A estátua ‘O Beijo Eterno’ foi inspirada
em um poema de Olavo Bilac
'Beijo Eterno', 1920, de William Zadig, 1884-1952, escultor sueco |
Ela tem uma história de vida
inusitada para uma estátua.
Mas é difícil saber o motivo
olhando para ela agora, em uma tarde ensolarada de quinta-feira no centro de
São Paulo. Não existe qualquer placa explicativa sobre aquele beijo. Ou o que
ela enfrentou para estar ali: a censura, o discurso de um político indignado,
abaixo-assinado de moradores, fúria e preconceito de parte da imprensa
paulistana.
Enquanto os alunos da
tradicional Faculdade de Direito da USP, conhecida como Largo São Francisco, entram no prédio
para assistir às aulas, o monumento ‘O Beijo Eterno’ na entrada parece apenas o
que é de fato: uma estátua de bronze com um homem e uma mulher, nus,
beijando-se.
Considerada ‘imoral’ nos anos
1960,
ela chegou a ser retirada do espaço público algumas vezes, porque representava
um ‘acinte ao decoro e aos bons costumes do paulistano’.
Uma história parecida ocorreu
décadas depois, no início de setembro deste ano, quando a representação
artística de outro beijo, dessa vez, entre dois personagens gays de uma
história em quadrinhos, sofreu uma tentativa de censura por parte do prefeito
do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB).
O político e ex-pastor
evangélico considerou a cena ‘inadequada’ para menores de idade, e tentou
retirar a obra da Bienal do Livro, embora a lei não diga que um beijo, hétero
ou homossexual, seja inapropriado para crianças e adolescente.
Porém, a censura ao livro foi
proibida por uma decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias
Tofolli — que, coincidentemente, formou-se em Direito no Largo São Francisco,
onde atualmente se encontra O Beijo Eterno.
O prefeito do Rio de Janeiro,
Marcelo Crivella (PSC), disse que o beijo entre dois personagens gays em uma
HQ era impróprio para menores de idade
A história de um beijo
A estátua foi criada em 1922 como parte
de um grande monumento em homenagem a Olavo Bilac, 1865–1918, poeta
parnasiano bastante popular no início do século 20.
Antes de morrer, o escritor
havia se tornado um ídolo dos estudantes do Largo São Francisco. Embora nunca
tenha se matriculado no curso de Direito, chegou a frequentar algumas aulas na
faculdade por dois ou três anos.
Além da literatura, ele
ganhou fama entre universitários por um motivo político, segundo Heloisa
Barbuy, professora de museologia da USP e autora do livro ‘As Estátuas da Faculdade de
Direito’ (Ateliê Editorial).
‘Na faculdade, ele ficou
famoso por ser um dos principais líderes do movimento nacionalista, que, na
época da Primeira Guerra Mundial, teve bastante importância no país’, explica
Barbuy. ‘Em 1915, Bilac chegou a fazer um discurso na faculdade que
ficou muito famoso, emocionando as pessoas. Décadas depois, os estudantes ainda
citavam de cor parte desse texto’.
Quando Bilac morreu, em 1918, um grupo
de estudantes quis homenagear o poeta com um monumento público. Para isso,
fizeram um financiamento coletivo para bancar o projeto, um conjunto de oito
figuras: entre elas, Pátria e Família e O Caçador de Esmeraldas. Já O Beijo
Eterno é uma representação de um poema homônimo de Bilac.
O trabalho foi dado ao
escultor sueco William Zadig. Na última hora, entretanto, faltou dinheiro para
completar as estátuas, mas os alunos da Faculdade de Direito foram socorridos
pelo então presidente da Liga Nacionalista, Frederico Vergueiro Steidel. A
entidade ‘passou o chapéu’ no comércio paulistano e em redações de jornais,
para arrecadar o valor que faltava.
O poeta Olavo Bilac, 1865-1918, nunca cursou Direito, mas virou um ídolo no Largo São Francisco |
O enorme monumento foi
inaugurado na confluência das avenidas Paulista, Consolação e Angélica, em 7 de setembro de
1922,
para coincidir com o centenário da Independência do Brasil.
‘Inicialmente, a obra foi
muito elogiada nos jornais. Mas, depois de alguns meses, começaram as críticas’,
diz Heloisa Barbuy. ‘Uma das publicações da época, de ‘A Gazeta’, criou uma
campanha contra o monumento e pediu inclusive sua demolição, dizendo que ele
não tinha qualidades estéticas’.
Havia também reclamações pelo
fato de o escultor ser estrangeiro, embora Zadig já morasse no Brasil havia
anos, e fosse casado com uma brasileira. ‘Era um momento em que o nacionalismo
estava em todas as discussões, inclusive na arte. Havia um sentimento de
valorização de aspectos nacionais. A Semana de Arte Moderna de 1922 tinha
acontecido havia poucos meses, reafirmando essa característica, mesmo que na
época ela não tenha tido a importância que se dá hoje’, diz Barbuy.
Por outro lado, o jornal A
Gazeta afirmou que ‘O Beijo Eterno’ não tinha qualquer relação com o famoso
poema de Bilac, porque a estátua representava um encontro amoroso entre uma
índia e um português, cena que não é citada em nenhum dos 59 versos da
poesia.
Essa foi a primeira vez que
alguém interpretou a personagem feminina do monumento como uma índia — talvez
pelo formato de seu cabelo, e por uma faixa ao redor da cabeça. O homem tinha
característica caucasiana e, por isso, talvez tenha ganhado a alcunha de
europeu.
‘Não se tem informação de que
o artista queria retratar um beijo inter-racial entre uma índia e um branco,
mas foi assim que a obra ficou conhecida. E isso foi tratado de maneira
preconceituosa na imprensa. ‘A Gazeta’ chamou a personagem de bugre, uma palavra
pejorativa para se referir aos indígenas’, diz Barbuy.
Uma multidão acompanhou a inauguração do monumento a Olavo Bilac, em 7 de setembro de 1922 |
Não há registros de que, na
década de 1920, alguém tenha se escandalizado com o fato de a dupla
estar nua. Reclamações contra o ‘conteúdo sexual’ só viriam décadas depois.
A historiadora Heloisa Barbuy
acredita que a campanha contra o monumento a Bilac, nessa fase, tinha mais a
ver com motivações políticas, que são muito difíceis de compreender agora,
quase um século depois. ‘Era um momento conturbado, com a convergência de
muitos grupos políticos. Talvez, essa campanha tenha ocorrido para atacar
Frederico Vergueiro Steidel, presidente da Liga Nacionalista, que participou
ativamente da confecção da obra’.
O monumento foi finalmente
desmontado em 1935, quando a prefeitura mudou o trânsito na região.
Algumas das peças foram levadas para outros pontos da cidade.
Por sua vez, ‘O Beijo Eterno’
foi parar em um depósito da prefeitura, onde permaneceu por muitos anos.
Até que apareceu Jânio
Quadros.
Os bons costumes dos moradores do
Cambuci
Provavelmente, quando assumiu
o cargo de prefeito de São Paulo em 1953, Jânio Quadros conhecia a história de ‘O Beijo Eterno’,
pois ele também havia se formado em Direito no Largo São Francisco, onde a
estátua era célebre.
‘Em 1956, ao ver a
obra parada em um depósito, Jânio decidiu levá-la para o Cambuci, bairro onde
ele morava’, conta Giselle Beiguelman, professora da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP, e autora do livro ‘Memória da amnésia: Políticas de
esquecimento’ (Edições Sesc), lançado recentemente.
Segundo uma reportagem do
jornal O Estado de São Paulo na época, a prefeitura tinha instalado, anos
antes, a imagem na entrada do colégio estadual Fernão Dias Paes, em Pinheiros.
Mas ela ficou na escola por um brevíssimo período, porque os pais dos
estudantes se mobilizaram para retirá-la. Eles diziam que a figura era ‘imoral’.
Já no Cambuci, boa parte dos
moradores também não ficou nada contente com a presença da escultura. Foi
organizado um longo abaixo-assinado para que a obra fosse removida
imediatamente do bairro, alegando que ela atentava contra os bons costumes.
O então prefeito, que depois
viraria presidente da República, não resistiu à pressão e retirou o monumento
das ruas do Cambuci. Censurado, ‘O Beijo Eterno’ voltou ao depósito da
prefeitura, onde não podia ser visto pelo grande público.
Mas, de fato, a estátua
mostra muita coisa?
A estátua foi censurada por seu 'conteúdo' impróprio aos bons costumes do paulistano |
O personagem masculino está
ligeiramente curvado sobre a moça, com uma das mãos nas costas dela e outra
mais abaixo, na cintura. Já a mulher se estica para alcançar a boca do amante,
colocando o braço direito ao redor da cabeça dele, que, aliás, parece
desproporcionalmente grande em relação ao resto do corpo.
Ambos estão nus, com
seios, nádegas e pênis (não ereto) à mostra. A cena congelada em bronze poderia
representar o momento anterior ao início de uma relação sexual.
Hoje em dia, nossa exposição
a conteúdos eróticos e pornográficos é muito mais frequente, então a estátua
não parece ‘nada demais’, tanto que ela passa quase despercebida no calçadão
que se estende à entrada da Faculdade de Direito da USP. Ninguém
para na sua frente e diz, escandalizado: ‘que absurdo, temos aqui uma cena de
sexo’.
Mas nos anos 1950, década
anterior à chamada revolução sexual, a pornografia ou cenas eróticas não eram
tão acessíveis, menos ainda no espaço público. Então, para um morador do
Cambuci daquela época, talvez ‘O Beijo Eterno’ fosse um pouco demais. Não que a
história da arte não tenha há séculos milhares de quadros e monumentos com
personagens nus, diga-se, mas é possível que eles choquem menos estando dentro
de um museu.
Para Beiguelman, não apenas a
cena sexual causou rebuliço, mas o contexto dos personagens. ‘Na minha
concepção, além dos corpos nus, tinha essa situação de ser um homem branco com
uma indígena. Isso era um problema para os padrões morais da época - as pessoas
consideravam um relacionamento como esse ofensivo e censurável. A cidade era
mais preconceituosa, e as questões de gênero e raça eram mais veladas’, diz.
A professora cita outras
estátuas que passaram por processo semelhante, de perseguição e censura, em São
Paulo, mas nenhuma foi ‘tão polêmica’ quanto ‘O Beijo Eterno’.
‘Bem ao lado dela, no Largo
Francisco, há o ‘O Menino e o Catavento’, que também foi removido uma vez
porque ele está nu. Há também ‘O Fauno’, do (artista
modernista) Victor Brecheret, que foi
retirado de uma praça no Centro, depois que algumas pessoas começaram a fazer
um culto noturno em frente à obra’, explica.
‘O Monumento a Garcia Lorca
virou alvo do Comando de Caça aos Comunistas, durante a ditadura militar,
porque ele homenageava o poeta espanhol, que era comunista e homossexual’.
O incrível retorno de O Beijo Eterno
Quando a estátua foi retirada novamente das ruas, os alunos da Faculdade de Direito da USP decidiram agir |
Dez anos depois da censura no
Cambuci, em 1966, o então prefeito José Vicente Faria Lima decidiu
instalar ‘O Beijo Eterno’ na entrada do túnel da avenida 9 de Julho, no
centro da cidade. Mas houve nova resistência.
‘Dizendo-se portador de
memorial assinado por senhoras residentes da 9 de Julho, o sr. Antônio
Sampaio, membro da Arena (partido da
ditadura), solicitou a retirada da
estátua. A solicitação foi feita por meio de um discurso na Câmara’, escreveu o
‘O Estado de São Paulo’ em 8 de outubro de 1966. ‘Segundo o vereador, a estátua constitui um verdadeiro
acinte ao decoro e aos bons costumes do paulistano'.
‘O Beijo Eterno’ então voltou
a ser escondido no depósito, segundo o jornal. Mas, dessa vez, uma reviravolta
selaria o destino da escultura: os estudantes da Faculdade de Direito decidiram
agir. Os jovens fretaram um caminhão, invadiram o espaço da prefeitura, e
furtaram a figura de bronze de 400 quilos.
Já o jornal Folha de São Paulo
contou a história de uma maneira um pouco diferente: segundo a publicação, a
estátua não chegou a sair da entrada do túnel.
Antes de ir para o depósito
municipal, ela foi resgatada pelos universitários.
Seja como for, momentos
depois, ela foi instalada em frente ao campus. Os alunos ainda fizeram uma
ameaça: se a estátua fosse retirada do Largo São Francisco, iriam cobrir com
panos todas as outras representações de pessoas nuas que houvesse na cidade.
‘Os estudantes se sentiram no
direito de pegar a estátua, porque ela é um patrimônio da faculdade. Foi Largo
São Francisco que financiou sua construção’, diz José Carlos Madia de Souza,
presidente da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da USP.
Último verso
Desde 1966, estátua está no Largo São Francisco |
Depois do furto, ‘O Beijo
Eterno’ não saiu mais do calçadão em frente à faculdade: passou incólume até
pela ditadura militar, que tinha uma máquina ativa de censura à liberdade de
expressão e artística.
Hoje, ela é só mais uma
estátua no centro de São Paulo, e sua história ficou nos livros e nos arquivos
de jornais. ‘Os estudantes passam por ela e nem sabem o que aconteceu. Mas isso
é normal, o tempo passa e as pessoas se esquecem’, diz Madia de Souza.
Ao menos que haja outra
reviravolta ou uma nova onda de censura, os dois amantes ficarão expostos por
ali, paralisados em um beijo moldado em bronze para ser eterno, como queria o
último verso do poema de Olavo Bilac:
"Quero
um beijo sem fim
Que dure a
vida inteira e aplaque o meu desejo!
Ferve-me o
sangue: acalma-o com teu beijo!
Beija-me
assim!
O ouvido
fecha ao rumor
Do mundo, e
beija-me, querida!
Vive só para
mim, só para minha vida,
Só para o
meu amor!"
Fonte: Leandro Machado, BBC
News Brasil-SP
(JA, Nov19)
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