Tecnologias
ópticas atuais, usadas na área médica, podem revelar o processo criativo do
pintor barroco em ‘Moça com brinco de pérola’
Obra 'Moça com brinco de pérola' foi pintada em 1665, e integra o acervo do museu Mauritshuis, na Holanda |
A imagem da
jovem de turbante que olha por sobre os ombros é uma das principais
representantes da era de ouro do barroco holandês. Assinada pelo pintor
Johannes Vermeer (1632-1675), a obra ‘Moça com brinco de pérola’ foi finalizada
em 1665, e faz parte do acervo permanente do museu Mauritshuis, em Haia, na
Holanda, desde 1881. É a integrante de maior renome da galeria, que, estima-se,
receba cerca de 400 mil visitantes todos os anos.
O acesso do
público à obra, porém, deve ficar comprometido pelas próximas duas semanas. 26
de fevereiro a 11 de março, um grupo internacional de especialistas submete o
quadro a uma bateria de análises. Os testes fazem parte de um novo e intensivo
projeto de investigação, batizado de ‘Girl in the spotlight’ (A moça sob os
holofotes, em tradução livre).
Estão
envolvidos, ao todo, 14 pesquisadores, estudantes e restauradores, de
diferentes institutos de arte e pesquisa da Holanda e dos Estados Unidos. Eles
trabalharão 24 horas, sem intervalo, no estudo de aspectos da tela, dos
pigmentos, tintas e outros materiais usados. Tudo para que seja possível
entender melhor como Vermeer criou sua principal obra, há mais de três séculos.
Será possível
‘descascar’ cada camada de tinta”, explicou Emilie Gordenker, diretora do
museu. De acordo com a diretora, falta entender melhor certos aspectos técnicos
do processo criativo do pintor holandês. ‘Não sabemos se ele utilizou muito o
recurso de camada morta’, ou se ele optou por materiais ‘de diferentes partes
do mundo, ou comprados em sua própria região’, disse.
A chamada ‘camada
morta’ (dead layer, em inglês) é um recurso comumente utilizado na pintura a
óleo. A técnica consiste em uma espécie de rascunho na tela, feito em uma única
cor, que, depois, receberá uma nova camada de tinta.
É a primeira
vez desde 1994 que o quadro sai de exposição para ser examinado. À época, os
pesquisadores chegaram a retirar pequenos fragmentos de tinta da pintura e
aplicar métodos de mapeamento, como a reflectografia de infravermelho. A
técnica acessa os chamados ‘desenhos subjacentes’, os primeiros traços do
artista antes de as camadas de tinta irem para a tela. Com essas ferramentas, é
possível trazer à tona, também, eventuais retoques feitos pelo autor, ou até
mesmo a existência de falsificações, por exemplo.
‘Ainda que a
obra não precise passar por um novo processo de restauração, vários avanços em
técnicas de análise não-invasivas foram feitos nos últimos 25 anos’, comenta a
instituição, em comunicado, justificando a intervenção mais recente.
A ideia,
agora, é focar no uso de técnicas mais modernas, como fluorescência de raio-x,
tomografia de coerência óptica e microscopia digital. Tais ferramentas são
comumente usadas em aplicações médicas, como a oftalmologia, e são chamadas ‘não-invasivas’.
Isso quer dizer que têm pouca chance de comprometer a obra original,
modificando sua composição ou estragando a tela de alguma forma.
Para não tirar
a principal obra do museu do alcance da visitação, todo o processo de análise
acontecerá em um estúdio especial cercado por paredes de vidro, que permite que
os visitantes acompanhem em tempo real.
‘Tirar a
‘Moça’ de sua moldura implica que ela não estará visível como costuma estar
para quem visita, o que é algo que realmente nos preocupa, já que pessoas vêm
de muito longe para ver essa pintura’, disse Gordenker, em entrevista ao jornal
The New York Times.
‘Pode acontecer
de ela [do quadro] estar deitada em uma cama, com vários tipos de câmera ao seu
redor, ou então encoberta por um scanner. Então é possível que quem visite não
consiga vê-la da forma usual. Queremos nos certificar de que aqueles que vierem
possam acompanhar todo o processo”, argumenta Gordenker. Para que nenhum
visitante perca a tradicional foto, uma reprodução 3D do quadro também estará
disponível para as selfies.
Após a coleta
de dados, pretende-se criar novas formas de visualização da ‘Moça’ em alta definição.
As diferentes camadas do quadro e o processo criativo de Vermeer, assim,
poderão ser acessados digitalmente, sem que a pintura precise sair da parede. ‘Depois
do período de pesquisa de duas semanas, a ‘Moça com brinco de pérola’ será uma
dos trabalhos mais bem documentados do mundo da arte’, projeta o museu.
Peculiaridades
da obra
Embora seja
tratada como tal, acredita-se que a ‘Moça com brinco de pérola’ não seja
exatamente um retrato, mas sim um ‘tronie’. A nomenclatura diz respeito à
pintura de uma figura imaginária, inventada pelo autor, e não de um modelo
vivo.
Os ‘tronies’
se caracterizam por representar uma pessoa dos ombros para cima, vestida em
trajes exóticos - no caso, o turbante. Característico do barroco holandês, o
conceito inspirou também outros artistas de renome do período, como Rembrandt.
A falta de um
nome para o rosto pintado por Vermeer acabou criando certa aura de mistério em
torno da moça retratada. As diferentes interpretações sobre sua identidade
chegaram, inclusive, a inspirar Hollywood. A versão para o cinema, estrelada
por Scarlett Johansson e Colin Firth em 2003, foi adaptada do best-seller
homônimo à obra de Vermeer, escrito pela americana Tracy Chevalier.
A história
mais curiosa, porém, diz respeito ao brinco que dá nome à obra. Em um artigo
publicado na revista New Scientist em 2014, o astrônomo holandês Vincent Icke
argumenta que pérolas desse tamanho não existem de verdade. A luz que reflete
no objeto, da mesma maneira, não corresponderia a que uma pérola produzida por
uma ostra. Ou seja: a moça do brinco de pérola não ostenta pérola alguma.
A opinião é
compartilhada pelo próprio museu em que a obra se encontra. De acordo com um
especialista do Mauritshuis, brincos de pérola de fato não costumavam ser um
adereço comum para moças holandesas no século 17. A hipótese mais provável é
que o ornamento usado fosse de vidro, e pintado por Vermeer de forma a se
assemelhar a uma pedra preciosa original.
Texto: Guilherme Eler |
=Nexo
(JA, Mar18)
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