Atriz de 'O Mágico de Oz' sofreu abusos nos
bastidores, mas se tornou a grande diva de Hollywood
Em determinada cena de ‘Nasce uma Estrela’, de 1954, Judy Garland cantava e dançava para explicar à
plateia o árduo caminho que percorreu até ver seu rosto reluzir numa tela de
cinema. A paixão foi instantânea e, de repente, sua personagem no filme virou
queridinha de Hollywood. Mas, na vida real, a estrela nasceu bem antes.
Neste 10 de junho, Garland completaria cem
anos e, mesmo tendo vivido por breves 47
deles, ela continua uma das figuras que mais brilham na constelação de astros
do showbiz. Como diz sua personagem em ‘Nasce uma Estrela’, ‘eu não virei
sensação da noite para o dia, tudo começou há muitos anos’.
De fato, foi muito antes do papel que rendeu a ela a primeira
indicação ao Oscar que Garland fixou seu rosto pueril e a voz potente no
imaginário popular. Ela trabalhava nisso antes mesmo de ser tragada por um
furacão, atropelar uma bruxa, e conhecer uma cidade coberta por esmeraldas,
como a inesquecível Dorothy de ‘O Mágico de Oz’
Judy Garland como Doroty Gale, em 'O Mágico de Oz', 1939
Judy Garland foi esculpida para ser uma sensação das telas
desde cedo. Aos dois anos, ainda como Frances Ethel Gumm, fazia sua estreia no
teatro de vaudeville ao lado das irmãs. Filha de artistas, ela passou a
infância nos palcos até ser descoberta por Louis B. Mayer, cofundador da MGM e um dos nomes mais poderosos da era de ouro de
Hollywood, que acelerou o desabrochar de uma garota banal das entranhas do
estado de Minnesota em diva do celuloide.
Essa seria sua passagem para a fama, mas também para a
danação. Enquanto fazia pequenas aparições em filmes da década de 1930, a garota de 13
anos era submetida a rotinas obscenas de exercícios e dietas, para se adequar
aos padrões de beleza da indústria.
Próteses dentárias, placas no nariz, e tinta nos cabelos,
fizeram de Garland uma bonequinha nas mãos de Mayer, que teria sido o
responsável pelo vício em barbitúricos que a mataria —a atriz dizia que as
crianças da MGM tomavam medicamentos pesados do
despertar ao adormecer.
Garland seria uma das primeiras e mais notáveis vítimas
mirins dos excessos de uma indústria que, até pouco tempo atrás, ainda não
tinha encontrado uma forma saudável de lidar com suas crianças e adolescentes
—o colapso de Britney Spears, o assédio sofrido por Anthony Rapp, e a recusa de
Mara Wilson em voltar às telas, são provas disso.
Judy Garland na primeira nova versão de 'Nasce uma Estrela, de 1954
Essa pressão apareceria em outra cena de ‘Nasce uma Estrela’,
filme que curiosamente encontra vários paralelos com a vida de sua
protagonista. Nela, um grupo de maquiadores reclama do nariz, do queixo, e de
qualquer parte visível do corpo da atriz. A insegurança que isso gerou evoluiu
para um comportamento autodestrutivo que acompanhou Garland ao longo da vida.
É curioso pensar que ela não foi a primeira escolha da MGM para ‘O Mágico de Oz’. Com Shirley Temple e Deanna
Durbin indisponíveis, o estúdio teve de testar sua inclinação para o
protagonismo, e o resultado foi avassalador.
O filme não recuperou seu gordo orçamento no lançamento
original de 1939, mas se tornou uma das mais
preciosas joias do cinema mundial, criando os moldes para uma farta e
bem-sucedida leva de musicais em tecnicolor que dominaria aqueles anos
dourados. Em boa parte, graças à versatilidade de Garland.
Nos primeiros acordes de ‘Over the Rainbow’, tema do filme e
possivelmente a mais emblemática canção do cinema americano, ela hipnotizou o
público não com beleza, mas com um talento inegável.
Com 17 anos e 1,51 metro de altura, a americana soltou a voz e nunca
mais se calou. Seu timbre desproporcionalmente marcante, mal sabia ela,
encantaria todas as gerações subsequentes de cinéfilos. Com seu olhar doce e
sonhador, Garland foi capaz de encapsular toda a inocência e fantasia inerentes
a qualquer criança —e da qual ela própria foi precocemente privada.
O que ela faz com o espectador nesse comecinho de ‘O Mágico
de Oz’ é um dos melhores exemplos do que é a tal magia do cinema. E muita gente
percebeu isso na época.
Garland venceu o extinto Oscar juvenil, e emendou sucesso
atrás de sucesso na década de 1940 —foram 20 longas em dez anos. Em alguns deles, deu voz a outras
canções que se tornariam standards, como ‘The Trolley Song’ e ‘Have Yourself a
Merry Little Christmas’, do musical ‘Agora Seremos Felizes’, ou ‘Meet Me in St.
Louis’.
Trabalhou com Fred Astaire e Gene Kelly, se envolveu com os
diretores Vincent Minnelli e Orson Welles, virou amiga de John Kennedy, e foi
se tornando uma figura indissociável da cultura americana, à medida que
mergulhava no vício, na ruína financeira e na depressão, que a fez querer tirar
a própria vida mais de uma vez.
Depois de gerar perdas consideráveis à MGM por causa de seus atrasos ou faltas nas filmagens,
Garland foi liberada de seu contrato e, tão precoce quanto sua chegada ao
estrelato, atingiu também o ostracismo, aos 28
anos.
Numa verdadeira relação tóxica com o showbiz, que ela tanto
criticava, mas do qual era incapaz de se divorciar, decidiu pegar a estrada
para uma série de shows e se reinventar. Garland esgotou as casas de
espetáculos pelas quais passou, foi soterrada por elogios, e voltou a Los
Angeles.
Talvez por isso tenha se tornado, ainda em vida, um ícone
gay. ‘Homossexuais entendem o que é sofrer, assim como Garland’, publicaria a
revista Esquire em 1969. ‘Ela é o Elvis dos homossexuais, um
símbolo de liberdade emocional, uma mulher que lutou para viver e amar sem
limites’, diria ainda a The Advocate.
Cantando sobre um lugar além do arco-íris, de cores vibrantes
que contrastam com a realidade insossa do preto e branco, ela compartilhava com
o público LGBTQIA+ que lotava seus shows um sentimento
de inadequação, uma resiliência de quem é vítima de uma sociedade
impiedosamente patriarcal.
Ela também custou para achar o amor, que esteve presente de
forma breve, em seus cinco casamentos, alguns marcados por violência e
mentiras. E seguia um estilo inegavelmente camp, sendo irônica e teatral, mesmo
fora das telas.
De quebra, deu à luz outra diva, Liza Minnelli, ajudou a
batizar o maior dos discos de Elton John, ‘Goodbye Yellow Brick Road’, foi
imitada no reality show RuPaul’s Drag Race, e inspirou a gíria ‘amigo de
Dorothy’, usada no mundo de língua inglesa para se referir a homens gays.
A vida de Judy Garland foi marcada por pontos altos e baixos,
que se alternavam sem dar aviso prévio. Foi no período mais turbulento da
carreira, aliás, que ela foi indicada a suas duas estatuetas do Oscar, por ‘Nasce
uma Estrela’ e ‘Julgamento em Nuremberg’, se tornou a primeira mulher a vencer
o Grammy de álbum do ano, com ‘Judy a Carnegie Hall’, e foi indicada ao Emmy.
Eleita pelo American Film Institute a
oitava maior estrela da história de Hollywood, Garland sobreviveu ao teste do
tempo desbancando aquelas mesmas atrizes belas e altas que a deixaram insegura
durante toda a vida. Alcançou
status de diva como poucas foram capazes, em parte por sua figura trágica
—ideia que detestava—, mas especialmente por sua complexidade.
Judy Garland morreu aos 47 anos,
em junho de 1969, após uma overdose acidental
daqueles mesmos barbitúricos. Viveu intensa e apaixonadamente e fez muito, e
muito bem, para cinema, teatro, música e TV.
Um século depois, a menina de vestido azul e sapatinhos de
rubi, quem diria, brilha mais do que o arco-íris que queria alcançar.
Fonte: Leonardo Sanchez | FSP
(JA, Jun22)