Mostra em cartaz no Museu de Arte do Rio revolve o legado do
artista como material vívido e dinâmico
John Berger
dizia que a atividade mais profunda dentre todas é desenhar. A exposição ‘Tunga
- O Rigor da Distração’ é uma confirmação exuberante dessa ideia.
Com
curadoria de Luisa Duarte e Evandro Salles, a exposição que pode ser visitada
no Museu de Arte do Rio até novembro abrange trabalhos produzidos entre 1975 e
2015, oferecendo contato privilegiado com uma dimensão menos conhecida do
artista, morto em junho de 2016.
Sem
pretender ser retrospectiva em sentido estrito, a exposição no entanto permite
uma visão aprofundada da trajetória de Tunga. Lembra-nos inclusive que sua
primeira exposição individual, ‘Museu da Masturbação Infantil’, aconteceu no
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1974 e consistia precisamente em uma
série de desenhos.
Xifópagas Capilares, 1984 |
Segundo
declaração do próprio artista à época, seus trabalhos investiam contra as
repressões simbólicas e imaginárias, 'contra o comércio do desejo em nossa
sociedade'.
A exposição
aborda o desenho em Tunga não simplesmente como técnica ou obra acabada, mas
como um método de pensamento visual e um manancial capaz de explicitar seus
diferentes processos plásticos —ou teóricos, como defendia o artista.
O título
enfatiza a articulação solidária entre rigor e a distração numa obra cujo
fascínio está ligado à energia erótica que atravessa os corpos, contagia e abre
as formas, encetando processos metamórficos infinitos.
Nas
articulações propostas pela curadoria percebe-se que o desenho foi para o
artista tanto um gesto inaugural, um laboratório de pesquisa topológica e
morfológica, quanto um espaço residual, de acolhimento e transformação de todo
um imaginário mítico-psíquico latente, mas em geral reprimido.
O amplo e
heteróclito conjunto de obras —incluindo precioso material inédito, documentos,
estudos, filmes— foi disposto de modo a sublinhar ecos e elos entre desenho e a
produção escultórica e performática (‘instaurações’) por meio das quais o
artista se tornou conhecido. Assim, as tranças que comparecem em diversos
trabalhos de Tunga passam a serem vistas também como arquitetura de linhas e,
portanto, desenho.
Outro eixo
condutor da exposição é a relação de Tunga com as palavras. Entre desenho e
palavra circulam formas fluidas, irredutíveis ao visível e nunca esgotáveis
pelos discursos ou interpretações. Desenhar era também perseguir a dimensão
erótica do pensamento, sua morfologia imprevisível e sedutora, de certo modo
também mítica.
Em
entrevista exibida no espaço expositivo, o artista fala de duas práticas do
desenho em seu percurso, uma proveniente da lógica arquitetônica, com desenhos
de alta precisão que tornam visível o que se pretende tornar concreto; a outra
estaria mais próxima de uma força do imaginário, imagens que não são projetos
de obras, nem se querem semelhantes ao que já existe no mundo.
Suas linhas
vão da visceralidade dos primeiros desenhos ao etéreo da série ‘Anjos Maquiados’,
de 2011, feita de zonas erógenas em tons de rosa e vermelho não completamente
visíveis, ou a delicadeza extrema de ‘Quase Autora’, de 2009, aquarelas que
parecem querer dar a ver o momento de nascimento da imagem. Tunga sabia nos
reconectar com o fascínio dos começos e com o enigma do que nunca termina.
Diferentemente
de muitas exposições póstumas que se contentam com o apelo aurático do luto ou
com a transformação do espólio em relicário, esta revolve o legado de Tunga
como material vívido e dinâmico.
Tunga - O Rigor da Distração’
MAR (Museu de Arte do Rio), pça. Mauá, 5, Rio de
Janeiro
Até 4/11
Ter. a dom.: 10h às 17h.
Preço R$ 20. Grátis às terças
Fonte: Laura
Erber, escritora, crítica e professora de teoria e história da arte da Unirio | FSP
(JA, Ago18)
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