segunda-feira, 24 de junho de 2019

‘Salvator Mundi’ - Leonardo Da Vinci



Museu prepara grande exposição do artista e inventor, mas não confirma exibição da controversa obra

A vinda do Salvador deixou de ser, nos últimos tempos, objeto de expectativa e crença apenas em templos. Na sacristia do Louvre, uma das catedrais da arte, muita gente hoje aguarda a Revelação.

O mistério envolve a exibição do quadro ‘Salvator Mundi’, atribuído a Leonardo da Vinci, na grande exposição que o museu prepara para outubro em lembrança aos 500 anos de morte do artista e inventor.



Pintura 'Salvator Mundi', atribuída a Leonardo da Vinci


Vendida em 2017 a um príncipe saudita pelo preço recorde de US$ 450 milhões (R$ 1,7 bilhão, em valores atuais), a obra tem paradeiro desconhecido. Deveria ter sido mostrada na filial do Louvre em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, no fim de 2018, mas a instituição adiou indefinidamente sua apresentação duas semanas antes da data prometida.

Surgiu então o rumor de que o óleo estaria guardado em um depósito em Genebra. Há alguns dias, reviravolta: um iate do príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, seria o pouso atual do Cristo de Da Vinci, segundo o marchand Kenny Schachter.

MBS, como é conhecido o monarca, tem sido citado desde o leilão de dois anos atrás como o verdadeiro proprietário da pintura.

A incerteza em torno da identidade do dono espelha a opacidade da própria origem do ‘Salvator Mundi’. Ninguém consegue cravar que se trate mesmo de uma criação de Da Vinci —ou, vá lá, assinada exclusivamente por ele.

A dúvida vem sendo alimentada por especialistas na obra do italiano em entrevistas e livros. Um dos mais ruidosos é o historiador e crítico de arte inglês Ben Lewis, que lançou há pouco ‘The Last Leonardo’ (O Último Leonardo), sobre as circunstâncias de produção do retrato e as dúvidas relativas a sua atribuição.

Ele fala em um ‘Da Vinci da pós-verdade’, dada a impossibilidade de se confirmar a autoria do quadro. O selo de autenticidade foi conferido por uma comissão de experts montada pela prestigiosa National Gallery, em Londres, pouco antes da abertura de uma mostra na instituição, em 2011.

Mas Lewis descobriu, ao longo de entrevistas, que o parecer do colegiado foi, na melhor das hipóteses, mal interpretado pelos responsáveis pela exposição. ‘O que houve foram discussões informais. Ninguém perguntou diretamente: Isto é ou não um Da Vinci?’, afirma o crítico em entrevista.

‘Os membros concordaram polidamente que poderia ser dele, mas não tinham certeza, porque, entre outras coisas, o quadro estava muito danificado, principalmente na região dos olhos do  Cristo, e na da órbita’.

Para ele, conferir o crédito pelo Salvator ao pintor radicado por boa parte da vida em Florença é quase um ato de fé, ‘uma reação baseada em emoção, não em fatos, um excesso de otimismo’.

Há quem apoie a crença na assinatura de Da Vinci no fato de um inventário das coleções do rei inglês Carlos 1º ter listado, um ano após sua morte, uma certa ‘imagem de Cristo feita por Leonardo’.

Ocorre que a insígnia da Coroa foi encontrada na face traseira de um quadro com a mesma iconografia e que hoje está no museu Pushkin, em Moscou. O ‘Leonardo’ a que se refere o apontamento pode ser de um assistente do artista ou simplesmente um imitador de fora de seu círculo.

Além disso, aponta Lewis, na época em que se acredita que a obra tenha sido feita (em torno de 1500), Da Vinci já se dedicava muito mais a pesquisas sobre matemática, física e anatomia do que a pincéis.

‘A essa altura, ele fazia esboços, mas eram seus pupilos que pintavam de fato, sob sua supervisão. Eventualmente, retocava ou finalizava alguma tela. Era um ateliê, precisava dar dinheiro [com produção em escala]’.

O crítico chama a atenção também para a frontalidade do Salvator, quando o italiano se notabilizou por retratos sutilmente oblíquos, em que o corpo faz uma torção.

O historiador e pintor Jacques Franck, que já deu consultorias para o próprio Louvre sobre a técnica de Da Vinci, é outro a destacar a estranheza da representação do Cristo, na comparação com trabalhos atribuídos há mais tempo ao autor da Mona Lisa.
‘A mão direita da figura é falsa, faz um gesto impossível. O dedo parece poder girar sobre si mesmo’, avalia. ‘Da Vinci fez textos muito precisos sobre articulações, tendões e ossos, é um dos maiores anatomistas da história. Jamais faria essa mão monótona, mecânica’.

Na opinião dele, as dobras na túnica do retratado também são de fatura tosca, inferior ao padrão que se associou até aqui ao artista. E há falhas de volume e proporção na esfera que o personagem sustenta com a mão esquerda.

Além disso, sublinha Franck, não existem quaisquer menções ao Salvator nos escritos de Giorgio Vasari, primeiro biógrafo de Da Vinci e, o mais importante, quase contemporâneo dele.

Para o historiador, Gian Giacomo Caprotti, conhecido como Salaì, pode ter sido o criador de fato da obra. Trata-se de um dos colaboradores mais próximos do artista, tanto assim que chefiava o ateliê na ausência do titular.

Segundo ele, uma tecnologia que analisa as camadas de tinta de um quadro mostrou analogias claras com o método de Salaì. ‘Mais do que isso, não consigo dizer. Só sei que, por trás de tudo, há um mercado de arte, arranjos entre casas de leilões, museus e colecionadores’, lança Franck. ‘É óbvio que a exibição da obra como sendo de autoria de Da Vinci lhe deu uma promoção extraordinária’.

Procurado, o Louvre parisiense mantém a cortina de fumaça, tanto sobre a atribuição do quadro quanto sobre sua localização atual. Confirma ter pedido o empréstimo da tela, mas não diz a quem.

Em relação à autoria, diz não se expressar sobre peças que não pertençam a seu acervo. ‘Você saberá [a quem ela é creditada] na exposição, se a obra for emprestada’.
A evasiva dá fermento ao ceticismo. O Salvador, ao que parece, não vai se submeter à prova do ver para crer.

Cronologia

Sécs. 15, 16 e 17 - A obra teria sido uma encomenda do rei Luís 12, da França; alguns dizem que depois ela passou pelas cortes dos ingleses Carlos 1º e 2º no século 17


1900 - É adquirido pelo britânico Francis Cook; quadro é creditado a Bernardino Luini, assistente de Da Vinci

1958 - É vendido na Sotheby’s por 45 libras

2005 - Marchands americanos o compram por cerca de US$ 10 mil, crendo que a autoria seja de Da Vinci

2011 - Após autenticação por experts, a tela passa a integrar exposição na National Gallery, em Londres

2013 - Obra é vendida por US$ 80 milhões e, pouco depois, revendida a US$ 127,5 milhões

2017 - Torna-se o quadro mais caro da história ao ser negociado por US$ 450 milhões



‘Homem Vitruviano’ - famoso desenho 
que acompanha anotações feitas por Leonardo da Vinci no ano de 1490
                                    





Fonte: Lucas Neves, de Paris  |  FSP




(JA, Jun19)



Roberto Burle Marx, muito além dos jardins



Uma completa mostra no Jardim Botânico do Bronx ilumina a arte do modernista que lidava igualmente com plantas e pincéis



Plantação nova-iorquina: ‘renascentista’


As palmeiras, magnólias e bromélias, plantadas no clima subtropical da Flórida, rodaram 2000 quilômetros para o norte, em caminhões, a caminho do frio de Nova York. A cidade abriga dois dos mais belos jardins botânicos das Américas, um no bairro do Brooklyn, o outro no Bronx.

O Jardim Botânico do Bronx acaba de inaugurar uma de suas mais ambiciosas exposições em 128 anos de história, ‘Brazilian Modern: The Living Art of Roberto Burle Marx’ (Brasileiro Moderno: a Arte Viva de Roberto Burle Marx), em cartaz até 29 de setembro, quando a impiedosa chegada do outono no Hemisfério Norte vier a desfazer a temporária fantasia tropical.

Burle Marx, que morreu há exatos 25 anos, foi sempre muito querido e estudado pelos americanos — em 2016, uma retrospectiva no Jewish Museum em Manhattan significou a redescoberta do artista brasileiro, para muito além dos jardins.

A mostra do Bronx se estende por quatro áreas: um jardim ao ar livre com direito a um mosaico que evoca as calçadas de Copacabana; uma seleção de plantas e flores tropicais na estufa Enid Haupt, estrutura centenária de inspiração vitoriana; um lago de plantas aquáticas; e, na biblioteca, uma galeria com obras de Burle Marx — pinturas, tapeçaria e desenhos.

A exposição foi programada ao longo de três anos e tem dois curadores convidados: Raymond Jungles, arquiteto paisagista, protegido de Burle Marx, e o historiador de arte latino-americana Edward Sullivan, da Universidade de Nova York.

Numa tarde de sol recente, feita sob medida para um passeio no jardim-tributo, é difícil acreditar como o viçoso éden tropical resistiu a semanas de instalação num mês de maio entre os mais gelados registrados em Nova York. Jungles, que emprestou ao Jardim Botânico várias espécies, como bromélias e o Filodendro burle-marx, diz que nem todas resistirão à volta para a Flórida no outono americano. ‘Não tem jeito’, diz. ‘Algumas vão virar matéria vegetal para cobrir outros jardins’.


O ateliê de Burle Marx, 1909-1994, no Rio

Para Jungles, que se tornou amigo do brasileiro depois de se hospedar sucessivas vezes entre 1982 e 1994 no sítio de Burle Marx, na Zona Oeste do Rio, transformado em centro de estudos botânicos e de conservação ambiental, ‘ele era um verdadeiro renascentista, homem com uma variedade extraordinária de talentos, um pioneiro do ambientalismo’.

Sullivan, que se encantou com a obra paisagística de Burle Marx nos anos 1980, ao conhecer o Aterro do Flamengo — hoje um triste monumento do descaso público —, vai ainda mais longe. ‘Se tivesse nascido na era do barroco, entre os séculos XVI e XVIII, poderia ser chamado de um monstro da natureza’ , diz. Monstro da natureza era o termo que o autor de Dom Quixote, Miguel de Cervantes, usava para definir seu contemporâneo, o poeta, dramaturgo e filósofo espanhol Lope de Vega.

A excelência do trabalho de Burle Marx como arquiteto de jardins, que o fez celebrado internacionalmente, acabou por ofuscar a extensa produção como artista plástico, que a exibição nova-iorquina trata de iluminar.

‘Quando observo exposições de modernistas brasileiros, pergunto: por que Burle Marx não está lado a lado com os nomes já conhecidos?’, diz Sullivan. ‘Hélio Oiticica, Lygia Pape e Lygia Clark seguiram os passos de Burle Marx na criação de suas obras’.

Segundo o crítico de arte francês Roger Caillois, autor de um alentado estudo acadêmico sobre Burle Marx e seu tempo, ‘o jardim instala no espaço rude uma minigeografia bem arrumada, ligeiramente desligada da natureza. O homem o criou não para sua subsistência, mas para seu deleite. O jardim é inútil e cobiçado: exatamente as duas características pelas quais os que não são artistas facilmente reconhecem as obras de arte’.

Não há dúvida: com plantas e pincéis, Burle Marx andou sempre de mãos dadas com os grandes nomes do modernismo. Edward Sullivan tenta explicar por que, apesar da inquietação criativa de monstro da natureza, ele costumava dizer que, se estivesse pintando, não projetava um jardim, era uma modalidade de cada vez. 

‘Burle Marx tinha uma grande preocupação de não ser visto como diletante, uma figura periférica’, diz. ‘Mas o fato é que o grande artista estava presente em todos os meios e não se pode separar o que ele criava. Seja nas joias que desenhou com o irmão Haroldo, seja nas pinturas e nos jardins, a sensualidade e o ar da natureza estão sempre presentes’.




Fonte: Lúcia Guimarães , de Nova York  |  Rev. Veja




(JA, Jun19)





quarta-feira, 19 de junho de 2019

Tarsila renova seus enigmas




Cruzando influências, pintora traduz o Brasil numa língua que é, e não é, a nossa


Auto retrato 'Vestido Azul', 1923

Faz sucesso a exposição de Tarsila do Amaral que fica até 28/07 no Masp, e  com bons motivos. Há uma grande quantidade de obras —quase cem—, lindamente distribuídas em paredes com as cores suaves que a pintora usava na sua fase pau-brasil.

Os textos reproduzidos ao lado de cada quadro são de ótima qualidade, sem jargão, e até com toques de valoração crítica, positiva ou negativa —estimulando quem vê a fazer seus próprios julgamentos.

Quadros raramente vistos, alguns notáveis, foram obtidos de coleções particulares. Destaco um autorretrato de vestido azul, de 1923, com toques orientalizantes nas frutas que pendem no fundo, perto da orelha da figura, como num eco dos brincos dourados de outra imagem da pintora.

‘Lagoa Santa’, de 1925, mostra as clássicas casinhas de interior de paisagens mais conhecidas —só que não tão nítidas, não tão ‘programáticas’ em sua simplicidade.

O efeito é menos bom, mas se vê compensado pelas árvores cortadas, quase como braços e pernas de ex-votos, no primeiro plano.

De Van Gogh e Gauguin passamos aqui a uma possível influência de cenas da Primeira Guerra Mundial, como as pintadas por John Nash, 1893-1977, por exemplo.

Alguns quadros não muito conhecidos misturam o estilo pau-brasil, intencionalmente ingênuo com favelinhas limpas e trenzinhos de brinquedo, e a crueza antropofágica de fins da década de 1920.


‘Segunda Classe’, 1933

De modo geral, as fases de Tarsila se sucedem com nitidez. A década de 1930 representou, em todo o mundo, uma virada artística para temas sociais. ‘Segunda Classe’ e ‘Operários’ são as grandes obras desse período, contrastando em qualidade com tentativas bem ruins, como ‘Trabalhadores’, de 1938.

Entre esses extremos, uma bonita ‘Maternidade’, do mesmo ano, usa os tons de Clóvis Graciano, Teruz e Portinari.

O ímpeto ‘animal’ de Tarsila foi se perdendo com o tempo; meio sem razão, alguns quadros terminaram fazendo experiências com um tipo de composição em diagonais que lembra a influência antiga do futurista Gino Severini, 1883-1966.

Ainda assim é muito bonita uma paisagem de 1950, em que também as pinceladas de Cézanne deixam sua marca.


‘Abapuru’, 1928

Influências, inspirações, lembranças: eis o que não falta na pintura de Tarsila. A simplificação geométrica de Léger, 1881-1955, se junta ao instinto obscuro do ‘douanier’ Rousseau, 1844-1910, e mesmo a distorção extrema do ‘Abaporu’ pode ter-se alimentado do maneirismo de Parmigianino, 1503-1540.

Trata-se de uma estranha originalidade. É como se Tarsila estivesse muito perto de imitar alguém, mas conseguisse ser ela mesma apesar de tudo.

Claro que a cultura brasileira lutava —e um pouco ainda luta—contra uma tendência ‘centrífuga’. Sair do país, viajar para fora, era desejo e rotina para a elite cafeeira, e hoje pega em cheio a classe média.

No caso de Tarsila, a solução foi muito particular. Em meados da década de 1920, ela se comprometeu a retratar um Brasil em que conviviam fazendolas e locomotivas. Mas não fez isso como se pertencesse a essa realidade: o olhar vem de fora; nem o moderno nem o rural são seus.

Na poesia de Oswald de Andrade, o efeito era de estranhamento, de comicidade, de absurdo. Isoladas de um contexto complicado e contraditório, as cenas do cotidiano brasileiro surgiam como um boneco de mola pulando da caixinha.

Não há humorismo na pintura de Tarsila; a realidade não está em choque com o olhar da artista. Seria possível dizer que ela não estava pintando a realidade, mas uma ‘ideia da realidade’; os seus quadros são a representação de uma representação, a pintura (culta) de uma pintura infantil ou popular.


'A Negra’, de 1923

'A Negra’, de 1923, causa ainda mal-estar e dá pano para mangas para os estudiosos no catálogo da exposição. Os lábios enormes chocam pelo que têm de estereotipado; de racista, dá para dizer.

Mas, novamente, não é bem a pintora que se pode acusar disto ou daquilo. Tarsila parece estar pintando com os olhos de um estrangeiro. São os olhos de um viajante, também, os que identificam frutas brasileiras e bichos da floresta —como algo a ‘traduzir’ numa linguagem sem fluência, difícil, construída passo a passo, forma a forma, cor a cor.

As pessoas se juntam para tirar selfies perto de ‘Abaporu’. Como ‘A Negra’, trata-se de uma esfinge, renovando o mesmo enigma. Seu idioma é o português do Brasil —mas não sabemos o que diz.





Fonte:  Marcelo Coelho, mestre sociologia USP, autor romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’  |   FSP



(JA, Jun19)

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Lasar Segall: O Eterno Caminhante




Eternos Caminhantes, 1919


Lasar Segall, 1891-1957, foi um artista que, como poucos, soube olhar com sensibilidade e empatia para o mundo a seu redor, conservando ‘ os olhos muito abertos’, como uma vez declarou.

Nascido em 1889 em Vilnius, atual capital da Lituânia, então sob domínio da Rússia czarista, era o sexto dos oitos filhos de Abel Guirchovitch Segall e Esther Godes Glaser Wulfovna.

Aos 16 anos deixou sua cidade natal para dar continuidade aos estudos artísticos, estabelecendo-se em Berlim, onde estudou na Königliche Kaiserliche Akademische Hochschule für Bildende Kunst.

O jovem artista ainda se matriculou na Hochschule für Bildende Künste Dresden, onde finalizou sua formação. Todo esse treino lhe forneceu notável proficiência técnica, equipando-o de um virtuosismo invejável. Como ele disse: ‘Sem técnica, sem conhecimento do método, o artista não fala – gagueja’.

Emigraria definitivamente para o Brasil em 1923, dez anos depois de sua primeira passagem pelo país, quando expôs seus trabalhos em São Paulo e Campinas, naturalizando-se brasileiro em 1927.

Com exceção dos quatro anos em que se radicou em Paris, de 1928 a 1932, Segall aqui viveu até sua morte em 1957. No entanto, o ambiente de sua cidade natal, com suas múltiplas fés, línguas e tipos humanos, bem como o drama da emigração, o marcaria por toda a vida, dedicando parte de suas obras a temas como a experiência judaica, a noção de identidade, o exílio e a condição suspensa dos que são obrigados a deixar seus países.

Nos trabalhos aqui reunidos podemos ver o engajamento com essas temáticas, bem como a identificação do artista com os emigrantes que, assim como ele, atravessaram o Atlântico em busca de melhores condições de vida na primeira metade do século XX.


Lasar Segall: O Eterno Caminhante
Museu Lasar Segall,, Rua Berta, 111, Vila Mariana, São Paulo-SP
Abertura da exposição, Sábado – 29 de junho – 15h00
Visita guiada com o diretor do Museu Lasar Segall Giancarlo Hannud – 17h00
Feira de publicações promocionais do Museu – 11h00 às 19h00


Imagem

‘Eternos Caminhantes’, pintura pertencente ao expressionismo de Segall, com suas figuras deformadas, faz parte de uma das obras que foi adquirida durante a I Guerra Mundial em 1920, para fazer parte do acervo do Museu da Cidade de Dresden, então dirigido pelo historiador de arte Paul Ferdinand Schmidt. Com Hitler  no comando do Governo Nacional-Socialista ,  quando subiu ao poder na Alemanha, essa obra foi retirada desse acervo em 1933.

‘Eternos Caminhantes’ e mais quatro outras pinturas estiveram em uma exposição que foi exibida em Munique em 1937, na célebre mostra intitulada como Arte Degenerada, que pretendia desqualificar a arte moderna. Durante a Segunda Guerra, esta tela, um dos melhores exemplos do expressionismo construtivo de Segall, permaneceu, com milhares de outras obras dos expressionistas alemães, confinada nos depósitos oficiais.

Quando terminou a guerra, essa pintura foi localizada, em uma coleção particular na Europa, pelo marchand Emeric Hahn. A pedido da viúva do artista, Jenny Klabin Segall, que soube da sua existência, a pintura foi recuperada, voltou para o Brasil, e passou a incorporar definitivamente o acervo do Museu Lasar Segall.





Fonte: Arte e Artistas,  Museu Lagar Segall



(JA, Jun19)


terça-feira, 11 de junho de 2019

A velhice é um massacre



Em 'Dor e Glória', diretor espanhol baixa o tom e renega visual berrante que o consagrou

O diretor espanhol Pedro Almodóvar no festival de Cannes em 2019

Pedro Almodóvar está numa cruzada contra o almodovarismo. Ele se queixa que seus colaboradores novatos querem ser mais realistas que o rei, e exagerar no visual berrante dos cenários e nos elementos kitsch da ambientação. Só que, prestes a completar 70 anos, o cineasta espanhol não se vê mais tão almodovariano assim.

‘Fiz muitos filmes coloridos, agora evito. E sou cada vez menos capaz de fazer comédias’, diz entre um gole e outro de sua Coca-Cola Light, à beira da praia, durante o Festival de Cannes, no mês passado.

Depois de um breve silêncio, ele se apressa em dizer que isso não tem nada a ver com ter perdido o bom humor. ‘Ainda adoro uma fofoca, adoro falar mal dos outros’.

No filme ‘Dor e Glória’, que está estreando nesta semana, sua notória estridência está uns dez tons abaixo. Ainda assim, talvez seja a mais coerente de suas obras —se não em estilo, ao menos em temática.

Semiautobiográfico, o enredo sobre a crise de um bem-sucedido diretor sexagenário o obrigou a expor seus espectros e passado nas telas. ‘Quando comecei, senti uma hesitação. Queria mesmo me ver assim tão de perto? Depois fluiu’, diz Almodóvar.

Embora diga que o resultado tenha sido terapêutico, seu intuito inicial com um filme tão pessoal não era exatamente psicanalítico.


Cena do filme 'Dor e Glória'

‘Eu queria me sentir mais confortável com a ideia de o tempo estar passando. Sou ateu, ou seja, não tenho nenhum apoio psicológico. A velhice é um massacre’.

Na ficção, quem carrega o martírio da idade é Antonio Banderas, vencedor do prêmio de melhor ator em Cannes pelo papel. Ele faz Salvador Mallo, um diretor macambúzio que estourou nos anos 1980, e agora se vê forçado a revisitar sua carreira quando recebe uma homenagem.

O enredo se debruça sobre tormentos do sujeito nesse filme que marca um retorno aos dramas mais masculinos de Almodóvar —e que renderam alguns de seus melhores títulos, como ‘A Lei do Desejo’, 1987, e ‘“Má Educação’, 2004.

Além da semelhança física, e do apego por filmes um tanto atrevidos, o protagonista compartilha com seu criador a angústia primal de um bloqueio criativo.

‘Sei que soa muito forte, mas a ideia de não ter um projeto em vista me tira o sentido da vida’, diz o cineasta. ‘É por isso que sempre estou envolvido com algum filme, nem que seja com a burocracia dele’.

E nas horas que restam? ‘Aí eu caminho por Madri, por disciplina porque não é algo que me apetece, e vou ao cinema e à ópera’, responde. ‘E ainda faço amor, embora menos do que antes’.

Mallo só desperta de sua letargia pela lembrança do desejo —sempre ele, uma chave para compreender a obra de Almodóvar, imantada de tanto erotismo que às vezes beira o sexy-histriônico. 

Na mais marcante cena de ‘Dor e Glória’, uma das mais belas de toda a filmografia almodovariana, o protagonista relembra a primeira vez que sentiu tesão.

Aos nove anos, flagrou um jovem camponês se banhando no pátio, debaixo do sol do verão. O desejo lhe é tão insuportável e tão misterioso, invadindo os seus poros pela primeira vez, que o garoto até desmaia.

Rodar a cena era preocupante. ‘Porque ao mesmo tempo que envolvia uma criança, eu tinha que passar ao espectador que era carregada de sensualidade’, diz o cineasta, que se lembra de ter experimentado seu primeiro tesão também na infância, apaixonado por um colega de escola.

O desejo também cruza com Mallo na forma de um antigo amor, um argentino vivido por Leonardo Sbaraglia, que o reencontra depois de anos de distanciamento. O revival é mote para a obra trazer uma cena, tão rara no cinema, de atração sexual entre dois homens envelhecidos.

Almodóvar, que diz se opor ao casamento como instituição, sai pela tangente quando o assunto é ter ou não experimentado um amor impossível, como o do personagem.

‘É difícil responder a isso. O que posso dizer é que tenho um cara comigo há uns 30 anos, mas transo com outras pessoas. Só não publique isso na Espanha, por favor’.

Penepole Cruz no filme 'Tudo sobre minha Mãe'

O diretor só fica mais confortável quando aborda outros aspectos centrais do filme, como a intensa relação do protagonista com a mãe, uma mulher amargurada, vivida por Penélope Cruz na juventude, e por Julieta Serrano na velhice.

‘Há algo com as espanholas que sofreram o rescaldo da Guerra Civil que faz com que não seja raro que elas se comportem de forma cruel com os filhos’, diz. ‘Elas chegam à velhice e concluem que a vida não foi justa com elas, então agem assim’.

Para rodar esse que é o seu filme mais íntimo, o cineasta se cercou de atores que são seus velhos conhecidos —sua ‘família emocional’, como ele mesmo descreve.

Sobre Banderas, seu parceiro em quase uma dezena de filmes, diz que é como um ‘irmão mais novo’. ‘Somos dois caras formados naquelas noites de Madri dos anos 1980’, diz o diretor, que é o nome mais conhecido da ‘movida madrileña’, o fervo cultural e boêmio que tomou o país após a dureza do franquismo.

Com Penélope Cruz é diferente. ‘Houve um tempo, no filme Volver, em que eu estava fisgado por ela, que realmente a desejava. Ela me faz sentir heterossexual’.

 
O ator espanhol Antonio Banderas e a atriz Elena Anaya em cena do filme 'A Pele que Habito', de Pedro Almodóvar



Poucas horas antes de dar esta entrevista, Almodóvar havia se derramado de amores pelo Brasil em conversa com os jornalistas em Cannes. ‘Era como se, mesmo sem ter estado ali, aquelas cores já fossem as que eu punha nos meus filmes’, disse, emendando pesar pela ‘fase difícil’ que o país atravessa.

Brasileiros ou não, esses tons tendem a ficar mais opacos na obra do espanhol. ‘Minha ideia de conceber o visual sempre passava por cores vivas. Mas mudei de opinião sobre as coisas. E há uma melancolia nesse filme que também faz parte da minha vida’.




Fonte: Guilherme Genestreti, Cannes   |   FSP



(JA, Jun19)


domingo, 9 de junho de 2019

Mostra de Alexandre Wollner apresenta design extraído da natureza



Exposição examina a anatomia dos traços do pioneiro do desenho gráfico no país

Alexandre Wollner rejeitava ser chamado de moderno. O designer encarnava o espírito da modernidade no seu sentido iluminista, buscando a razão a partir de um olhar atento aos fenômenos.

Sua viúva, a física Lais Wollner, lembra que o designer morto no ano passado vivia ‘vendo e fazendo’. ‘Relacionava estruturas, formas e significados, sempre observando o comportamento da natureza —o equilíbrio, a harmonia e seu segredo implícito: a estruturação modulada proporcional’.


O design Alexandre Wollner, em sua casa, em foto de 2013


O design Alexandre Wollner, sentado em uma poltrona em sua casa. Ao fundo, há estantes com livros e cartazes que ele fez para a Bienal, e para as comemorações dos 400 anos de São Paulo,

Isso está explícito, por exemplo, no seu interesse pela sequência de Fibonacci, a sucessão numérica que representa o padrão de crescimento de elementos na natureza, uma progressão de números ilustrada como espiral que se expande em ‘proporção áurea’.

A abstração e a matriz concretista de seus projetos gráficos resultam, portanto, da busca pela quintessência das formas naturais.

Esta é uma das deduções possíveis de serem feitas a partir da retrospectiva sobre Wollner, agora no Museu da Casa Brasileira. Inédita no Brasil, a mostra organizada pelo alemão Klaus Klemp foi montada há cinco anos em Frankfurt.




Wollner é um personagem inescapável na história do design no Brasil. Foi pioneiro já nos estudos na década de 1950 no Instituto de Arte Contemporânea do Masp, uma das primeiras iniciativas do ensino de desenho industrial no país.

Nesse primeiro momento da carreira, ele fez os cartazes do 1º Festival Internacional de Cinema do Brasil e o logotipo da Cinemateca Brasileira, aposentado há pouco pela instituição.




Em 1953, Pietro Maria Bardi, diretor do Masp, indicou o designer para a Escola Superior de Design em Ulm, na Alemanha —na verdade, a primeira indicação de Bardi foi Geraldo de Barros, que não aceitou por estar recém-casado. A mítica instituição estabeleceu um paradigma, até os dias atuais, de metodologia de ensino de design gráfico e de objetos utilitários.

Lá, Wollner foi recebido pelo seu diretor Max Bill, o grande premiado da primeira Bienal de São Paulo, em 1951. Na mostra, há várias fotografias do brasileiro na escola junto a figuras de peso, como Otl Aicher, Josef Albers, Max Bense e Johannes Itten.
Ao retornar ao Brasil em 1958, Wollner fundou a Forminform, primeiro escritório de design gráfico do país, em sociedade com Geraldo de Barros, Ruben Martins e Walter Macedo.




É o período em que ele passa a se dedicar à criação de marcas como a das sardinhas Coqueiro, em 1958, a do banco Itaú, em 1970, e a da Eucatex, em 1967.

Há décadas pertencentes à cultura visual das cidades e mercados brasileiros, dezenas desses desenhos criados por Wollner ocupam o jardim do museu. São apresentados em leves displays espalhados pelo gramado. Eles trazem, na frente, as marcas impressas e, na parte de trás, alguns textos com as descrições técnicas dos projetos.

Wollner, aliás, não se atinha à criação de um logo para a fachada ou rótulo de determinado produto. Ele desenvolvia a identidade visual a ser aplicada em toda a cultura produtiva de uma empresa, tanto para usos internos quanto para apresentação pública.

Na exposição, isso fica evidente nos manuais de implementação que criou para marcas como a Klabin e o Infoglobo.

Outro momento notável na carreira de Wollner é a fundação da Escola Superior de Desenho Industrial, no Rio de Janeiro, em 1963, com o designer Karl Heinz Bergmiller. Eles importaram de Ulm o modelo de aprendizado.

Na década que passou ligado à instituição carioca, defendeu a pesquisa utilitária voltada à aplicação em empresas brasileiras —seu rompimento com a escola se deu quando a engenheira Carmen Portinho incorporou as artes visuais ao currículo.

Da Alemanha, Wollner trouxe também um rigor e precisão formal ímpar. Isso e sua erudição ficam patentes nos depoimentos dados ao designer André Stolarski no documentário ‘Alexandre Wollner e a Formação do Design Moderno no Brasil’, agora em exibição na mostra.

Na versão paulistana da exposição, também foram incluídos cartazes —originais e reimpressões— e as últimas gravuras feitas por Wollner, quando retomou já bem no fim da vida a atividade de artista.

O diretor técnico do museu, Giancarlo Latorraca, que trabalhou com Wollner quando o designer integrava o comitê da instituição, ressalta que o material exposto agora, com peças criadas pelo designer e itens de seu acervo, é possível ver o processo criativo por trás de seus maiores trabalhos.


ALEXANDRE WOLLNER
Quando: Ter. a dom.: 10h às 18h. Até 25/8.
Onde: Museu da Casa Brasileira - av. Brig. Faria Lima, 2.705,
Quanto: R$ 10
Mais informações:  ​tel. (11) 3032-3727









Fonte: Francesco Perrotta-Bosch   |   FSP



(JA, Jun19)