Em cartaz até abril, exposição ilumina, mas romantiza, arte
afro-brasileira
Caribé, Oxalá, 1965
‘Jexus’.
Enquanto Salvador treme ao som do Carnaval, essa palavra que junta o filho do
Deus católico com o Exu do candomblé estampa em letras vermelhas as paredes
brancas do Museu Fowler, em Los Angeles, na maior mostra do que entendem como
arte afro-brasileira já realizada nos Estados Unidos.
Dos trabalhos
mais simples e poderosos da exposição batizada ‘Axé Bahia’, o estêncil de Àlex
Ìgbó é um contraponto a obras ali que falam em separação e preconceito.
Seu híbrido de
divindades sugere fundir, em vez de apartar, mas ironiza o mito da democracia
racial ainda em vigor num Brasil mestiço usando os mecanismos da arte de rua é
ao mesmo tempo afirmação, denúncia e protesto.
Na contramão
desse gesto, o abre-alas da mostra é um aquário criado por Ayrson Heráclito, um
dos nomes mais relevantes no panorama brasileiro atual, em que uma camada de
azeite de dendê num tom laranja radioativo não se mistura com a água salgada no
fundo do tanque.
Seria uma
alusão a feridas históricas que não se fecham com o tempo e à travessia do
Atlântico por navios negreiros que despejaram na costa baiana um povo destinado
aos horrores da escravidão.
Num vídeo, que
estreou na última Bienal de Veneza e agora está em Los Angeles, Heráclito
aparece fazendo um ritual de limpeza num porto do Senegal de onde saíram
escravos traficados para o Brasil e também em Salvador, onde eles foram parar.
Seus gestos
delicados contrastam com a natureza macabra de um trabalho de Caetano Dias na
sala ao lado, onde dezenas de cabeças de açúcar fundido parecem ter rolado por
debaixo de uma mesa de lados desiguais metade do móvel poderia estar na
casa-grande e a outra metade parece saída da senzala.
VERTIGEM
Um sentimento
de culpa e impotência atravessa esses trabalhos e sublinha outra estranha
vertigem por mais que ilumine a arte negra da Bahia, a mostra não deixa de
transformar em fetiche o corpo negro, a capoeira, as baianas de saias brancas
rodadas.
O modernista
Rubem Valentim, um dos artistas históricos ali e um dos poucos negros a vencer
a barreira racial que fez das vanguardas artísticas no Brasil uma coisa de
burgueses brancos, é celebrado pela forma como infiltrou símbolos do candomblé
na matriz geométrica moderna.
É como se a
potência inquestionável de sua obra se devesse toda a um ato de sabotagem ou
tráfico subversivo de uma iconografia marginalizada para dentro do movimento
que anunciava em grande medida um futuro maquinal, clean e branco.
Valentim não
está mal representado nem deslocado na mostra, mas torna gritante a
impermeabilidade do establishment artístico brasileiro a artistas negros como
ele.
Outros nomes
brancos da arte do país também estão na mostra com visões erotizadas,
exuberantes ou até românticas da negritude.
Pierre Verger,
Mario Cravo Neto e seu filho Christian Cravo retratam homens negros contra o
horizonte fulgurante de Salvador, a pele quase prateada, e mães de santo em
transe comandando terreiros.
Magnéticas, as
obras sustentam o imaginário de uma Bahia negra e fantástica, capaz de agradar
a plateia local e levantar questões sobre relações fraturadas e doídas dos EUA
com seus artistas negros.
Num alerta
contra a negritude idealizada e ultrajada, Tiago Santana raspou os cabelos
formando a palavra Cabula, bairro de Salvador onde 12 jovens negros foram
mortos pela polícia há três anos. O vídeo austero do artista contra fundo
branco encerra a mostra e desmonta sua queda por delírios e ilusões.
Texto:
Silas Martí | FSP
(JA, Fev18)
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