Disciplina, cujo instrumento é o olhar que interroga e duvida, tem um alcance que a ultrapassa. Ensina a lidar com o não dito e a incerteza constante.
Alguém se
referiu ao prêmio Almirante Álvaro Alberto como ‘o pequeno Nobel brasileiro’. A
comparação faz algum sentido, embora se trate de honraria discreta, conhecida
quase apenas por pesquisadores.
Concedida
pelo CNPq, tem o apoio da Fundação Conrado Wessel, que contribui com 200 mil
reais para o vencedor, e da Marinha Nacional, que oferece duas viagens, à
Amazônia e à Antártida.
As normas da
premiação determinam todos os anos um rodízio nas disciplinas do conhecimento
—exatas, biológicas e humanas— para um único agraciado. Cada área, portanto,
tem sua vez a cada três anos. A lista dos laureados contém nomes muito ilustres
da ciência e da cultura brasileiras.
A comissão
que escolhe é grande, constituída por membros de todas as áreas. Não há
inscrição: todos os pesquisadores brasileiros, por princípio, concorrem.
Acreditem no
meu atordoamento quando avisaram que fui o vencedor de 2018.
Mais do que
a felicidade pessoal, o que me pareceu muito importante foi o fato de que minha
disciplina, a história da arte, foi pela primeira vez agraciada.
Isso
significa sensibilidade em relação a uma área discreta dentro da universidade
brasileira. No país, ela encontrou verdadeiro foro acadêmico há somente três
décadas.
Até então,
entre nós, as pesquisas em história da arte não tinham um lugar de fato
próprio. Confundiam-se muitas vezes com a estética, com a teoria da arte e com
a sociologia, domínios muito importantes, mas específicos e que não
correspondiam à conformação da história da arte.
Nestes
últimos 30 anos, porém, ela se implantou com belo vigor. Existem apenas duas
graduações, bem recentes, que dão conta da formação inicial nesse percurso: são
exemplos a serem seguidos. Ao contrário, desenvolveu-se um grande número de
programas de mestrado e doutorado, permitindo que surgissem excelentes
especialistas.
Num país
estremecido por tantas crises, com tão fortes desigualdades sociais, problemas
imensos, ainda mais num momento de incertezas tão pronunciadas, cabe a
pergunta: para que serve a história da arte?
Serve para
que possamos ter uma apreensão complexa e profunda da humanidade e de sua
cultura. Ela solicita reflexão, mas também exige descobertas pela intuição —que
é uma forma crucial do conhecimento. O historiador da arte se vê obrigado a
desenvolver um modo de captar seu objeto sem passar pelo conceito, pela
palavra, pelo enunciado, pelo axioma lógico.
Toda a
formação que temos desde a infância foi assentada sobre a leitura de signos:
sejam matemáticos, letras, palavras, frases. Bem diferente, a história da arte
demanda, em grande parte, trabalho que avança por meio do silêncio, por meio da
observação: é como se o olho se tornasse inteligente.
Dou um
exemplo simples e um pouco grosseiro. Uma frase como: ‘As pinturas de Van Gogh
e de Millet têm pontos em comum’ é um enunciado de autoridade. Não prova nada.
A única maneira de confirmá-la é a evidência silenciosa da comparação entre,
pelo menos, duas imagens, a síntese fazendo-se na mente daquele que vê. É este
o argumento que nenhuma frase traduz.
Especialista verificando estado de quadro do pintor Van Gogh |
Há outro
ponto. As obras de arte estão sempre em contínua mutação. Mutação física, por
causa da ação do tempo. Mas, igualmente, mutação imaterial. Porque os olhos
mudam, e a arte só ocorre em sua relação com o olhar de gerações sucessivas, de
indivíduos diversos.
Desse modo,
o fetichismo do original dá lugar ao fato de que as formas artísticas possuem
uma existência imaterial ao mesmo tempo constante e mutável.
A obra
existe na materialidade do suporte e na imaterialidade da memória.
A história
da arte é uma disciplina cujo sentido epistemológico tem um alcance que a
ultrapassa, porque ela ensina a lidar com o não dito e com a incerteza
constante. Seu instrumento é o olhar que interroga e duvida.
Pela
história da arte, pela cultura, pelas humanidades, damos sentido às coisas. É
graças a elas que o conhecimento e a ciência deixam de ser meros instrumentos
para integrarem um processo humanístico.
As
humanidades, no mundo em que vivemos, veem seu horizonte se estreitar cada vez
mais. Estou convencido de que é importante investir nas ciências, na
tecnologia, mas também muito nas humanidades.
E elas
precisam chegar aos universos mais frágeis de nossa sociedade. Isso só ocorrerá
com o fortalecimento e a expansão de uma universidade pública, gratuita, capaz
de desenvolver e implantar, de modo significativo, as práticas de inclusão
social.
Texto: Jorge Coli, professor titular de história da
arte na Unicamp e autor de 'O Corpo da Liberdade' (Cosac Naify) |
FSP.
(JA, Mai18)
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