha nenhum pouco agradável de saber.
Ao ameaçar Colette para que
ela desista da publicação, Georgie apenas dá mais munição para que ‘Claudine en
Ménage’ se transforme em mais um sucesso de público e crítica, mas é apenas
Willy quem colhe, mais uma vez, os louros e a glória desse trabalho.
Colette está cada vez mais incomodada com o fato de que é apenas Willy quem leva o crédito por seu trabalho, e propõe que os próximos livros sejam assinados pelos dois. Mas o marido refuta a ideia, partindo do princípio de que mulheres não são capazes de vender livros da mesma forma que os homens. Na Paris do início dos anos 1900, muita coisa está mudando, mas o machismo permanece firme e forte.
Procurando ser independente e
dona de suas próprias obras, Colette envolve-se cada vez mais com Mathilde de
Morny, a Marquesa de Belbeuf, ou simplesmente Missy (Denise Gough).
Nascida em uma família nobre,
o pai de Missy era meio-irmão de Napoleão III, a marquesa teve uma infância de abusos e negligência,
que culminou em um casamento sem amor quando ela completou dezoito anos. Missy
acreditava que seu marido, Jacques Godart, o terceiro Marquês de Belbeuf, era
gay e, assim como ela, estava preso em aparências que detestava manter.
O casal se divorciou quatro
anos após o casamento, e Missy passou a viver sua verdade, relacionando-se com
mulheres e vestindo-se como o homem, o que afrontava a alta sociedade
parisiense da época. O filme não entra em muitos detalhes a respeito, mas
alguns estudiosos se referem a Missy como transgênero, enquanto outros dizem
não ser possível afirmar tal coisa a respeito da Marquesa de Belbeuf.
Colette, no entanto, é de uma
enorme delicadeza ao mostrar o relacionamento entre Colette e Missy, que se
conheceram em 1905 e se encantaram praticamente de imediato.
Missy incomodava a sociedade
parisiense, e fofocas a respeito de seu gênero e sua orientação sexual eram
comuns. Missy era transgressivo e encontrou em Colette seu par, e logo a dupla
começou a se apresentar no teatro Causou comoção em Paris quando, durante a
encenação, elas se beijam no palco.
Enquanto isso, Willy decide
vender os direitos da trilogia Claudine para não ir à falência, o que ele faz
sem comunicar a esposa. Colette descobre o que o marido fez da pior maneira
possível e, na sequência, decide finalmente se separar.
Willy implora para que
Colette não o deixe, mas ela não pensa duas vezes: é o momento de ser dona não
apenas da própria vida, como também dos próprios livros. Em um novo rompante de
raiva, Willy decide queimar os originais de Colette para que a esposa não possa
ter como provar a autoria dos livros, mas o assistente do autor, Paul Héon (Johnny K. Palmer)
os resgata e entrega à sua dona de direito.
A Colette de Keira Knightley
é vivaz e audaz quando tem que ser, demonstrando a fibra de sua personagem, e
seu incomparável brilhantismo.
Oposto a ela está Dominc
West, muito bem em um personagem que não consegue despertar a menor simpatia de
seu público, ainda que o diretor e roteirista Wash Westmoreland não pese a mão
no momento de mostrar suas piores atitudes.
O diretor, inclusive,
consegue segurar sua câmera e não comete tanto ‘male gaze’ (olhar masculino)
quanto dita o senso comum para dramas de época dirigidos por homens,
principalmente nas cenas em que Colette está com suas amantes, o que é um ponto
positivo, ainda que ele não tenha feito mais do que sua obrigação.
Em nenhum momento a
bissexualidade de Colette é colocada como algo exótico ou puramente para
chocar, e isso é muito mais do que se pode dizer de diversos filmes com
mulheres bi.
O longa é um belo tributo a
uma autora que lutou para ser reconhecida por seu trabalho e que, após o
divórcio, publicou mais de trinta obras, entre romances e contos.
Colette é capaz de contar,
com toques de romance, a história real de uma mulher singular, suas dores e
seus amores, seus sonhos e ambições — somando a isso uma fotografia
incrivelmente inspirada, cenários e arquiteturas belíssimas e um figurino
impecável.
Ao final do filme, Colette
assume que é dela a mão que segura a caneta, e que ninguém mais escreverá a sua
história por ela.
Fonte: Aliança Francesa |
Valkirias
(JA, Fev21)