O sucesso de uma megaexposição
parisiense de luz e som em torno da obra do gênio holandês reinaugura uma
antiga e fascinante questão: o que é arte?
IMERSÃO - Na mostra parisiense, um mergulho de sensações na vasta obra iluminada e depressiva de Van Gogh |
Da próxima vez que for a
Paris, faça uma experiência: visite o novíssimo espaço dedicado a exposições
multimídia, o Atelier des Lumières, não muito longe da Bastilha. Gaste um bom
tempo na exposição em cartaz, que consiste num festival de projeções
gigantescas, espetaculares mesmo, que vão do chão ao teto, passando por paredes
de 10 metros de altura, dedicado à vastidão da obra de Van Gogh (1853-1890).
Esbalde-se com a sensação de
entrar em A Noite Estrelada sobre o Ródano, o mar confundindo-se com o céu, na
cadência de uma lista inteira do Spotify com sinfonias de Mozart e Puccini, um
tanto de Miles Davis, outro tanto de Nina Simone.
Terminada a visita, já na
rua, flane por algo em torno de cinquenta minutos pela margem direita do Sena.
Na altura do Louvre, cruze a Pont Royal e, salve a Rive Gauche, vá ao Museu de
Orsay.
Na sala dos
pós-impressionistas, aproxime-se da tela original de A Noite Estrelada sobre o
Ródano, de 1888. Dê três passos para trás — pare, olhe e pense. O que é mais
emocionante? Quase sentir as pinceladas de Van Gogh acariciadas pelo vento de
Arles ou viajar lisergicamente no jorro eletrônico de todos os cantos do centro
cultural Atelier des Lumières?
Para muita gente, é indizível
estar diante da tela — para muitos outros, tudo é arte, e não por acaso a
mostra eletrônica inaugurada na semana passada é um imenso sucesso, com filas
dobrando quarteirões.
‘Por mais que estejamos
vivendo na era digital, nada substitui a experiência de ver uma tela original
ao vivo’, diz o historiador e crítico de arte Fernando Cocchiarale. ‘Querer
entender a obra de Van Gogh por meio de reproduções em vídeo é como querer
experimentar uma tortilha mexicana comendo Doritos. Não é ruim, mas não é a
mesma coisa’.
O que Cocchiarale explica
singelamente por meio de tortilha e Doritos, o filósofo alemão Walter Benjamin
(1892-1940) já intuíra no início do século XX, ao mostrar que os tempos
modernos, com a multiplicidade de cópias de obras de arte, haviam feito
desaparecer a alma única do ‘aqui e agora’, aquilo que é insubstituível. A tese
de Benjamin, um dos raciocínios mais queridos das faculdades de comunicações e
artes, nunca mais saiu de cena, mesmo envelhecida.
A ideia fez fama e vicejou na
academia porque, de fato, a arte está onde desejamos que ela esteja. Não por
acaso, a procura pela exibição tecnológica de Van Gogh em Paris sucede-se a uma
outra, também estrondosa, no mesmo endereço parisiense.
Em cartaz durante nove meses
de 2018, o show de imagens coloridas e brilhantes dedicado ao austríaco Gustav
Klimt (1862-1918) levou cerca de 1,2 milhão de pessoas ao espaço, uma antiga
fundição do século XIX completamente restaurada. Para efeito de comparação: o
Museu Belvedere, em Viena, onde está a maior compilação de pinturas de Klimt,
incluindo o mundialmente famoso O Beijo (1907), recebe pouco mais de 1 milhão
de visitantes por ano.
‘Esse tipo de exposição com
recursos multimídia atrai pessoas que não costumam ir aos museus tradicionais’,
diz Bruno Monnier, presidente do Culturespaces, empresa de gestão de museus
responsável pela tecnologia de exibição usada nas mostras de Van Gogh e Klimt. ‘
Um quarto dos visitantes são
jovens com menos de 25 anos. Para eles, o digital é óbvio. É a cultura deles’.
Batizado de AMIEX, acrônimo de Art & Music Immersive Experience, o sistema
levou cinco anos para ser desenvolvido e mescla equipamentos de última geração
avaliados em mais de 10 milhões de euros.
Para o espetáculo em torno de
Van Gogh, há 140 projetores de vídeo a laser que transmitem imagens em
altíssima definição. ‘O casamento entre a arte e o digital será um grande
aliado para difundir a produção cultural entre as futuras gerações’, resume
Monnier.
Para Gianfranco Iannuzzi, diretor
artístico da empreitada, ‘não se trata de substituir museus ou livros de arte,
mas sim de adotar uma aproximação alternativa à apreciação da arte, baseada em
uma experiência sensorial’.
KLIMT – Mais de 1,2 milhão de pessoas foram ver o show multimídia com suas obras em Paris. Já a tela O Beijo, em Viena, recebe 1 milhão de pessoas por ano |
Pode-se, enfim, entrar e sair
do Atelier des Lumières tendo se divertido, apenas — o que já é extraordinário.
Outro modo é pôr em contexto aquele carnaval todo, de fazer cair o queixo.
Desde que Marcel Duchamp, pintor, escultor e poeta francês, colocou um simples
mictório na exposição de 1917 da Associação de Artistas Independentes em Nova
York, mantém-se acesa a discussão do que é ou não é arte. A peça, batizada de
Fonte, um urinol de louça como outro qualquer da época, foi comprada já pronta
e apenas assinada com o pseudônimo ‘R. Mutt’. Acabou se tornando um ícone do
dadaísmo, movimento que buscou desconstruir os conceitos da arte tradicional
dando valor artístico a objetos muitas vezes triviais.
Cem anos depois, é a
tecnologia digital que revoluciona as artes e, principalmente, permite acesso
mais democrático a elas (o Atelier des Lumières já tem contrato para levar suas
exposições a outros países, em formato de franquia — o Brasil não está
incluído). E, de sobra, resolve um problemão. ‘É praticamente impossível que
obras como as de Van Gogh viajem hoje em dia. Pouquíssimas instituições podem
arcar com os custos de seguro e transporte desses tesouros’, diz o diretor
artístico Marcello Dantas, um dos mais respeitados nomes das exposições
nascidas na tela dos computadores.
‘Ou descobrimos formas
originais de nos conectar a essas obras-primas, ou elas ficarão restritas a um
círculo diminuto’. Dito de outro modo, nas palavras de Sandro Kereselidze,
fundador do Artechouse, instituição de arte digital de Washington, ‘existem
museus para preservar e outros para apresentar’.
(JA, Mar19)
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