quarta-feira, 15 de abril de 2020

Logo dos Rolling Stones

Como os Rolling Stones criaram o famoso desenho da boca com língua para fora

Logotipo criado por John Pasche, em 1971, para os Rolling Stones

Símbolo que identifica o grupo de Mick Jagger há mais de cinco décadas surgiu inspirado em deus indiano, e sinal de protesto.

No começo, era só um pequeno emblema, algo que pudesse ser usado para adornar um compacto simples de 45 rotações por minuto, ou como cabeçalho na correspondência da banda. Mas, não demorou para que o símbolo se tornasse o mais onipresente, e depois o mais famoso logotipo na história do rock.

Por mais de 50 anos, um símbolo de lábios e língua identifica os Rolling Stones, e foi usado em todo tipo de produto - de camisetas e isqueiros a painéis de decoração de palco, aparecendo em variações incontáveis ao longo das décadas.

Embora muitas das pessoas que amam a imagem sejam fãs da banda, o logotipo de muitas maneiras transcendeu os Stones. No entanto, quando foi encomendado, em abril de 1970, o designer que o criou –John Pasche– não fazia ideia do quanto seu trabalho se tornaria popular – e lucrativo.

O logotipo seria parte de uma exposição que entraria em cartaz este mês, ‘Revolutions: Records and Rebels 1966-1970’, no Grande Halle de la Villette, em Paris. Mas o evento foi adiado por causa do surto do novo coronavírus. Mesmo assim, conversei com Pasche, de 74 anos, por telefone, em Londres, na semana passada, para um vislumbre da história desse trabalho (e também falei com outras testemunhas do processo).

No começo de 1970, o Royal College of Art, em Londres, foi contatado pelo escritório do empresário dos Rolling Stones. A banda estava em busca de um artista para criar um cartaz para sua turnê europeia de 1970. A escola de arte recomendou Pasche, que estava concluindo seu mestrado em arte.

Pasche se encontrou com Mick Jagger para discutir ideias para o cartaz, e uma semana mais tarde voltou a entrar em contato com o vocalista para lhe mostrar o desenho. Jagger não ficou satisfeito. ‘Acho que por causa da cor e da composição’, disse Pasche, no museu Victoria and Albert, em 2016. ‘Ele rejeitou o desenho. Fiquei pensando que, bem, era aquilo’.

‘Tenho certeza de que você é capaz de fazer melhor, John’, foi a fala de Jagger.
A segunda e definitiva versão, que recuava à estética das décadas de 1930 e 1940, e também incluía um turbojato Concorde, agradou mais. Pasche foi contatado logo depois por Jo Bergman, a assistente pessoal da banda. Em uma carta datada de 29 de abril de 1970, Bergman pediu especificamente a Pasche que ‘criasse um logotipo ou símbolo que possa ser usado em papel de carta, como capa dos programas de shows, e como capa do material de imprensa’.

Em reunião com o designer, meses depois, Jagger foi mais específico, recorda Pasche. Ele queria ‘uma imagem que funcionasse sozinha –como o logotipo da Shell Petroleum, queria aquele tipo de simplicidade’.

Na mesma reunião, Jagger mostrou a Pasche uma ilustração da divindade hindu Kali, que Jagger havia visto em uma loja perto de sua casa, e pedido emprestada.

De acordo com Pasche, Jagger disse que estava ‘mais interessado na natureza indiana da coisa’; a cultura indiana estava na moda no Reino Unido, na época. Mas o que chamou a atenção do designer foi a boca aberta, e a língua saliente de Kali. ‘Eu me liguei de imediato na língua e nos lábios’, disse Pasche.


John Pasche mostra logotipo que criou para os Rolling Stones, em 2005

Ao contrário do que a maioria das pessoas acredita, o logotipo, criado originalmente em preto e branco, e usado no desenvolvimento das versões posteriores, não era - pelo menos não intencionalmente - uma representação da língua, e dos lábios de Jagger.

‘Eu comentei que aqueles, com certeza, eram os lábios de Mick Jagger’, recorda Victoria Broackes, curadora sênior do museu Victoria and Albert que, em 2008, adquiriu o desenho original do logotipo, em um leilão em Chicago, em nome de seu espaço.

Ela conta que Pasche pareceu intrigado e disse que ‘talvez subliminarmente, mas não de propósito’.

Pasche afirma que seu logotipo também pretendia ser um sinal de protesto. ‘É o tipo de coisa que uma criança faz ao mostrar a língua para alguém’, ele disse. ‘Esse era o principal motivo para que eu acreditasse que funcionaria’.


Mick Jagger, dos Rolling Stones, durante show da banda no Soldier Friend, em Chicago
O logotipo foi executado rapidamente, no final de 1970. O lançamento do álbum, ‘Sticky Fingers’, um clássico da banda, em abril de 1971, foi a primeira ocasião em que ele foi usado em público. Mas, uma versão alternativa do logotipo, foi usada para o lançamento americano do disco –‘ligeiramente modificada por Craig Braun’, disse Andrew Blauvelt, curador geral de design no Museu de Artes e Design de Manhattan.

Na época, Braun estava trabalhando com Andy Warhol para realizar a ideia de colocar um zíper de verdade na capa do disco. Pasche disse que Braun modificou o design, não porque era deficiente, e sim porque o desenho foi enviado aos Estados Unidos por fax, em um momento de correria. O fax era ‘muito granuloso, e cinzento’. E o logotipo, admitiu Pasche, precisava ser redesenhado.

É a versão alongada de Braun, com linhas e brilhos adicionais, que continua a ser usada oficialmente. Em ‘50 Licks: Myths and Stories from Half a Century of the Rolling Stones’, livro de Peter Fornatale sobre a história da banda, Braun disse que recebeu o logotipo de Marshall Chess, presidente da Rolling Stones Records, e que ‘basicamente delineou os brilhos, os lábios e a língua’.

Em 1972, Braun e Warhol foram indicados ao prêmio Grammy de melhor embalagem de disco, mas foram derrotados pela capa criada por Gene Brownell e Dean Torrence, para um álbum da banda Pollution, que mostrava uma garota usando máscara contra gás, e emergindo de uma casca de ovo.

E o logotipo de Pasche continuou a ser atribuído a outros. ‘Muita gente acha que foi criado por Andy Warhol, o que não é verdade, claro’, disse Broackes, que acha que isso aconteceu porque Warhol levou crédito pelo restante da arte de ‘Sticky Fingers’.

De acordo com Blake Gopnik, autor de ‘Warhol: A Life as Art’, uma biografia do artista, a língua e os lábios ‘de forma alguma poderiam ter sido trabalho de Andy Warhol’.

‘Não tem nada a ver com o estilo da arte dele’, disse Gopnik, ‘especialmente com a estrutura conceitual na qual ele sempre trabalhou’.

Por que uma confusão tão duradoura? ‘Warhol é como um gigantesco ímã cultural’, disse Gopnik. ‘Atrai tudo. E ele não fez esforço para esclarecer as coisas’. O biógrafo acrescenta que ‘ele preferia confusão factual à clareza, e por isso a ideia de que o crédito pelo logotipo pudesse ser atribuído a ele, era algo que Warhol teria com certeza encorajado’.

 
Fã de Rolling Stones vê show da banda, no festival Empire Polo Club in Indio, na California, em outubro de 2016


O logotipo gerou muito dinheiro para os Stones. Alan Edwards, um veterano do setor de relações públicas no Reino Unido, e encarregado da divulgação da banda na década de 1980, disse que os Rolling Stones ‘devem ter faturado um bom bilhão de libras, em shows e exposições, e com a venda de discos, DVDs e mercadorias’, e que usaram o logotipo em toda a sua publicidade.

Samuel O’Toole, advogado especialista em propriedade intelectual no escritório de advocacia Briffa Legal, em Londres, estimou o valor do faturamento em ‘centenas de milhões de libras’.

Pasche disse ter recebido apenas £ 50 pelo trabalho em 1970 (o equivalente a US$ 970 atualmente, ou seja, aproximadamente R$ 5.000), e também uma bonificação de £ 200. Foi só em 1976, quando um contrato oficial foi assinado entre ele e a Musidor BV, representante legal da banda na Holanda, que o designer começou a receber royalties por seu trabalho.

Pasche recorda que seu quinhão era de 10% da receita líquida das vendas de mercadorias que exibiam o logotipo. Ele estima que tenha faturado ‘alguns milhares de libras’ com royaties, no total, até 1982, quando vendeu seus direitos autorais para a banda por £ 26 mil.

Pasche riu ao comentar que ‘provavelmente estaria morando hoje em um castelo’ se tivesse retido o direito autoral, mas disse que sua decisão foi forçada por uma área cinzenta que existia nas leis de direitos autorais da época, referente aos direitos de uso - se uma empresa vem usando algo há anos, e se isso é reconhecido como parte da companhia, ela teria direito de assumir o copyright. O advogado de Pasche lhe disse que ele perderia, se o caso fosse a julgamento, e, por isso, eles negociaram um pagamento.

O’Toole disse que o advogado de Pasche estava certo ao recomendar esse caminho. ‘Há um bom argumento’, disse ele, de que os Rolling Stones poderiam invocar uma ‘licença implícita para o uso do trabalho protegido pelo direito autoral’.

Se Pasche tivesse decidido contestar a reivindicação e perdesse, ele teria ‘sido responsável por suas custas judiciais e também pelas custas judiciais dos Rolling Stones, que provavelmente seriam imensas’.

‘É mais ou menos como a história de Davi e Golias’, afirmou. ‘Um designer brigando sozinho contra a máquina dos Rolling Stones’.

O design original de Pasche pode ser visto hoje no museu Victoria and Albert (que tem conexões históricas com o Royal College of Art, em Londres). ‘O fato de que o logotipo tenha sido desenhado aqui, e retornado a nós, é uma coisa notável. Isso já bastaria para que fosse um objeto de destaque, isso sem levar em conta que ele se tornou um dos logotipos mais conhecidos do mundo’, disse Broackes.

O design ‘original e singular’ de Pasche, como o descreve Blauvelt, perdurou por muito tempo, ainda que tenha sido criado de modo modesto e a custo baixo.

‘E com tão poucas expectativas a seu respeito’, acrescenta Broackes, ‘ele resume os Rolling Stones, a postura de oposição ao autoritarismo, a rejeição às convenções’ –e, é claro, o sex appeal'. Mas ela também aponta para a adaptabilidade do logotipo, como um grande motivo para seu imenso sucesso.

‘Ele foi retrabalhado de inúmeras maneiras’, disse Broackes, com admiração. ‘Não existem tantos logotipos que funcionem bem no selo de um compacto simples, e como pano de fundo em um palco. É realmente maravilhoso’.





Fonte: Joobin Bekhrad,  NYT  |   FSP



(JA, Abr20)



domingo, 12 de abril de 2020

Ressurreição de Cristo




Rafael Sanzio, 1483-1520   -^-  ‘Ressurreição de Cristo’, 1499-1502

Ressurreição de Cristo, também conhecida como Ressurreição Kinnaird, é uma pintura a óleo sobre madeira do mestre do renascimento italiano Rafael. A obra é uma das primeiras pinturas conhecidas do artista, executada entre 1499 e 1502. É provável que seja um elemento de uma predela (*), tendo-se aventado a hipótese do painel ser uma das obras remanescentes do retábulo de San Nicola da Tolentino - a primeira encomenda documentada de Rafael (seriamente danificada por um terremoto em 1789, e cujos fragmentos encontram-se hoje dispersos em museus da Europa).

A Ressurreição Kinnaird é uma das primeiras obras conservadas de Rafael em que já se prenuncia a natureza dramática de seu estilo compositivo, em oposição à poética branda de seu mestre, Pietro Perugino. A composição, extremamente racional, é regida por uma complexa geometrização ideal, que interliga todos os elementos da cena e lhe confere uma peculiar animação rítmica, transformando as personagens do painel em co-protagonistas de uma única ‘coreografia’. É possível notar na pintura a influência estética de Pinturicchio e Melozzo da Forlì, embora a orquestração espacial da obra, tendente ao movimento, permita supor o conhecimento por parte de Rafael do ambiente artístico florentino, já por volta de 1500.

A obra, de uma fortuna crítica bastante contrastada, foi adquirida pelo Museu de Arte de São Paulo em 1954. Pietro Maria Bardi, então diretor do museu, assumiu a responsabilidade de incorporar a Ressurreição Kinnaird ao corpus de obras de Rafael, tomando por base a existência de dois estudos preparatórios para a composição, iniciando um acalorado debate sobre sua autoria. Atualmente, a atribuição a Rafael é quase consensualmente aceita pelos especialistas. É a única obra do artista conservada no hemisfério sul.


(*) Predela
Um retábulo de Carlo Crivelli: a predela é formada por uma sequência de quatro painéis, representando cenas da Paixão de Cristo.


Predela (do italiano predella) é uma plataforma ou pedestal sobre o qual se posiciona o retábulo de um altar. Nas artes visuais, define-se como predela um conjunto de pinturas ou esculturas que, dispostas lado a lado, formam a parte inferior de um retábulo. A predela tornou-se um elemento bastante importante na arte religiosa medieval e renascentista. Em geral, a sua função iconográfica é a de complementar a cena representada no painel central do retábulo através de pequenas narrativas representando episódios da vida de um santo, de Jesus ou da Virgem Maria. O padrão mais comum é o de frisos horizontais contendo entre três e cinco painéis.

As predelas são consideradas elementos bastante significativos na história da arte ocidental. Como eram consideradas figuras visuais acessórias do retábulo e estavam destinadas a serem somente vistas de perto, permitiam ao artista trabalhar com mais liberdade em relação às rígidas convenções iconográficas que vinculavam a cena do painel principal. Ao longo do tempo tornaram-se mais sofisticadas, até que, durante o Maneirismo, foram gradualmente deixando ser executadas, desaparecendo quase por completo com o advento do Barroco. Hoje, é bastante comum que os painéis que originalmente formavam predelas se encontrem dispersos em coleções públicas e privadas.



Fonte:  WP e dvs



(JA, 12-Abr20)



quinta-feira, 9 de abril de 2020

Santa que deteve epidemia na Itália está de quarentena no Metropolitan, em NY


'Santa Rosália Intercedendo pelas Vítimas da Praga de Palermo' foi uma das primeiras aquisições da instituição


Anthony van Dyck, 1599-1641   -^-  Autorretrato, 1613-1614, na Academia de Belas-Artes de Viena


Ele se veste bem, e sorri com a confiança da juventude; seu temperamento não é o de alguém que buscaria abrigo. A data é a primavera de 1624, e Anthony van Dyck, 25, navega rumo ao sul, para a Sicília, em resposta a um convite para pintar o retrato do vice-rei espanhol.

Ele está se estabelecendo como retratista internacional dos ricos e famosos. Agora, em Palermo, sente estar à beira de um grande avanço. O retrato é pintado durante a primavera, mas chega o desastre.

Em 7 de maio de 1624, Palermo reporta os primeiros casos de uma praga que mataria cerca de 10% da população da cidade. De quarentena, o jovem pintor flamengo observa o fechamento do porto, a superlotação do hospital, e os gemidos dos doentes na rua.

Enquanto a emergência prossegue, um grupo de franciscanos encontra numa caverna uma pilha de ossos, que podem ter pertencido a santa Rosália, aristocrata de séculos passados. As relíquias são carregadas pelas ruas, e a epidemia se abate. Os cidadãos passam a cultuá-la como a salvadora da cidade.

Van Dyck apanha um autorretrato meio concluído, e o altera para retratar a protetora, flutuando sobre a cidade.



O quadro Santa Rosália Intercedendo pelas Vítimas da Praga de Palermo, de Anthony van Dyck, 1599-1641, hoje no acervo do Met, em Nova York


‘Santa Rosália Intercedendo pelas Vítimas da Praga de Palermo’, hoje parte do acervo do museu Metropolitan, de Nova York, foi uma das primeiras aquisições da instituição, comprado em 1870.

Agora, é claro, Rosália está ela mesma de quarentena, com a intensificação da epidemia do coronavírus. O Met não antecipa reabrir suas portas antes de julho.

Tive a oportunidade de visitar o museu na semana passada, entrando pela porta de serviço, para uma conversa com Max Hollein, o diretor do Met, e Quincy Houghton, diretor assistente para exposições. Rosália continua no lugar escolhido para ela na mostra ‘Making the Met’, cuja montagem estava praticamente concluída.

Rosália parece estar ascendendo com a ajuda de quase uma dúzia de querubins, e feixes de luz atravessam as nuvens escuras que existem no topo do quadro, e iluminam seu rosto.

Van Dyck decidiu retratá-la como uma jovem de cabelos longos, loiros e cacheados, com bochechas coradas, e olhos arregalados de êxtase. Sob ela, fica o porto de Palermo, e como pano de fundo, o monte Pellegrino, onde as relíquias foram encontradas.

Parece certo que Van Dyck viu a primeira dessas procissões, e elas continuam acontecer a cada mês de julho.

O curador Xavier Salomon, que em 2012 organizou uma mostra sobre a estada siciliana de Van Dyck (e hoje é o curador chefe da Coleção Frick), diz que os governantes da Palermo atingida pela praga confiaram tanto em intervenções médicas, quanto em intervenções religiosas, para conter o contágio.

Os moradores oravam aos restos de Rosália, na catedral da cidade, sim, mas observavam o distanciamento social. As pessoas só podiam visitar a igreja um dia por semana, em uma escala determinada por seus endereços.

O jovem Van Dyck, que poderia ter usado suas conexões com a realeza para escapar, ficou na cidade até o fim do surto. Encontrou, em meio à pestilência, um tema mais urgente do que os retratos da realeza que lhe valeriam fama.

Tendo suportado uma quarentena, criou uma encarnação da beneficência em meio ao caos. Pragas são aleatórias e implacáveis. São, como estou descobrindo, especialmente aterrorizantes por não sabermos quanto tempo durarão.

Mas Rosália, flutuando por sobre a Sicília como um balão, promete que o horror da epidemia terminará, um dia. Em momentos sombrios, é preciso acreditar -se não em santos, ao menos na arte.

Ela tem o poder de afirmar a capacidade humana de invenção, mesmo que a morte esteja rondando.

Rosália estará lá nos esperando quando ‘Making the Met’ puder começar, e em julho, assim devemos esperar, nos fará recordar uma Palermo na qual a quarentena acabou.

Por enquanto, o site do Metropolitan pode ajudar. Na Sicília, os fiéis podem orar a Santa Rosália pelo WhatsApp.







Fonte: Jason Farago  | NYT -  FSP




(JA, Abr20)


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terça-feira, 7 de abril de 2020

Epidemia barra retorno triunfal do pintor Rafael

Contemporâneo de Da Vinci e Michelangelo, artista brilharia em 2020, mas mostra com suas obras foi suspensa na Itália


Autorretrato atribuído a Rafael, datado do começo do século 16


Depois de um 2019 inteiramente dedicado a Leonardo da Vinci, era para este ser o ano de outro renascentista —Raffaello Sanzio, o Rafael, nascido em 1483, morto há exatos 500 anos, em 6 de abril de 1520. O pintor seria tema de exposições em todo o mundo, do Louvre, em Paris, ao Victoria & Albert, em Londres, passando pela Galeria Nacional de Arte de Washington.

A mais importante delas, no entanto, era ‘Raffaello’, na Scuderie del Quirinale, em Roma. Num esforço que custou € 3 bilhões, ou mais de R$ 15 bilhões em seguros, segundo o jornal The New York Times, a exposição reuniria, pela primeira vez, 27 pinturas de Rafael.

Nem mesmo as comemorações do aniversário de 500 anos do nascimento do artista, ocorridas há 37 anos, tinham alcançado o feito. Então, suas pinturas, muitas delas sobre madeira, foram consideradas frágeis demais para o transporte. Quem quisesse festejar a data teria que atravessar a Itália para ver trabalhos espalhados por museus em Milão, Veneza, Bolonha, Florença, Gênova, Roma.

Mas não foi desta vez que o público pôde ver as obras num mesmo espaço. ‘Raffaello’ foi fechada dias depois de sua abertura, por causa da pandemia do novo coronavírus.

Com o período de isolamento social na Itália estendido até o início do mês de maio, não se sabe quando a mostra voltará a receber visitantes.

Com isso, Rafael volta a ocupar um lugar um tanto obscuro no imaginário popular. Afinal, enquanto Leonardo da Vinci bate recordes em leilões, e vende best-sellers, ele é relegado a um vago terceiro posto do Renascimento, depois ainda de Michelangelo.

Nem sempre foi assim. Em vida, e por ao menos três séculos depois, Rafael foi considerado ‘o pintor por excelência, o mestre a ser seguido’, afirma Jorge Coli, professor de história da arte da Universidade Estadual de Campinas.


Leonardo da Vinci, 1452-1519


Ele conta que, enquanto Michelangelo era considerado perigoso para os iniciantes, que poderiam ser esmagados pela sua força enquanto modelo, Da Vinci era visto como sedutor, mas misterioso, Rafael ‘propunha as próprias chaves da beleza’. ‘Quem o seguisse não seguia um indivíduo, mas um universal’, diz Coli.

‘Da Vinci e Michelangelo eram admirados, mas Rafael era imitado’, resume Louis A. Waldman, professor da Universidade de Austin, no Texas, especializado em Renascimento italiano.


La Fornarina’,  1518-1519, do pintor renascentista Rafael

Ele descreve as pinturas do artista como naturalistas, tecnicamente perfeitas. Ao contrário da geração anterior a ele, porém, Rafael buscava realçar a beleza do mundo ao seu redor, e ajudou a forjar o conceito de uma arte como criação de um mundo ideal que teria repercussões pelos dois séculos seguintes.

Não é só a força dessa ideia que explica a influência de Rafael naqueles anos. Luiz Marques, também professor da Unicamp, conta que duas condições materiais contribuíram para isso. A primeira foi a ideia de Rafael de desenhar matrizes para gravuras, o que permitiu que seu estilo viajasse pela Europa por meio da imprensa.



  1. Michelangelo, 1475-1560

A segunda foi o fato de que o artista foi um dos primeiros da Itália a dirigir um ateliê moderno, onde os trabalhos eram realizados ao lado de exércitos de aprendizes. Enquanto Michelangelo, aos 33 anos, iniciava, sozinho, a pintura do teto da Capela Sistina, por exemplo, o jovem de 25 anos estava ali perto, no Vaticano, pintando afrescos nos aposentos papais com muitos auxiliares.

O método fez com que Rafael tivesse que ensinar seus assistentes a reproduzir fielmente seus traços, e a estrutura de suas pinturas. E, com isso, contaminasse o estilo não só dos pintores dali, numa homogeneização observada poucas vezes na história, como das gerações futuras.

É irônico, mas é essa mesma unanimidade que explica por que Rafael perdeu a força no imaginário popular com o passar dos anos. De um lado, o modelo de ateliês que ele ajudou a estabelecer entrou em crise no final do século 18, substituído pelo mito do artista romântico, do gênio individual. Daí o triunfo de Da Vinci, artista errático e sem educação formal, avesso às instituições, de um lado, e de Michelangelo, artista torturado, obsessivo, de outro.

Na mesma época, os artistas começam a negar a ideia de beleza e harmonia da qual Rafael é indissociável — ‘grazia’, graça, como define seu biógrafo Giorgio Vasari no século 16. ‘Rafael era o modelo indiscutível das escolas e academias, o mestre contra quem se revoltar’, diz Coli. ‘A arte preferiu a expressividade, o choque, o abalo, ao invés da sublime harmonia sutil.’

Marques concorda: ‘Num momento em que essa cultura do belo entra em crise, Rafael vai junto’. Mas faz uma ressalva. Se a arte trilhou outros caminhos a partir do século 19, Rafael sobrevive ainda hoje na cultura de massa. As mais de 30 madonas atribuídas a ele estão na origem dos santinhos distribuídos nas portas de igreja, e lembrancinhas de primeira comunhão. ‘As pessoas são rafaelianas sem saber’, diz o professor.

Na visão dele, a sutileza das obras de Rafael dificulta o interesse do público leigo de hoje, acostumado a contrastes evidentes.

Marques traça um paralelo entre as pinturas do renascentista e os filmes dos anos 1940, considerados monótonos pelos mais jovens no geral. ‘Mudou muito o nível de oferta emocional, da violência da imagem. Se quiser que meus filhos durmam, basta um filme do Frank Capra’, ele diz.

Quem mesmo assim quiser se aventurar pela obra de Rafael, pode assistir a uma visita filmada pela exposição fechada da Scuderie del Quirinale.

Talvez a quarentena não tenha sido tão danosa ao renascentista, afinal —é possível que em casa, entediadas, as pessoas estejam mais dispostas a notar as sutilezas das imagens que ele criou.




Fonte: Clara Balbi   |   FSP



(JA, Abr20)




domingo, 5 de abril de 2020

A experiência de levar os museus para dentro de casa

Os grandes espaços fecharam as portas, mas 'Mona Lisa', e outros tesouros da humanidade podem ser admirados no isolamento, sob perspectivas surpreendentes


Mona Lisa: folga mesmo só no Louvre

Chegar perto da Mona Lisa, envolta em vidro numa parede só para ela no Louvre, em Paris, exige paciência e traquejo para furar o bloqueio de uma multidão, sempre muito bem paramentada com suas câmeras e smartphones.

Cerca de 10 milhões de pessoas passam por ali todos os anos para reverenciar a obra-prima de Leonardo da Vinci, um ícone renascentista que, para ser apreciado com todas as suas nuances de sfumato (a técnica de borrar o fundo da qual Da Vinci é o mestre), demanda tempo — e a fila não dá trégua. Pois a Mona Lisa anda solitária, trancada dentro do Louvre, que, como todos os mais extraordinários museus do planeta, fechou suas portas pelo necessário esforço para frear a contaminação pelo coronavírus. E, como não poderia deixar de ser, La Gioconda virou meme, de pernas para o ar, e o semblante leve de quem está em pleno dolce far niente.

Isso significa que o quadro ficará no limbo e que a humanidade será privada da arte quando mais precisa dela? De jeito nenhum, garantem os curadores de acervos portentosos como o do Metropolitan, de Nova York. ‘Compartilhamos nossos tesouros para que sirvam de inspiração a gente de todos os cantos que enfrenta esse período tão difícil’, diz Daniel Weiss, presidente do Met.

Muitas iniciativas estão fazendo uso de tecnologia para levar arte às pessoas no confinamento do lar. Não está sendo tudo erguido do zero: nesta era ultra conectada, os grandes museus já promovem há algum tempo passeios virtuais por seus valiosos acervos — mais de 2000 deles, inclusive, podem ser assim ‘visitados’ com a boa ferramenta Google Arts & Culture, que oferece visão de 360 graus e imagens de resolução elevada.

Mas há novidades — e a ideia é compensar em alguma medida a impossibilidade de estar frente a frente com uma pincelada nervosa de Van Gogh, ou com a grandeza cubista de um quadro como Guernica, apresentando novos ângulos de observação a distância e informação de primeira dada pelos próprios curadores.

O Museu Van Gogh, em Amsterdã, preparou roteiros temáticos para quarentenados de todos os tipos — crianças, leigos e especialistas — e criou um aplicativo que permite ir removendo, a cada clique, uma camada de célebres telas do mestre holandês, de modo a revelar segredos por trás delas que a olho nu jamais se alcançariam.

No caso de Guernica, o Reina Sofía, de Madri, disponibiliza uma ferramenta que disseca detalhes da tela, em que Pablo Picasso expôs a carnificina da Guerra Civil Espanhola, em 1937, parte do projeto #ElReinaEnCasa.







Consumir arte no laptop, ou na tela de um celular, evidentemente, é uma redução da experiência estética que só a presença da obra — sua textura, seu ritmo, seus dégradés — pode trazer. A sensação de ir se afastando pouco a pouco de uma tela de Monet até entender a inteireza da imagem impressionista, é única e ninguém pretende substituí-la por um tour virtual. 

A questão que se impõe agora é que, mesmo reclusa, a população mundial tenha acesso à boa arte, e o faça do jeito mais rico possível. Por força das circunstâncias, pode-se acabar extraindo daí algo desejável: na santa paz de suas casas, as pessoas atentam para ângulos que, não raro, escapam ao olhar devido à pressa. ‘Elas estão sendo provocadas a ver a arte de maneiras diversas. Isso provavelmente deixará o senso de observação mais aguçado’, reflete o filósofo Francisco Raz­zo. Quando os museus voltarem à ativa em todo o seu esplendor, o passeio pelas galerias poderá vir a se tornar um programa ‘mais pleno’, acredita.

Filósofos da arte a definem como a expressão da busca humana por dar significado à existência, pensamento enunciado primeiro por Platão. Em sua tortuosa e brilhante caminhada, Van Gogh dizia: ‘Quando sinto uma terrível necessidade de religião, saio à noite para pintar as estrelas’.

A arte também é uma maneira de a civilização deixar viva a memória, retratando o caminhar da história, como enfatizou o filósofo alemão Friedrich Hegel (1770-1831). Uma terceira face dela pode se revelar bastante útil neste mundo, posto do avesso pela pandemia do coronavírus. 

Uma análise de 3000 pesquisas sobre os benefícios da arte para os indivíduos, conduzida pela University College de Londres, concluiu que, naqueles que têm contato constante com alguma forma de expressão artística, os níveis de ansiedade baixam consideravelmente, e até as respostas imunológicas melhoram. Mais uma razão para não dar vida boa à Mona Lisa.



Mona Lisa em época de coronavírus




Fonte: Ernesto Neves   |  Veja




(JA, Abr20)