Mostrando postagens com marcador INSTITUTO MOREIRA SALLES. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador INSTITUTO MOREIRA SALLES. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Robert Frank escancarou o lado trágico do sonho americano

Morto nesta segunda (9), fotógrafo foi responsável por 'The Americans', que será sempre lembrada como uma obra-prima


O fotógrafo Robert Frank


Robert Frank, cujo trabalho mais importante, ‘The Americans’, um dos retratos mais dilacerantes dos Estados Unidos, não era americano; era suíço. Sua obra será sempre lembrada como uma obra-prima da fotografia.

O fotógrafo, no entanto, não escolheu os EUA ou a Suíça para passar os últimos anos de sua vida. Foi na província de Nova Escócia, no Canadá, que morreu nesta segunda-feira (9), aos 94 anos.

A simplicidade com que vivia numa comunidade rural de 1.300 habitantes difere pouco do contexto que moldou a jornada de Frank, dirigindo um Ford usado pelos EUA, na década de 1950.

Naquela época, o país vivia com intensidade a ideia de uma América heroica, pós-Segunda Guerra Mundial e ainda embalada pelo otimismo do sonho americano de filmes e programas de TV.


'Trolleybus, New Orleans', fotografia  da série 'The Americans'

Frank derrubou tudo. Com acidez, escancarou com imagens em preto e branco —publicadas pela primeira vez na França em 1958 e no ano seguinte, nos EUA— o lado trágico da bonança econômica, carregado de desilusões e paradoxos, como a violência da segregação racial nos estados do sul.

Ao mesmo tempo em que observava as contradições do país ao qual chegara quando tinha 23 anos, afastado pelo que chamou de ‘valores mesquinhos’ da Suíça, o fotógrafo também reuniu uma espécie de alfabeto visual americano.

Em ‘The Americans’, sobram bandeiras nacionais, jukeboxes, cartolas e carros. Mas esses elementos, desenvolvidos posteriormente em cor por William Eggleston e Stephen Shore, o que releva a influência de Frank ao longo dos anos, ainda estão num nível abaixo das sensações que o suíço imprimiu nas imagens do livro.

Robert Frank nasceu em 1924 em Zurique, na Suíça. Em 1946 criou seu primeiro livro de imagens, intitulado ‘40 fotos’.

No ano seguinte emigrou para os Estados Unidos, onde colaborou como fotógrafo em revistas como Harper’s Bazaar, Life, Look e Vogue.


Exposição Robert Frank, abertura, do Instituto Moreira Salles, Av. Paulista


Em 1948 viajou pelas Américas Central e do Sul, percorrendo extensivamente o Peru, dos Andes à Amazônia, incluindo uma rápida incursão a Manaus no início de outubro daquele ano. Algumas das imagens dessa sua única visita ao Brasil, foram apresentadas na exposição do Instituo Moreira Salles, em dezembro de 2017.

Em 1949 editou e produziu um pequeno livro de autor sobre o Peru, material que seria publicado ao longo da década de 1950 por Robert Delpire, que viria a ser o primeiro editor da série ‘Os americanos’, publicada na França em 1958 sob o título ‘Les Américains’, contendo excertos de textos de vários autores sobre os EUA.


Rodeo,  fotografia de 1954, NY-EUA


Em 1959 o livro foi publicado nos EUA pela Grove Press. A edição americana trazia apenas um texto introdutório de Jack Kerouac, que estabelece plena sinergia com o espírito buscado por Frank em seu projeto original. Dessa primeira edição americana, revisada e reeditada por Frank em 2008 com seu editor, Gerhard Steidl, resulta a edição brasileira do livro ‘Os americanos’, lançado pelo IMS conjuntamente com a exposição, em 2017.




A ideia de uma narrativa em que as imagens falam por si, sem a necessidade de textos de apoio, influenciou gerações. Não é difícil encontrar nomes importantes, como Alec Soth, que veneram o trabalho de Frank.

Ainda que o gênero da road trip tenha se estabelecido nos EUA bem antes da publicação dos americanos de Frank, é ‘The Americans’, ao lado de ‘American Photographs’, de Walker Evans, grande influência do suíço, a maior das referências dentro da fotografia.

Também é injusto limitá-lo em uma só área uma vez que sua produção cinematográfica é muito relevante.

Os muitos curtas, médias e longas-metragens, entre eles ‘Pull My Daisy’, baseado em texto de Jack Kerouac —que escreveu o prefácio da versão americana de ‘The Americans’—, colocam-na em pé de igualdade com sua obra fotográfica.

Em 1972, viajou com os Rolling Stones para documentá-los, num registro que excedia as apresentações musicais. Os abusos de drogas, as brigas entre fãs e a presença de groupies fizeram a banda censurar as filmagens.

Descartar o que produziu talvez fosse uma novidade para Frank à época, mas se transformou num modus operandi ao final de sua carreira.

Da parceria que consolidou com o alemão Gerhard Steidl, mítico impressor de livros, com quem publicou mais de três dezenas de títulos, veio a mostra em que expôs séries de fotografias impressas em banners pendurados diretamente na parede, sem molduras, como se fossem livros desconstruídos.

Ao final da exposição, Frank pedia que o material fosse destruído e descartado. Afirmava, assim, conforme texto do Instituto Moreira Salles, que exibiu a mostra no Brasil, ‘a percepção do artista de que sua obra sobrevive plenamente na forma democrática e acessível dos livros de autor e dos filmes que produziu’.

Frank teve dois filhos. Andrea morreu aos 20 anos, em 1974, em um acidente de avião. Pablo se suicidou em 1994. Ele deixa a mulher, June Leaf, com quem foi casado desde 1975.

A faceta autobiográfica está impressa em ‘The Lines of My Hand’, no qual ele juntou imagens feitas antes e depois de ‘The Americans’, incluindo viagens a Peru, França, Espanha e Reino Unido, além de registros de sua família.

Pelas linhas de sua mão, Frank deixará as marcas de um artista que desafiou a visão falsamente otimista de um país que explodia por dentro. Um retrato pouco diferente do que há hoje.

Frank foi o estrangeiro que compreendeu a América.




Fonte:  Daigo Oliva, FSP |  IMS



(JA, Set19)

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Millôr tem obra gráfica reunida em exposição


Instituto Moreira Salles, que guarda acervo e arquivo do desenhista, mostra 500 originais
Primeira retrospectiva dedicada aos desenhos do humorista, dramaturgo e tradutor carioca Millôr Fernandes, 1923-2012, a exposição que o Instituto Moreira Salles (IMS) aberta no último dia 18, reúne 500 dos mais de 6 mil originais sob a guarda da entidade desde 2013. A mostra, ‘Millôr: Obra Gráfica’, que tem como curadores Cássio Loredano, Julia Kovensky e Paulo Roberto Pires, destaca os principais temas abordados por Millôr em 70 anos de produção, sendo o marco zero a coluna Pif-Paf, publicada na revista O Cruzeiro, entre 1945 e 1963.
A exposição foi organizada levando em conta esses temas recorrentes na obra de Millôr. Assim, os curadores a dividiram em cinco núcleos: os desenhos autor referenciais, o processo embrionário do humorista, que começou escrevendo o texto ilustrado por Péricles em Pif-Paf, sua visão do Brasil com todas as suas contradições (nos núcleos Brasil e Condição Humana) e as obras essencialmente visuais, que não têm o propósito de servir de comentário político, como era comum no trabalho de Millôr.


Crítico. No desenho, Millôr comenta a luta de classes no Brasil  
O humor gráfico do artista foi marcado por sua visão aguda da política brasileira. Millôr trabalhou para os principais veículos da grande imprensa (Jornal do Brasil, Veja) e participou ativamente do mais popular tabloide publicado durante a ditadura (O Pasquim). No livro que acompanha a mostra, o segundo a examinar a obra do artista (o primeiro, Desenhos, é de 1981), o recorte é diferente, mais variado. De qualquer modo, o assunto principal é o próprio Millôr e sua relação com o mundo – o que não surpreende, em se tratando de um artista que não fazia autorretratos como autoanálise, como Rembrandt, mas por puro egocentrismo.

Cássio Loredano, apontando para um desenho na exposição que mostra Millôr assistindo ao nascer de um novo dia, chama a atenção para os elementos que confirmam essa irresistível vocação cabotina: Millôr é o próprio sol, o pão de cada dia, ‘o alimento e a luz’ que oferece ao leitor. ‘Ele era mesmo vaidoso, sabia qual era seu tamanho’, define Cássio, comentando a sofisticação do seu traço e sua inteligência visual. Seu desenho, de fato, exige um espectador erudito, capaz de identificar citações a Mondrian, Picasso, Pollock, Steinberg e ao brasileiro Willys de Castro – uma série de quatro desenhos na mostra evoca o esquema dos objetos ativos do artista neoconcreto.


A ambição intelectual de Millôr não se restringiu às artes visuais – ele foi dramaturgo e tradutor de autores como Shakespeare e Fassbinder. O outro curador da mostra, Paulo Roberto Pires, lembra que o desenhista lutou contra as adversidades de uma vida marcada pela ‘infância dura’ no subúrbio carioca do Méier. Basicamente, foi um autodidata com uma breve passagem pelo Liceu de Artes e Ofícios. Trabalhando na revista O Cruzeiro como contínuo, aos 14 anos, aproveitou a convivência com jornalistas e veio a se tornar uma referência no meio. Ganhou autonomia nos 18 anos em que escreveu a coluna Pif-Paf, publicando sem censura (até 1963) sob o pseudônimo Vão Gogo, clara alusão ao gênio holandês da pintura Vincent Van Gogh.
Entre as peças preciosas da mostra está a reprodução de um pedido de desculpas dos editores de O Cruzeiro a leitores furiosos com uma sátira de 12 páginas da história bíblica da criação do mundo feita por Millôr em 1963. Indignado, ele transformou a Pif-Paf numa revista independente justamente às vésperas do golpe militar de 1964. Desnecessário dizer que durou pouco. O resto da história é mais ou menos conhecido. Millôr foi um dos humoristas mais censurados durante a ditadura – e há vários exemplos na exposição de ilustrações proibidas de circular pelo regime, riscadas com um enérgico ‘x’ dos censores.
Interdito. O paraíso de Millôr foi abjurado pela direção de 'O Cruzeiro

Todo esse material, conta a coordenadora da área de iconografia do IMS, Julia Kovensky, só está hoje disponível ao grande público porque Millôr, ao morrer, vítima das consequências de um acidente vascular cerebral, deixou como legado 94 volumes que reúnem material publicado em jornais como O Estado e revistas como O Cruzeiro e Veja.
Entre os 500 desenhos expostos no IMS, evidentemente os políticos, inspirados pelos absurdos do regime militar, se destacam, embora as obras mais autônomas, que dispensam uma narrativa, sejam as que definem a excelência do traço de Millôr. 



Fonte: Antônio Gonçalves Filho  |  OESP

(JA, Set18)



quinta-feira, 23 de agosto de 2018

‘Irving Penn: Centenário’ - Um caladão inquieto


Homem de poucas palavras e métodos espartanos, Irving Penn — tema de bela mostra em SP — pôs abaixo a fronteira entre a fotografia de moda e a grande arte

Gente fina - Foto de Marlene Dietrich: famosos se ofendiam, mas depois amavam  

Da endiabrada atriz alemã Marlene Dietrich ao blasé jornalista americano Truman Capote, celebridades faziam romaria ao estúdio do fotógrafo Irving Penn (1917-2009) para ensaios da revista de moda mais influente de seu tempo, a Vogue. Ao adentrarem o local, porém, a expectativa por glamour dava lugar à perplexidade: os famosos se espremiam em cenários espartanos e sujos, como uma quina feita de duas tábuas ou um pedaço de carpete velho. 

Caladão, o fotógrafo nem lhes dirigia a palavra. A tensão só se dissipava quando os personagens — que incluíam, ainda, da musa do cinema Audrey Hepburn ao compositor russo Igor Stravinsky — viam o resultado. “As pessoas se sentiam ofendidas, mas depois amavam”, diz Jeff L. Rosenheim, chefe do setor de fotografia do museu Metropolitan e curador da mostra Irving Penn: Centenário. É irônico que um dos atrativos da magnífica retrospectiva que chegará na terça-feira 21 ao Instituto Moreira Salles, em São Paulo, depois de passar pela instituição nova-iorquina e por Paris e Berlim, seja uma réplica do cenário onde Penn humilhava, ops, fotografava estrelas. Ao fazer as próprias fotos, o público poderá atestar o efeito do palco despojado.

Selfies à parte, é um privilégio degustar as cerca de 240 fotografias espalhadas por dois andares da sede do Moreira Salles na Avenida Paulista. Irving Penn foi nome decisivo na criação da fotografia de moda moderna. Ao longo de seis décadas, desde o fim dos anos 40 até perto de morrer, sua grife visual era inescapável. Mas o homem foi muito maior: com formação vigorosa e inquietude quase renascentista, Penn pôs abaixo a fronteira entre a atividade editorial e a arte, ao explorar a grande tradição do retrato, a natureza-morta, o minimalismo e a experimentação inovadora de técnicas e materiais.

Mundo exótico - Guerreiros aborígines da Nova Guiné: para além da moda, a obra de Penn tem imenso valor etnográfico


Palco iluminado - Ensaio com Lisa Fonssagrives: após fotografar a beldade sueca, o artista se apaixonaria por ela

A inquietação fica patente em sua trajetória como retratista. Penn começou a desbravar o gênero durante uma viagem ao Peru. Depois de produzir um ensaio de moda, ele despachou a modelo de volta para os Estados Unidos e viajou até Cusco, a cidade inca encarapitada nos Andes. Lá, alugou o estúdio precário de um fotógrafo local e tomou o lugar deste no ofício de fazer retratos pagos de cidadãos comuns. “Como não falava uma palavra de quíchua ou espanhol, ele desenvolveu seu método de dirigir as sessões apenas com intervenções físicas, arrumando cada pose com as próprias mãos”, diz Rosenheim. Mais tarde, a mesma estratégia seria aplicada às tantas celebridades que Penn fotografou. “À maneira dos grandes pintores do passado, ele demonstrou que um grande retrato nasce da interação entre a personalidade do personagem e a do artista”, diz o brasileiro Sergio Burgi, coordenador do IMS.

É tudo pose - Mulheres do Benim: interação entre fotógrafo e personagens



Ás do retrato - O cartunista Saul Steinberg (1914-1999) de máscara: humor


Penn realizou uma série de trabalhos de imenso valor sociológico e ­etnográfico. Em viagens pelo Marrocos, Benim e Nova Guiné, montava uma tenda no meio do nada e fazia retratos dos nativos com seu cenário clássico. Mesmo quando registrava modelos, Penn não deixava de experimentar. Nos intervalos das sessões, fazia ensaios com trabalhadores urbanos, seguindo a tradição dos retratos de ofícios, que vinha dos gravuristas e fotógrafos do século XIX. Nos passos do francês Henri Matisse (1869-1954), seu pintor favorito, fez também imagens de nus cuja estranheza é o oposto do ideal de beleza dos editoriais de moda. Até bitucas de cigarro que catava na rua viraram tema de naturezas-mortas minimalistas, que preenchem uma sala surpreendente da exposição. Num ensaio, Penn conheceu aquela que seria sua mulher: a modelo sueca Lisa Fonssagrives, beldade que protagonizou algumas de suas melhores imagens de moda. O homem era quietão, mas não dormia em serviço.

Irving Penn: Centenário
Instituto Moreira Salles –  Av. Paulista. 2424 - Bela Vista, São Paulo - SP, 01310-300; Tel.: (11) 2842-9120
De 21 de agosto a 18 de novembro
Terça a domingo (exceto quintas), das 10h às 20h. Quinta, das 10h às 22h. Última admissão 30 minutos antes do horário de encerramento

Fonte: Marcelo Marthe, Revista Veja, Ed. 2596

(JA, Ago18)