quinta-feira, 26 de abril de 2018

Mostra reúne artistas latinas que veem o corpo como um campo de guerra


Exposição chega a SP em agosto com obras que reagem às violências física e política
Obra de Sandra Eleta (Panamá, 1942), que está na mostra ‘Radical Women’. Edita (la del plumero), de 1977, da série ‘La servidumbre’, 1978-79.
Ela está amarrada, nua da cintura para baixo, seu corpo todo encharcado de sangue. No chão, outras manchas vermelhas ainda frescas mostram que a vida daquela mulher acabava bem ali.

Nessa performance há quase cinco décadas, Ana Mendieta reconstruiu em seu ateliê a cena de um estupro seguido de assassinato que viu no jornal. O público entrava na sala assumindo o lugar de testemunha diante do crime -ela, imóvel, fazia a vítima.

Essa artista cubana radicada nos Estados Unidos e morta ao despencar da janela de seu apartamento nova-iorquino, em circunstâncias nunca esclarecidas, entendeu o corpo da mulher como um campo de guerra desde os primórdios de sua obra plástica.

Outras batalhas e atos de extrema violência física e política também deixaram suas marcas na pele de mais de cem artistas latino-americanas ao lado dela em ‘Mulheres Radicais’, exposição que ocupa agora quase um andar inteiro do Museu do Brooklyn, em Nova York, e estreia em agosto na Pinacoteca paulistana.

Todas elas, com exceção das americanas de origem hispânica, vieram de países que atravessaram regimes militares, o Brasil entre eles. Na entrada, uma extensa linha do tempo estabelece esses paralelos e traz estampado um retrato da ex-presidente Dilma Rousseff, lembrando que ela também foi presa e torturada nos tempos da ditadura.

Mas a reação dessas artistas aos excessos de uma era em convulsão passou longe das manifestações e dos protestos nas ruas para começar dentro de casa, às vezes dentro do próprio corpo -a maternidade, a menstruação e a vida doméstica aparecem nas obras delas como o espelho íntimo e manchado de uma realidade hostil às mulheres.

Em seu apartamento no Rio de Janeiro, por exemplo, Letícia Parente se filmou costurando ‘made in Brasil’ com linha e agulha na sola de seu pé, a marca da violência gerada em casa. Outro vídeo mostra a artista desenhando os traços de seu próprio rosto em pedaços de fita adesiva colados sobre os olhos e a boca, uma espécie de mordaça caseira.

No mesmo tom, Anna Maria Maiolino ameaça furar os olhos ou cortar a língua com uma tesoura numa série de autorretratos, enquanto Lenora de Barros aparece em outro registro fotográfico lambendo as teclas de uma velha máquina de escrever, denunciando a asfixia mecânica de um estado forçado de mudez.

E mesmo que sussurrem alguém vai ouvir. Uma pequena orelha branca de gesso colada na parede, obra de Amélia Toledo, ataca com extrema delicadeza um quadro de vigilância absoluta. Junto dela, bocas esculpidas no mesmo material esboçam sorrisos estáticos, mais uma peça dessa artista morta no ano passado, que disfarça o peso da paranoia.

É como se só os vestígios deixados por todas essas mulheres falassem bem mais alto do que qualquer tentativa de parecer monumental.

Enquanto a peruana Teresa Burga criou uma instalação em que uma luz vermelha desbotada pisca no ritmo de seus batimentos cardíacos, transformando o corpo num austero sinal de alerta, a americana Sophie Rivera fotografa seus absorventes ensanguentados dentro de uma privada.

‘O corpo feminino sempre foi representado como o corpo nu’, diz a argentina Andrea Giunta, uma das organizadoras da mostra. ‘Mas essas artistas desarticulam essa noção. Elas falam da emancipação do corpo não só em termos políticos, mas também de sexualidade. Transformam o corpo em lugar democrático’.

E erótico. Dos trabalhos mais fortes da ala da mostra dedicada ao desejo feminino, um filme que Lygia Pape rodou na década de 1970 é um plano fechado da boca de dois homens barbados lambendo objetos brilhantes. Fora de cena, a artista fala em gula e luxúria – ‘um eco da antropofagia de tempos modernistas’.

Teresinha Soares e Wanda Pimentel, duas artistas que acabam de ter retrospectivas no Masp, também estão na mostra com obras encharcadas de um erotismo mais pop, como os interiores de quartos em que Pimentel mostra só as pernas de mulheres anônimas diante de calcinhas e sutiãs espalhados pelo chão.

O sexo, nesse ponto, parece se expandir para o território, seja ele mundano como o quarto de casa ou exótico como uma paisagem estelar.

Zilia Sánchez, uma artista cubana escalada para a última Bienal de Veneza, tem ali um de seus quadros com elementos que saltam para fora da tela, lembrando tanto uma vagina quanto um vale lunar.

Mas nem sempre esse corpo dilatado tem ares lúdicos. O ‘Presunto’, um enorme colchão pardo criado por Carmela Gross, remete a um cadáver estendido no asfalto, um dos milhares de desaparecidos nas ditaduras latinas.

É mais um corpo anônimo num cruzamento ou beco qualquer de cidades distintas que se assemelham pelo grau de violência desmedida que abrigaram, tal como partes do próprio corpo e do corpo de seus amigos que Vera Chaves Barcellos fotocopiou para criar uma enorme instalação.

Seu mosaico em preto e branco, com digitais, peitos, pelos pubianos e cabelos perdidos domina o chão de uma das últimas galerias da exposição, como se inundasse toda a paisagem num misto de erotismo e morbidez – ‘são corpos que podem ter dado seus últimos suspiros no meio da rua, atrapalhando o tráfego’.

Nesse ponto, esses trabalhos históricos ganham outra leitura em tempos de violência e extremismo em alta no Brasil e no resto do planeta.

‘Isso ainda é o presente dos Estados Unidos, da América Latina e do Brasil’, diz Giunta, a curadora. ‘Talvez tenhamos que pensar que não aprendemos nada com a história. A radicalidade desses trabalhos tem a ver com resgatar uma parte da história da arte que acabou apagada da narrativa de quase todos esses países.



Texto: Silas Marti   |   FSP

(JA, Abr18)

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