Mostras em diversas cidades da Holanda
permitem ao visitante ver a quase totalidade de sua obra
Quando morreu em 1669, o
pintor Rembrandt estava falido e solitário. Nada semelhante ao sucesso que
alcançara cerca de 40 anos antes, quando se instalou em Amsterdã como jovem
talento, logo considerado o melhor retratista dos Países Baixos, requisitado
para pintar os ricos e poderosos.
Naquela época, amealhou
grande fortuna, morava e trabalhava em uma mansão luxuosa na área nobre da
principal metrópole holandesa e produziu compulsivamente desenhos, gravuras e
pinturas a óleo, sempre testando e aprimorando técnicas.
Ao final da vida, porém, seu
estilo saiu de moda, as encomendas diminuíram e a vida pessoal foi abalada pela
morte da mulher, breves romances conturbados e a morte do filho mais velho. Ele
faliu, perdeu a casa e improvisou tramoias para esconder dos credores as parcas
rendas que conseguia com a pintura, que jamais abandonou.
Nascido em Leiden, ao sul de
Amsterdã, em 1606, Rembrandt Harmenszoon van Rijn terminou a vida aos 63 anos
em um hospital para indigentes, e foi enterrado sem identificação.
Mas os séculos posteriores
foram gentis com sua memória. Ele passou a ser considerado a principal
referência do renascentismo do norte europeu, menos influenciado pelo estilo
mais luminoso e colorido que predominava no sul, como foram seus contemporâneos
Rubens e Vermeer, por exemplo.
A Holanda comemora no ano de
Rembrandt os 350 anos de sua morte, com mostras ao longo de 2019 em pelo menos
19 museus de nove cidades.
Na maior dessas exposições,
aberta em fevereiro, o Rijksmuseum apresenta todo o seu acervo de obras de
Rembrandt, considerado o maior do mundo em uma só instituição -22 pinturas, 60
desenhos e cerca de 300 gravuras.
O evento oferece uma
oportunidade única para conhecer ao mesmo tempo e em um só lugar essa grande
porção da vasta obra do artista, uma vez que os desenhos e gravuras são
raramente expostos por serem sensíveis à luz.
Entre as obras estão diversas
das principais telas fundamentais do pintor, incluindo a ‘Ronda Noturna’,
pintada de 1639 a 1642, considerada a sua maior criação. Ela foi produzida por
encomenda da Guarda Civil de Amsterdã para ser instalada em sua sede e tem 3,80
m de altura por 4,54 m de largura.
No século 18, o quadro foi
cortado para caber em uma parede da prefeitura, onde ficou instalado por mais
de cem anos, antes de ser levado para o Rijksmuseum, em 1885.
Também está na exposição ‘A
Noiva Judia’ (1667), com a qual Vincent van Gogh, também holandês, teria dito
que daria dez anos de vida para conviver por dez dias.
Um outro casal emociona os
visitantes —os retratos de Marten Soolmans e a mulher, Oopjen Coppit, foram
pintados na época de seu casamento, em 1634, e adquiridos há três anos pelo
Rijksmuseum e pelo Louvre, em sociedade, por € 160 milhões (cerca de R$ 670
milhões), pagos à família Rothschild.
Os quadros, de 2,10 m de
altura cada um, mostram os dois em tamanho natural, vestidos com as melhores
roupas e tecidos da época. Depois desta exposição, os quadros devem seguir para
o Louvre e rodar o mundo, como prevê o acordo de aquisição conjunta.
Também a Casa de Rembrandt,
ou Rembrandthuis, que funciona na mansão em que o artista viveu nos tempos
áureos, no centro de Amsterdã, reconstruída e transformada em museu há uns cem
anos, apresenta uma mostra especial, chamada ‘A Rede Social de Rembrandt’,
explorando as imagens que ele produziu dos que o cercavam.
Em Haia, o museu Casa de
Maurício de Nassau, a Mauritshuis, também apresenta todo o seu acervo de
Rembrandt. O museu é mais famoso por ser a morada do quadro ‘Moça com Brinco de
Pérola’, de Vermeer, mas tem um conjunto importante de 19 pinturas de Rembrandt.
O maior destaque é a tela ‘A Lição de Anatomia do Dr. Tulp’, de 1632.
Em um ensaio sobre o quadro ‘As
Meninas’ (1656), de Velázquez, que serve de abertura ao livro ‘As Palavras e as
Coisas’, o filósofo Michel Foucault mostra como o pintor espanhol seiscentista
se põe pioneiramente como objeto central de sua obra-prima. Ele está no centro
do quadro, no mesmo plano da filha do rei da Espanha e suas damas de companhia,
que deveriam ser o centro das atenções.
‘Pinto, logo existo’, parece
afirmar pictoricamente o artista mais ou menos na mesma época em que o francês
René Descartes proclamava seu ‘penso, logo existo’. Aquele momento do
Renascentismo, revela Foucault, marca a afirmação do homem como centro do
universo, tomando o lugar antes reservado ao Deus onipotente e onipresente que
havia marcado o pensamento humano até então.
A rara oportunidade de
avaliar a quase totalidade da obra de Rembrandt permite constatar como, décadas
antes de Velázquez, o holandês havia se colocado como pintor no centro do palco
da própria obra. As dezenas de autorretratos (ou selfies como se diria hoje) e
a aparição meio escondida ao fundo da ‘Ronda Noturna’ não eram manifestações de
narcisismo, mas uma narrativa de sua trajetória e da técnica artística.
Rembrandt pintava a existência do artista como um pioneiro manifesto
renascentista.
As mostras do ano de
Rembrandt em curso na Holanda podem fazer o que pareceria impossível —pôr o
pintor seiscentista em uma posição ainda mais destacada no panorama da história
da arte.
Fonte: Leão Serva |
FSP
(JA, Mar19)
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