Estranhas esculturas remetem à arte
erudita e debocham de cultura do selfie em museu de Paris
Um enorme cisne se aboletou
nos últimos dias na vitrine lateral do Pompidou, o museu de cartão-postal do
centro de Paris, e anda disputando a atenção de turistas e passantes com a
arquitetura industrial do prédio e com as esculturas multicoloridas da fonte
Stravinski, parada infalível para selfies
do lado de fora do endereço.
De gesso e isopor, a ave
acolhe em sua ‘penugem’ outras esculturas, de menor dimensão, mas igualmente
inspiradas por formas e volumes da natureza, sejam animais, frutas ou legumes.
A dona desse híbrido de
bestiário, horta e pomar é a paulistana Erika Verzutti, que realiza aqui sua
primeira grande exposição na Europa —e de cara em uma das catedrais da arte
moderna e contemporânea.
Para ocupar a galeria de
número três do museu, que fica no nível da rua no Marais e é quase toda
envidraçada, ela queria oferecer algo a quem estivesse do outro lado, uma
fulguração capaz de se produzir mesmo que num olhar de relance, mais apressado,
leigo.
‘O cisne, além de uma solução
para evitar aqueles pedestais tradicionais, é uma homenagem à rua’, diz ela. ‘A
ideia era proporcionar uma experiência a quem estivesse de passagem ali. O que
poderia ser assustador, porque tira você [o artista] do espaço protegido, do
branquinho da galeria, vira uma interação legal com a vida, com a cidade’.
Também no intuito de afagar
as retinas, a artista pintou de amarelo a porção superior das paredes do
espaço. O resultado, sobretudo à noite, em contraposição ao breu do mundo,
lembra um sol a abraçar as cinco ilhas em que estão distribuídas suas
esculturas sensuais de bronze, cerâmica, cimento e papel machê.
‘Erika é uma das que se
libertaram do imperativo da arte conceitual ligada a novas tecnologias, fria’,
afirma a curadora da mostra, Christine Macel, que já havia escalado a artista
brasileira para a mostra principal da Bienal de Veneza de dois anos atrás.
‘Não há só vídeo político ou
documentário a se fazer hoje. Esses não são os únicos caminhos possíveis’,
prossegue. ‘O trabalho com a matéria viva também pode ser muito interessante’.
Macel lembra que, no Brasil,
o trabalho de Verzutti também se insere na contracorrente, o que gerou algum
ruído de recepção, sobretudo em sua fase inicial, há cerca de duas décadas.
‘Ela flertava com o
surrealismo de Tarsila do Amaral e Maria Martins em um momento em que a
abstração geométrica, tributária do neoconcretismo, era a veia dominante’.
Às linhas apolíneas e formas
perfeitamente simétricas Verzutti prefere a sinuosidade voluptuosa de
carambolas, bananas, berinjelas, romãs, cocos, abacaxis. No lugar de polígonos,
inventa pavões de papel machê, cães sem
cabeça, porcos de madeira, tartarugas de pedra.
Não há temas explícitos a
englobar as diferentes seções desse mostruário vegetal e bestial, apenas
famílias mais ou menos delimitadas (e mais ou menos cifradas), com nomes como ‘Tarsila’,
‘Missionários’ ou ‘Brasília’.
‘O fazer artístico consiste,
para mim, em deixar coisas novas acontecerem, deixar a magia se produzir. Às
vezes, o tema é desnecessário’, diz Verzutti, que, antes de Paris e Veneza,
também expôs na Bienal de São Paulo e no Guggenheim, em Nova York.
‘No início, sempre se trata
de como representar algo que já é bonito na natureza. Entalho, moldo, pinto, às
vezes os três, às vezes só um. As opções engendram uma nova natureza’.
Nessa lógica, o processo e
sua cadência de tentativas e erros, hesitações e descartes são incorporados à
apresentação final das obras. Ou seja, o público pode contemplar vestígios de
obras nunca concluídas, esboços abandonados a meio caminho —ou mesmo
experimentações simples com a matéria não concebidas para serem mais do que
isso.
A abordagem genealógica fica
evidente na ilha ‘Cemitérios’, de nome autoexplicativo. Mas há também
ancestralidade e uma certa ideia de linhagem na base de obras como ‘Avô’, a
primeira escultura de Verzutti em papel machê, de
2014, e do próprio cisne majestoso que os pedestres para lá do vidro fitam
noite e dia —que atende por ‘Avó’.
A prole pluriforme se espalha
pelas ilhas-continentes da galeria, que abrigam também o embrião de novas gerações,
ovos de diferentes tamanhos. Fazer arte, para a escultora, é quebrar a casca
para dar a ver o que está ainda em latência, promessa.
Além dos acenos a Tarsila do
Amaral e Maria Martins, Verzutti polvilha suas criações com referências ao
pintor americano Jasper Johns, um dos maiorais da arte pop, e ao francês Marcel
Duchamp, pai dos 'ready-mades'.
A languidez da deusa Vênus,
arquétipo-chave na história da arte, é encarnada em totens que invocam formas
de frutas para extrair charme da matéria dura do bronze.
'Não me interessa só
estabelecer uma relação narrativa com as coisas. Gosto do que é tátil,
sensorial, da relação que a cor e a textura estabelecem com o corpo', diz
Verzutti.
A mostra no Pompidou, como o
cisne que se exibe generosamente para olhares externos, vai além do repertório
erudito. Por trás da única divisória a cortar a galeria, como se se adentrasse
o quarto da brasileira, surge uma intimidade descontraída, galhofeira.
Ali, um conjunto de obras
brinca com os códigos da cultura da imagem, tira sarro da frivolidade das redes
sociais. No alvo, o mal disfarçado narcisismo dos selfies na linha 'hoje acordei assim' e o mundo
edulcorado das blogueiras de moda e de seus tutoriais de maquiagem.
Mas também os clichês
sensuais que rondam a representação feminina. Ou ainda a polêmica que em 2015
consumiu neurônios e alimentou debates intermináveis —afinal, o vestido era
branco e dourado ou azul e preto?
'Isso é o que mais me
interessa hoje, essa cultura de Instagram, de compartilhamento de
imagens', afirma Verzutti. 'A arte conceitual determina que se siga
sempre a mesma regra, mesmo que você a tenha inventado: Eu trabalho assim.
Para mim, é essencial buscar em fontes diferentes, ir alternando
referências'.
Em Paris, ela anda fascinada
pelas confeitarias e suas vitrines cobertas de bolos quadrados. ‘Às vezes, a
coisa já surge pronta na sua frente. É só pegar, se apropriar’.
Erika
Verzutti
Centro Georges Pompidou, Paris. Até 15/4
Fonte: Lucas Neves
| FSP
(JA, Fev19)
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