Detalhe da tela 'Hilas e as Ninfas' (1896), de J.W.
Waterhouse
Viver é
aprender: o Museu de Arte de Manchester removeu das paredes a pintura de J.W.
Waterhouse, 1849-1917, onde vemos Hilas (o mitológico companheiro de Jasão)
tentado pelas ninfas do lago. Motivos?
Sim, aqui
entre nós, a minha paciência para os pré-rafaelitas já deu o que tinha a dar.
Mas as razões para a remoção não são estritamente estéticas. Como lembra o ‘The
Guardian’, Waterhouse representou as divindades com ares pubescentes (e seios
destapados, naqueles tempos pré-sutiã), convidando o jovem Hilas para um ‘rendez-vous’
nas águas.
O diretor do
museu, cujo nome nem me interessa, disse que o objetivo nunca foi censurar.
Pelo contrário: ele quer despertar uma discussão sobre como exibir e
interpretar certas obras de arte no museu da cidade, sobretudo à luz dos
movimentos Times Up e #MeToo. As opiniões, como sempre, dividiram-se. E a
minha?
A minha,
lamento, não. À primeira vista, interpreto o gesto do diretor como uma forma
inteligente de publicitar o museu. É mais barato do que pagar uma campanha:
durante uns dias, meio mundo fala do quadro e o quadro, previsivelmente,
regressa ao lugar do crime depois da missão cumprida.
Mas, apesar do
meu optimismo assaz atípico, não consigo deixar de suspeitar que o diretor fala
a sério. E que o quadro foi mesmo removido por oferecer aos visitantes a
representação das ninfas ‘au naturel’.
Será possível?
Possível é.
Mas, em caso afirmativo, estamos na presença de um ‘novo’ capítulo na história
da arte, embora a palavra novo seja discutível. Já no século 8 metade da
cristandade também entendeu que certas imagens deviam ser destruídas. A ‘iconoclastia
bizantina’, promovida no Oriente por Leão 3º, 717-741, procurava impedir a
adoração de imagens religiosas.
A questão
durou um século -um século de fanatismo e violência brutais- até ao segundo
concílio de Niceia, em que a igreja fixou doutrina para a posteridade:
contrariamente a outras religiões, a adoração de figuras sacras era parte da
cultura da fé católica. Essa decisão permitiu, sem exagero, toda a história da
arte ocidental.
Passaram 12
séculos. As discussões bizantinas são, precisamente, bizantinas. Mas na
histeria contemporânea sobre imagens-que-podem-ofender-sensibilidades é
impossível não escutar uma ressonância pseudo religiosa, mesmo em cabeças que
se julgam modernas e ateias e progressistas.
Fatalmente,
não são. Em nome de uma ‘religião ideológica’, esses ‘crentes’ também querem
destruir certos ‘ícones’ que ‘ofendem’ as suas doutrinas. Os novos puritanos
são, como os iconoclastas do passado, literalistas, ou seja, incapazes de
entender a natureza simbólica, iconológica, de uma imagem.
Para eles, as
ninfas não são figuras mitológicas; são adolescentes contemporâneas que ali se
encontram para contemplação de ‘predadores’. O mesmo, imagino, deve servir para
anjos ou querubins, que serão em breve removidos de tetos ou catedrais para não
promoverem a pedofilia.
Claro que,
para sermos delirantes, podemos levar a farsa ainda mais longe. E dizer que o
problema das ninfas não está na carne; está no espírito: as ninfas representam
a submissão da mulher ao desejo do homem; na literatura greco-latina, elas
existem para servir o ‘hétero patriarcado’.
O problema
dessas leituras anacrônicas (e ignaras) é que elas permitem tudo e o seu
contrário. Um exemplo: será preciso lembrar que, no episódio de Hilas e das
ninfas, há versões em que a verdadeira vítima é ele? E que, assim sendo, Hilas
pode ser elevado a símbolo do abuso sexual sobre os homens?
Eis a ironia
da história: quando lemos a arte com os nossos próprios preconceitos, é
possível projetar sobre as coisas belas a sombra viscosa dos nossos fantasmas.
Texto: João
Pereira Coutinho | FSP
Imagem: Detalhe da tela 'Hilas e as Ninfas' (1896),
de J.W. Waterhouse
(JA, Fev18)
As ninfas podem ser seres mitológicos , mas a erotização,nudez, malícia , luxúria ,e como vc mesmo escreveu "convite a um ‘rendez-vous’ (bacanal)são atitudes , totalmente humanas e podem entrar em contradição com a ala mais conservadora que habita neste mundo !!...
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