Por volta de 2013, um artigo
escrito pelo engenheiro Manoel Henrique Campos Botelho fez um estrondoso
sucesso nas redes sociais e na internet, de maneira geral. Muitos portais
replicaram o mesmo texto, mas não foram atrás da fonte original. O artigo em
questão, publicado na revista Brasil Engenharia número 614, é brilhantemente
escrito por Manoel Henrique Campos Botelho.
Reproduzo-o abaixo com alguns
acréscimos de imagens.
Pode algo quebrado valer mais
que a peça inteira? Aparentemente não. Pela primeira vez na história da
humanidade contamos esse mistério. Foi entre as décadas de 40 e 50 do século
passado. Voltemos a esse tempo. A cidade de São Paulo era servida por duas
indústrias cerâmicas principais. Um dos produtos dessas cerâmicas era um tipo
de lajota cerâmica quadrada (algo como 20×20 cm) composta por quatro quadrados
iguais. Essas lajotas eram produzidas nas cores vermelha (a mais comum e mais
barata), amarela e preta.
Era usada para piso de
residências de classe média ou comércio. No processo industrial da época, sem
maiores preocupações com qualidade, aconteciam muitas quebras e esse material
quebrado sem interesse econômico era juntado e enterrado em grandes buracos.
Nessa época os chamados lotes operários na Grande São Paulo ou eram de 10×30 m
ou, no mínimo, 8×25 m; ou seja, eram lotes com área para jardim e quintal –
jardins e quintais revestidos até então com cimentado, com sua monótona cor
cinza.
Mas os operários não tinham dinheiro para comprar lajotas cerâmicas, que
eles mesmos produziam, e com isso cimentar era a regra.
Um dia, um dos empregados de
uma das cerâmicas e que estava terminando sua casa, não tinha dinheiro para
comprar o cimento para cimentar todo o seu terreno e lembrou-se do refugo da
fábrica – caminhões e caminhões por dia que levavam esse refugo para ser
enterrado num terreno abandonado perto da fábrica. O empregado pediu que ele
pudesse recolher parte do refugo e usar na pavimentação do terreno de sua nova
casa.
Claro que a cerâmica topou na
hora e ainda deu o transporte de graça, pois com o uso do refugo deixava de
gastar dinheiro com a disposição. Agora a história começa a mudar por uma coisa
linda que se chama arte. A maior parte do refugo recebida pelo empregado era de
cacos cerâmicos vermelhos, mas havia cacos amarelos e pretos também. O operário
ao assentar os cacos cerâmicos fez inserir aqui e ali cacos pretos e amarelos
quebrando a monotonia do vermelho contínuo.
É… a entrada da casa do
simples operário ficou bonitinha e gerou comentários dos vizinhos também
trabalhadores da fábrica. Aí o assunto pegou fogo e todos começaram a pedir
caquinhos, o que a cerâmica adorou, pois parte – pequena é verdade – do seu
refugo começou a ter uso e sua disposição ser menos onerosa.
Mas o belo é contagiante, e a
solução começou a virar moda em geral e até jornais noticiavam a nova mania
paulistana. A classe média adotou a solução do caquinho cerâmico vermelho com
inclusões pretas e amarelas. Como a procura começou a crescer, a diretoria
comercial de uma das cerâmicas, descobriu ali uma fonte de renda, e passou a
vender, a preços módicos é claro, pois refugo é refugo, os cacos cerâmicos.
O preço do metro quadrado do
caquinho cerâmico era da ordem de 30% do caco íntegro (caco de boa família).
Até aqui esta historieta é racional e lógica, pois refugo é refugo e material
principal é material principal. Mas não contaram isso para os paulistanos, e a
onda do caquinho cerâmico cresceu e cresceu e cresceu e – acredite quem quiser
– começou a faltar caquinho cerâmico que começou a ser tão valioso como a peça
íntegra e impoluta.
Ah, o mercado com suas leis
ilógicas, mas implacáveis… Aconteceu o inacreditável.
Na falta de caco as peças
inteiras começaram a ser quebradas pela própria cerâmica. E é claro que os
caquinhos subiram de preço, ou seja, o metro quadrado do refugo era mais caro
que o metro quadrado da peça inteira… A desculpa para o irracional (!) era o
custo industrial da operação de quebra, embora ninguém tenha descontado desse
custo a perda industrial que gerara o problema, ou melhor, que gerara a febre
do caquinho cerâmico. De um produto economicamente negativo passou a um produto
sem valor comercial, depois a um produto com algum valor comercial, até ao
refugo valer mais que o produto original de boa família…
A história termina nos anos
1960 com o surgimento dos prédios em condomínio. E a classe média que usava
esse caquinho foi para esses prédios; a classe mais simples ou passou a ter
lotes menores (4×15 m), ou foi morar em favelas.
A solução do caquinho deixou
de ser uma solução altamente valorizada. São histórias da vida que precisam ser
contadas para no mínimo se dizer:
A arte cria o belo, e o marketing tenta
explicar o mistério da peça quebrada valer mais que a peça inteira…
Oportunamente, um filósofo da
construção civil confessou-me: – Existe outro produto que quebrado vale mais
que a peça inteira por quilo. É a areia, que vem da quebra da pedra. A areia
fina é vendida mais cara que a areia grossa.
Fonte: Manoel Henrique Campos
Botelho, engenheiro consultor, escritor
e professor
(JA, Abr19)
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