quinta-feira, 23 de agosto de 2018

‘Irving Penn: Centenário’ - Um caladão inquieto


Homem de poucas palavras e métodos espartanos, Irving Penn — tema de bela mostra em SP — pôs abaixo a fronteira entre a fotografia de moda e a grande arte

Gente fina - Foto de Marlene Dietrich: famosos se ofendiam, mas depois amavam  

Da endiabrada atriz alemã Marlene Dietrich ao blasé jornalista americano Truman Capote, celebridades faziam romaria ao estúdio do fotógrafo Irving Penn (1917-2009) para ensaios da revista de moda mais influente de seu tempo, a Vogue. Ao adentrarem o local, porém, a expectativa por glamour dava lugar à perplexidade: os famosos se espremiam em cenários espartanos e sujos, como uma quina feita de duas tábuas ou um pedaço de carpete velho. 

Caladão, o fotógrafo nem lhes dirigia a palavra. A tensão só se dissipava quando os personagens — que incluíam, ainda, da musa do cinema Audrey Hepburn ao compositor russo Igor Stravinsky — viam o resultado. “As pessoas se sentiam ofendidas, mas depois amavam”, diz Jeff L. Rosenheim, chefe do setor de fotografia do museu Metropolitan e curador da mostra Irving Penn: Centenário. É irônico que um dos atrativos da magnífica retrospectiva que chegará na terça-feira 21 ao Instituto Moreira Salles, em São Paulo, depois de passar pela instituição nova-iorquina e por Paris e Berlim, seja uma réplica do cenário onde Penn humilhava, ops, fotografava estrelas. Ao fazer as próprias fotos, o público poderá atestar o efeito do palco despojado.

Selfies à parte, é um privilégio degustar as cerca de 240 fotografias espalhadas por dois andares da sede do Moreira Salles na Avenida Paulista. Irving Penn foi nome decisivo na criação da fotografia de moda moderna. Ao longo de seis décadas, desde o fim dos anos 40 até perto de morrer, sua grife visual era inescapável. Mas o homem foi muito maior: com formação vigorosa e inquietude quase renascentista, Penn pôs abaixo a fronteira entre a atividade editorial e a arte, ao explorar a grande tradição do retrato, a natureza-morta, o minimalismo e a experimentação inovadora de técnicas e materiais.

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A inquietação fica patente em sua trajetória como retratista. Penn começou a desbravar o gênero durante uma viagem ao Peru. Depois de produzir um ensaio de moda, ele despachou a modelo de volta para os Estados Unidos e viajou até Cusco, a cidade inca encarapitada nos Andes. Lá, alugou o estúdio precário de um fotógrafo local e tomou o lugar deste no ofício de fazer retratos pagos de cidadãos comuns. “Como não falava uma palavra de quíchua ou espanhol, ele desenvolveu seu método de dirigir as sessões apenas com intervenções físicas, arrumando cada pose com as próprias mãos”, diz Rosenheim. Mais tarde, a mesma estratégia seria aplicada às tantas celebridades que Penn fotografou. “À maneira dos grandes pintores do passado, ele demonstrou que um grande retrato nasce da interação entre a personalidade do personagem e a do artista”, diz o brasileiro Sergio Burgi, coordenador do IMS.

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Penn realizou uma série de trabalhos de imenso valor sociológico e ­etnográfico. Em viagens pelo Marrocos, Benim e Nova Guiné, montava uma tenda no meio do nada e fazia retratos dos nativos com seu cenário clássico. Mesmo quando registrava modelos, Penn não deixava de experimentar. Nos intervalos das sessões, fazia ensaios com trabalhadores urbanos, seguindo a tradição dos retratos de ofícios, que vinha dos gravuristas e fotógrafos do século XIX. Nos passos do francês Henri Matisse (1869-1954), seu pintor favorito, fez também imagens de nus cuja estranheza é o oposto do ideal de beleza dos editoriais de moda. Até bitucas de cigarro que catava na rua viraram tema de naturezas-mortas minimalistas, que preenchem uma sala surpreendente da exposição. Num ensaio, Penn conheceu aquela que seria sua mulher: a modelo sueca Lisa Fonssagrives, beldade que protagonizou algumas de suas melhores imagens de moda. O homem era quietão, mas não dormia em serviço.

Irving Penn: Centenário
Instituto Moreira Salles –  Av. Paulista. 2424 - Bela Vista, São Paulo - SP, 01310-300; Tel.: (11) 2842-9120
De 21 de agosto a 18 de novembro
Terça a domingo (exceto quintas), das 10h às 20h. Quinta, das 10h às 22h. Última admissão 30 minutos antes do horário de encerramento

Fonte: Marcelo Marthe, Revista Veja, Ed. 2596

(JA, Ago18)

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