Poucos dias e centenas de imagens de
Vermeer, Escher, Rembrandt e Elsken
Amsterdã, 27 de outubro - Com poucos dias de
atraso, deu para comemorar o 350º aniversário da morte de Rembrandt no
Rijksmuseum, onde está o núcleo da sua obra. De quebra, acompanhou-se ao vivo a
restauração do seu quadro mais famoso, ‘A Ronda Noturna’, de 1642.
Ao usar computadores,
estetoscópios eletrônicos, infraluz, raios laser e tudo o que há em matéria de
parafernália tecnológica, além de solventes e tintas especialmente inventadas,
a restauração escancara o erro risível do título da tela: essa ronda noturna
ocorre de dia.
Vinda do canto superior
esquerdo, a luz do sol se derrama sobre a mão estendida do chefe dos
milicianos, projetando sua sombra na túnica do lugar-tenente da tropa.
Posterior à morte de Rembrandt, o título errôneo evidencia a força do seu
claro-escuro, que não tem nada de realista.
Atenção: esses milicianos não
estão numa live, à la Bolsonaro, apesar de o quadro mostrar um disparo de
arcabuz. Para construir sua imagem pública, cada um dos 18 burgueses
pagou um dinheirão (100 florins) para serem pintados por Rembrandt, que lhes
conferiu dignidade.
28 de outubro -
Leonardo? Picasso? Esquece: o pintor mais popular do mundo é Van Gogh. Ao
contrário do que ocorre com ‘Mona Lisa’ e ‘Guernica’, não há um quadro que seja
imediata e unanimemente associado a ele. Um dos ‘Girassóis’, algum
‘Autorretrato’?
Sua extraordinária
exuberância faz com que o Museu Van Gogh seja o lugar ideal para apreciá-lo.
Acompanha-se sua maturação e versatilidade; vai-se do rude ‘Comedores de
Batata’ aos requintes do impressionismo e da arte japonesa; da pobreza à
solidão e à prolífica loucura final.
Além de ‘Campo de Trigo sob
Nuvens de Tempestade’, o que mais impressiona é a carta na qual descreve ‘A
Rua’: ‘A casa e seus arredores sob um sol sulfúrico e um céu de cobalto puro’.
Sendo que, no quadro, o sol não pinta, é enxofre na fachada da casa com janelas
esmeralda.
Roterdã, 29 de outubro - ‘Lust
for Life’, no Nederlands Fotomuseum, expõe um panorama pulsante do
fotojornalismo: imagens dos anos 1960 de Ed van der Elsken. Como nelas há nudez inocente,
vapor barato, suor, protesto, estupor e alegria. ‘Tesão pela Vida’ é o título
ideal.
30 de outubro -
Por ser um grande porto, Roterdã foi posta abaixo pelos bombardeios nazistas.
Ou seja, para a arquitetura contemporânea, é uma cidade de tirar o fôlego.
Estão ali as casas-cubo, a ponte Erasmus, o Markthal, a Estação Central e De
Rotterdam, de Koolhaas.
Haia, 31 de outubro - O Museu Escher dirime eventuais preconceitos.
Escher não era um ilustrador de truques ópticos. Era geômetra, pensador,
matemático, artesão e inventor de mão cheia. Mas fica a dúvida: fazia arte?
Haia, 1º de novembro - Mauritshuis
—Casa de Maurício— é uma mansão construída no auge do Século de Ouro holandês,
o 17,
pelo príncipe Maurício de Nassau-Siegen.
Como se endividou para
construí-la, Maurício aceitou o convite da Companhia das Índias Ocidentais para
ocupar terras no Novo Mundo e guerrear contra portugueses e espanhóis. Imagens
daquela paisagem remota estão numa salinha com meia dúzia de pinturas de
Eckhout e Rugendas.
Poucos a visitam e ninguém
presta atenção à acanhada placa na qual, canhestramente, a Mauritshuis meio que
pede desculpas pela tortura, escravidão e morte de milhares de pessoas. Mas
nunca que a hipocrisia irá redimir as vítimas do capitalismo mercantil.
A Casa de Maurício abriga ‘Diana
e suas Ninfas’, ‘Menina com um Brinco de Pérola’ e o quadro que Proust achava
“o mais bonito do mundo”, o único do qual Joyce tinha uma reprodução, ‘Vista de
Delft’. São três das 30 telas da obra mínima e detalhista de Vermeer (que os
holandeses pronunciam ‘vermír’).
Pintor de interiores, seus
quadros tão-somente aludiam ao mundo. A luz que entra pela janela; os mapas e
globos terrestres; as cartas mandadas por gente que estava longe; o chapéu de
pele de castor, bicho que só existia no Novo Mundo —e portanto fora obtido em
meio à empreitada colonial.
‘Vista de Delft’ é seu único
trabalho que contempla o mundo lá fora, a cidade onde nasceu e morreu. Como
mostra o relógio na torre da igreja, são 7h da manhã. Atracados na margem, barcos parecem
prontos para zarpar rumo a mares longínquos. Para o Brasil inexistente?
Delft, 2 de novembro - Enterrado na Igreja Velha, Vermeer jaz sob uma
placa de mármore pregada no chão. Ao sair, no poente, uma impressão de paz
paira no ar. O indivíduo se amolda ao mundo. Viver é bom.
Fonte: Mario Sergio Conti, Jornalista, é autor de ‘Notícias
do Planalto’ | FSP
(JA, Nov19)
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