Uma estupenda mostra de
mestres italianos, com o grande Ticiano à frente, ilustra as razões da
popularidade e da eterna atualidade de São Francisco de Assis
Imitação de cristo - O personagem com o anjo, por Orazio Gentileschi: depois da Virgem e de Jesus, só dá ele |
Pai dos pobres - Francisco, em obra do quattrocento, de Antoniazzo Romano (1467): santo ‘antenado’ |
Notório pela
humildade inquebrantável, São Francisco de Assis (1182-1226) não endossava a opinião
que os outros tinham sobre sua aparência. Para os seguidores, o santo que
renovou o cristianismo com sua opção radical pelos pobres sintetizaria a pureza
da fé nos traços formosos de sua face. Mas Francisco, consciente de seu rosto
fino e inexpressivo, auto definia-se como um ‘franguinho preto’. A posteridade
não avalizou a modéstia franciscana: desde sua morte, na Itália do século XIII,
o franguinho tornou-se um poderoso emblema católico, como se atesta em São
Francisco de Assis na Arte de Mestres Italianos, que estreia na quarta-feira 8
na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte, e aportará em outubro no Museu
Nacional de Belas Artes, no Rio.
Com vinte
obras que vão do quattrocento renascentista às visões estupefacientes do
barroco, passando por uma tela de quase 3 metros de altura do mestre da escola
veneziana Ticiano Vecellio, o acervo resume a força do santo como inspiração
para grandes pintores. Como estima o italiano Stefano Papetti, um dos
curadores: ‘Depois de Cristo e da Virgem, nenhuma figura cristã foi tão
celebrada em imagens’. A mostra é a versão ligeiramente reduzida de outra
exibida em 2016, em Ascoli Piceno, cidadezinha italiana onde Francisco pregou
há oito séculos, e em cuja igreja se encontra a obra de Ticiano. A falta de
ineditismo não afeta o essencial: quando um conjunto tão estupendo de arte
italiana vem ao Brasil, só resta correr para a fila do museu.
Penitência – ‘Êxtase’ (século XVII), de Cesare Fracanzano: sofrer é viver |
Família - Obra de dell’Amatrice: São Sebastião, Santo Antônio, a Virgem com Jesus, São Francisco e São Roque |
A aura de
santo ‘gente como a gente’ se completa com fraquezas e padecimentos humanos.
Filho de um comerciante rico, Francisco foi o equivalente medieval do playboyostentação:
esbanjava dinheiro em farras, e trajava os últimos babados da moda. A certa
altura, porém, os prazeres mundanos perderam o sentido. Em crise existencial,
ele penou até a conversão. No momento da ruptura, entregou suas roupas ao pai —
que o acusava de torrar a herança com os pobres — e saiu nu em meio a uma
multidão. Mais tarde, quando os romanos se mostraram insensíveis à sua
pregação, pôs-se a evangelizar pássaros, que se reuniriam só para ouvi-lo — o
que espalhou a fama de santo.
As duas
cenas foram imortalizadas em afrescos que adornam a Basílica de Assis, onde ele
está sepultado. São obras que não saem de suas paredes de origem — mas o espectador
brasileiro poderá, como consolo, fazer um tour virtual pela igreja. A riqueza
da Basílica de Assis expõe outra razão de sua popularidade: a ordem religiosa
que ele criou — a dos frades franciscanos — foi desde sempre sagaz em promover
a imagem de seu primeiro líder por meio da arte.
Grandeza - A tela de Ticiano: cena poderosa dos estigmas enviados por raios |
Além do
feito de reaproximar a Igreja do povo ao abraçar a ‘Senhora Pobreza’, Francisco
tinha mais um atrativo para a exploração visual: foi o primeiro santo a
ostentar os chamados estigmas. Seu corpo, supostamente, carregava as cinco
chagas do Cristo crucificado: os cravos nos pés e nas mãos e a ferida no lado
direito do tórax. Anunciado após sua morte, o milagre foi visto a princípio com
desconfiança, inclusive pelos artistas. ‘Pintores relutavam em pintar os
estigmas e, se os pintavam, logo eram apagados por fiéis desconhecidos’, relata
uma biógrafa moderna, Chiara Frugoni (para quem os estigmas seriam sinais de
uma das várias doenças que possivelmente o levaram à morte: a hanseníase). Com
o tempo, porém, a Igreja deu um jeitinho de condensar os relatos na cena de
irresistível pungência em que o santo recebe as marcas de raios disparados por
Cristo.
Fé - ‘São Francisco em Oração’, de Annibale Carracci: glória barroca |
A mostra
ilustra três variantes da representação de São Francisco. Ele surge acompanhado
de outros santos: na pequena mas singela obra do mestre do século XVI conhecido
como Cola dell’Amatrice, está ao lado da Virgem com o Menino Jesus, São
Sebastião, São Roque e Santo Antônio. Em outras, há o Francisco sofredor e
penitente — tema comum desde seus primeiros retratos até a explosão dramática
do barroco, como no dilacerante Êxtase, de Cesare Fracanzano. O motivo mais
recorrente são os estigmas. Em um magnífico óleo do também barroco Orazio
Gentileschi, Francisco tem seu corpo inerte abraçado por um anjo, igualando-se
ao próprio Cristo apeado da cruz. Por fim, há a grande obra do grande Ticiano.
Feito pelo pintor aos 80 anos, usando os dedos em lugar de pincéis em alguns
pontos, o painel é um milagre da restauração: exames de raios x mostram que por
baixo da tinta há buracos causados pelo fogo de velas, fruto de um acidente
séculos atrás. Pintor mais careiro de seu tempo, Ticiano cobrou uma nota para
fazer a encomenda para um figurão que aparece todo pomposo no lado direito da
pintura. Santa ironia: o artista ficou mais rico à custa do pai dos pobres.
Fonte: Marcelo Marthe |
Revista Veja
(JA, Ago18)
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