Segundo Pierre Le Guennec, o pintor
espanhol o presenteou com 180 obras
Two Women running on the Beach |
Certo dia de setembro, em
2010, um homem que disse ter trabalhado como eletricista para Pablo Picasso foi
ao escritório que administra o espólio do artista, em Paris, levando uma mala
que continha 271 obras de arte do espanhol.
O eletricista, Pierre Le
Guennec, havia viajado de sua casa no sul da França a Paris, acompanhado por
sua mulher, Danielle. Ele disse que desejava autenticar 180 aquarelas,
litogravuras e colagens cubistas, bem como dois cadernos contendo 91 desenhos.
O tesouro estava em sua
garagem havia quase 40 anos, disse Le Guennec -Picasso o havia presenteado com
as obras décadas antes.
Assim começou uma saga que
durou quase dez anos e que envolveu um processo judicial que afirmava que as
peças eram ‘bens roubados’; a polícia iniciou uma investigação; os tribunais
ouviram depoimentos contraditórios; e múltiplos recursos e audiências
conduziram os réus e os herdeiros de Picasso ao mais alto tribunal da França.
Pierre Le Guennec deixa tribunal em Lyon, em foto de setembro de 2019 |
Tudo isso culminou na semana
passada em uma decisão por um tribunal francês, que confirmou a condenação de
Le Guennec e sua mulher por receptação e ocultamento de obras de arte roubadas
de Picasso.
Foi a terceira condenação
para o casal, mas Le Guennec e sua mulher, que têm 80 e 76 anos,
respectivamente, não cumprirão sentenças de prisão. Os dois receberam sentenças
de prisão de dois anos, mas seu cumprimento foi suspenso.
Eles não estavam presentes
para ouvir o veredicto final. Le Guennec declarou em entrevista por telefone no
sábado que o casal havia sido informado da decisão por vizinhos, e por um
artigo de jornal.
O casal sempre negou ter
roubado as obras. Le Guennec trabalhou como eletricista e fazendo serviços
gerais em diversas das casas de Picasso no sul da França, no começo da década
de 1970, consertando um forno e instalando um sistema de alarme em pelo menos
uma propriedade, entre outras tarefas.
Danielle Le Guennec disse ao
The New York Times em 2010 que ‘meu marido estava se preparando para ir embora’,
certo dia, quando Picasso lhe deu ‘uma caixa’. Ela acrescentou que o artista ‘nunca
explicou coisa alguma’.
Entre as peças estavam nove
raras colagens cubistas, uma pintura da renomada fase azul de Picasso,
aquarelas, litogravuras e dezenas de desenhos em cadernos. Seu valor foi
estimado em dezenas de milhões de dólares, ainda que não tenha acontecido uma
avaliação precisa, de acordo com Jean-Jacques Neuer, advogado do filho de
Picasso. As obras agora estão alojadas no Banque of France.
Le Guennec disse que foi ao
escritório em Paris em 2010 porque havia sido informado recentemente de que
tinha câncer, e queria garantir a proveniência das obras de arte para seus dois
filhos.
O filho do artista, Claude
Ruiz-Picasso, e o administrador do espólio de Picasso ficaram espantados e
intrigados, disse Neuer à imprensa, na época.
Contemplando as obras não
assinadas e percebendo que eram trabalhos do famoso artista espanhol, os dois
logo desenvolveram suspeitas.
Ruiz-Picasso sabia que seu
pai, um gênio temperamental, que morreu em 1973, havia sido um colecionador
inveterado que só dava de presente obras produzidas recentemente, e que
costumava assinar as peças que presenteava.
‘Se você procura os
administradores do espólio de Picasso e lhes diz que essas 271 obras dele
caíram do sótão, ou que as encontrou numa feirinha, ninguém acreditará’, disse
Neuer em entrevista por telefone no sábado.
Ele disse que a decisão
judicial da semana passada representava ‘o fim do acobertamento’.
As obras de arte levadas por
Le Guennec aos administradores do espólio foram realizadas entre 1900 e 1932,
de acordo com estimativas.
Anne Baldassari,
ex-presidente do Museu Pablo Picasso em Paris, disse no primeiro julgamento do
casal, em 2015 que ‘o Picasso que conheci não abriria mão de suas obras. Seria
como arrancar a própria pele’.
Le Guennec mais tarde mudou
sua história, dizendo que Jacqueline Roque, a última mulher de Picasso, e não o
artista, lhe havia dado as obras.
‘Foi em 1971, Madame me
chamou quando eu estava indo embora da casa de Picasso’, ele disse no sábado,
se referindo a Roque. ‘E ela disse: leve isso; são para você’.
Danielle Le Guennec
acrescentou na entrevista que o casal declarou inicialmente que havia recebido
as obras de Picasso por instrução de Roque.
Eles também disseram que as
obras ficaram intocadas em sua garagem por mais de quatro décadas. Mas Neuer
argumentou no tribunal e na entrevista do sábado que, como as obras estavam em
ótimo estado de conservação, não poderiam ter passado muito tempo armazenadas
em uma garagem no sul da França, onde provavelmente teriam se deteriorado.
Segundo Neuer, mais
contradições se seguiram, e Guennec afirmou ter catalogado todas as obras
sozinho. Mas Baldassari afirmou que as descrições e comparações tinham ‘nível
acadêmico’.
Arlequim Pensativo, 1901 |
No caso de um desenho, por
exemplo, Le Guennec traçou um paralelo com ‘Arlequim’, um quadro a óleo de
Picasso que hoje faz parte do acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York
(MoMA).
Mas quando Neuer pediu a Le
Guennec, no julgamento do casal em 2015, que citasse a peça mais famosa de
Picasso no acervo do MoMA, o ex-eletricista não sabia o que era o museu
nova-iorquino.
Ele e a mulher foram
condenados naquele ano.
Uma instância superior
sustentou o veredicto em 2016, mas a decisão foi mais tarde derrubada pela
Corte de Cassação, o mais alto tribunal francês. O casal Le Guennec não pode
recorrer do veredicto final, que foi pronunciado na terça-feira pelo tribunal de
recursos de Lyon.
Neuer especulou que
comerciantes de arte, provavelmente radicados na Suíça, usaram Le Guennec da
mesma forma que traficantes empregam pessoas para carregar drogas.
Le Guennec definiu esse
cenário como ‘ridículo’, e se declarou decepcionado pelo veredicto.
De sua experiência como homem
de serviços gerais para Picasso, ele disse que ‘ainda assim foi fabuloso e
extraordinário que alguém como eu, uma pessoa comum, tenha podido conhecer
gente como aquela’.
Fonte: Elian
Peltier| NYT / FSP
(JA, Nov19)
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