Exposição chega a SP em
agosto com obras que reagem às violências física e política
Obra de Sandra Eleta (Panamá, 1942), que está na mostra ‘Radical Women’. Edita (la del plumero), de 1977, da série ‘La servidumbre’, 1978-79. |
Nessa
performance há quase cinco décadas, Ana Mendieta reconstruiu em seu ateliê a
cena de um estupro seguido de assassinato que viu no jornal. O público entrava
na sala assumindo o lugar de testemunha diante do crime -ela, imóvel, fazia a
vítima.
Essa artista
cubana radicada nos Estados Unidos e morta ao despencar da janela de seu
apartamento nova-iorquino, em circunstâncias nunca esclarecidas, entendeu o
corpo da mulher como um campo de guerra desde os primórdios de sua obra
plástica.
Outras
batalhas e atos de extrema violência física e política também deixaram suas
marcas na pele de mais de cem artistas latino-americanas ao lado dela em ‘Mulheres
Radicais’, exposição que ocupa agora quase um andar inteiro do Museu do
Brooklyn, em Nova York, e estreia em agosto na Pinacoteca paulistana.
Todas elas,
com exceção das americanas de origem hispânica, vieram de países que
atravessaram regimes militares, o Brasil entre eles. Na entrada, uma extensa
linha do tempo estabelece esses paralelos e traz estampado um retrato da
ex-presidente Dilma Rousseff, lembrando que ela também foi presa e torturada
nos tempos da ditadura.
Mas a reação
dessas artistas aos excessos de uma era em convulsão passou longe das
manifestações e dos protestos nas ruas para começar dentro de casa, às vezes
dentro do próprio corpo -a maternidade, a menstruação e a vida doméstica
aparecem nas obras delas como o espelho íntimo e manchado de uma realidade
hostil às mulheres.
Em seu
apartamento no Rio de Janeiro, por exemplo, Letícia Parente se filmou
costurando ‘made in Brasil’ com linha e agulha na sola de seu pé, a marca da
violência gerada em casa. Outro vídeo mostra a artista desenhando os traços de
seu próprio rosto em pedaços de fita adesiva colados sobre os olhos e a boca,
uma espécie de mordaça caseira.
No mesmo tom,
Anna Maria Maiolino ameaça furar os olhos ou cortar a língua com uma tesoura
numa série de autorretratos, enquanto Lenora de Barros aparece em outro
registro fotográfico lambendo as teclas de uma velha máquina de escrever,
denunciando a asfixia mecânica de um estado forçado de mudez.
E mesmo que
sussurrem alguém vai ouvir. Uma pequena orelha branca de gesso colada na
parede, obra de Amélia Toledo, ataca com extrema delicadeza um quadro de
vigilância absoluta. Junto dela, bocas esculpidas no mesmo material esboçam
sorrisos estáticos, mais uma peça dessa artista morta no ano passado, que
disfarça o peso da paranoia.
É como se só
os vestígios deixados por todas essas mulheres falassem bem mais alto do que
qualquer tentativa de parecer monumental.
Enquanto a
peruana Teresa Burga criou uma instalação em que uma luz vermelha desbotada
pisca no ritmo de seus batimentos cardíacos, transformando o corpo num austero
sinal de alerta, a americana Sophie Rivera fotografa seus absorventes
ensanguentados dentro de uma privada.
‘O corpo
feminino sempre foi representado como o corpo nu’, diz a argentina Andrea
Giunta, uma das organizadoras da mostra. ‘Mas essas artistas desarticulam essa
noção. Elas falam da emancipação do corpo não só em termos políticos, mas
também de sexualidade. Transformam o corpo em lugar democrático’.
E erótico. Dos
trabalhos mais fortes da ala da mostra dedicada ao desejo feminino, um filme
que Lygia Pape rodou na década de 1970 é um plano fechado da boca de dois
homens barbados lambendo objetos brilhantes. Fora de cena, a artista fala em
gula e luxúria – ‘um eco da antropofagia de tempos modernistas’.
Teresinha
Soares e Wanda Pimentel, duas artistas que acabam de ter retrospectivas no
Masp, também estão na mostra com obras encharcadas de um erotismo mais pop,
como os interiores de quartos em que Pimentel mostra só as pernas de mulheres
anônimas diante de calcinhas e sutiãs espalhados pelo chão.
O sexo, nesse
ponto, parece se expandir para o território, seja ele mundano como o quarto de
casa ou exótico como uma paisagem estelar.
Zilia Sánchez,
uma artista cubana escalada para a última Bienal de Veneza, tem ali um de seus
quadros com elementos que saltam para fora da tela, lembrando tanto uma vagina
quanto um vale lunar.
Mas nem sempre
esse corpo dilatado tem ares lúdicos. O ‘Presunto’, um enorme colchão pardo
criado por Carmela Gross, remete a um cadáver estendido no asfalto, um dos
milhares de desaparecidos nas ditaduras latinas.
É mais um
corpo anônimo num cruzamento ou beco qualquer de cidades distintas que se
assemelham pelo grau de violência desmedida que abrigaram, tal como partes do
próprio corpo e do corpo de seus amigos que Vera Chaves Barcellos fotocopiou
para criar uma enorme instalação.
Seu mosaico em
preto e branco, com digitais, peitos, pelos pubianos e cabelos perdidos domina
o chão de uma das últimas galerias da exposição, como se inundasse toda a
paisagem num misto de erotismo e morbidez – ‘são corpos que podem ter dado seus
últimos suspiros no meio da rua, atrapalhando o tráfego’.
Nesse ponto,
esses trabalhos históricos ganham outra leitura em tempos de violência e
extremismo em alta no Brasil e no resto do planeta.
‘Isso ainda é
o presente dos Estados Unidos, da América Latina e do Brasil’, diz Giunta, a
curadora. ‘Talvez tenhamos que pensar que não aprendemos nada com a história. A
radicalidade desses trabalhos tem a ver com resgatar uma parte da história da
arte que acabou apagada da narrativa de quase todos esses países.
Texto: Silas Marti |
FSP
(JA, Abr18)
Nenhum comentário:
Postar um comentário