Há 20 anos, Hollywood viveu um de seus
momentos mais férteis e lançou bases para o cinema de hoje
‘Matrix’, Keanu Reeves |
Foi o ano do bug do milênio e também de certo ‘bug’ na
indústria do cinema. Uma confluência de fatores fez de 1999 um ano bastante
fértil em Hollywood. Pense em ‘Matrix’, ‘O Sexto Sentido’, ‘Clube da Luta’, ‘Beleza
Americana’—títulos originais e que ressoam até hoje.
Aqueles 12 meses foram o auge de fenômenos que vinham
fermentando ao longo daquela década e que são indispensáveis para compreender a
produção feita em 2019.
O cinema independente, que havia ganhado força no
começo dos anos 1990, virou mainstream dez
anos depois, e fez despejar uma torrente de ‘filmes médios’, isto é, que não
são nem blockbusters nem longas de nicho.
O início da era digital mudou a forma de promover
lançamentos, hoje a principal engrenagem publicitária, e influenciou tramas e linguagem.
Foi em 1999 que os irmãos Wachowski —agora irmãs
Wachowski— apresentaram ‘Matrix’, hit que ainda inspira cópias e paródias de
suas cenas de ação em câmera lenta.
Charlie Kaufman, um dos roteiristas mais originais de
Hollywood, teve sua grande estreia no cinema com ‘Quero Ser John Malkovich’,
outro título que causava uma pane na cabeça do espectador ao questionar a noção
do que é realidade. ‘Magnolia’, estruturado em vários núcleos narrativos,
firmou Paul Thomas Anderson como um dos principais cineastas americanos.
‘Clube da Luta’, Brad Pitt |
‘Clube da Luta’ consolidou o status cult de David
Fincher e, no Brasil, ganhou particular notoriedade após um atirador entrar num
cinema de São Paulo e metralhar as pessoas.
‘De Olhos Bem Fechados’, Nicole Kidman e Tom Cruise
E Stanley Kubrick, expoente de outra geração, teve no
elogiado “De Olhos Bem Fechados” sua obra derradeira.
‘Sexto Sentido’, Haley Joel Osment |
Nenhum, contudo, superou o inesperado êxito de “O
Sexto Sentido”, suspense lançado de forma discreta por M. Night Shyamalan,
diretor de origem indiana até então pouco conhecido e para quem os estúdios não
davam tanta bola. Tornou-se a segunda maior bilheteria do ano. Hoje, é muito
difícil encontrar alguém que não conheça a reviravolta que encerra o longa.
A perenidade dos filmes lançados em 1999 tem muito a
ver com uma postura dos estúdios em Hollywood na época. Apostando menos em
celebridades e mais em novos diretores e projetos mais ousados, assumiram
riscos que seriam impensáveis na indústria de 2019, tão atada a franquias e
adaptações de obras que já são conhecidas do público.
Isso não significa que aquele ano tenha sido prolífico
só em pérolas autorais. O cinema adolescente, que havia vivido o seu auge nos
anos 1980, voltou a viver um pico no período. E, curiosamente, veio a reboque
de fontes improváveis.
‘10 Coisas que Eu Odeio em Você’, Heath Ledger e Julia Stiles |
‘Segundas Intenções’ se esbaldava na intriga teen
tomando por mote a trama de ‘As Ligações Perigosas’, a obra epistolar de
Choderlos de Laclos. Já ‘10 Coisas que Eu Odeio em Você’ levava ‘A Megera
Domada’, de Shakespeare, para o universo colegial americano.
‘American Pie’, Eugene Levy e Jason Biggs |
‘American Pie’, ‘Nunca Fui Beijada’ e ‘Ela É Demais’
foram outros hits a formar filas.
Hoje, as sacadas desses filmes soam datadas. Não se
pode mais conceber uma trama em que uma menina malvestida precise se arrumar e
se maquiar para ser notada (‘Ela É Demais’) ou que seja correto que um garotão
contrate uma banda de fanfarra e pare o colégio com o único propósito de
constranger uma garota a sair com ele (‘10 Coisas que Eu Odeio em Você’).
Eram tempos em que filmes adolescentes eram
ambientados em cenários mundanos (como as escolas do subúrbio), e não distopias
encenadas em mundos fictícios de regimes tirânicos, como ‘Jogos Vorazes’, ‘Divergente’
e afins.
‘Noiva em Fuga’, Julia Roberts e Richard Gere |
Além disso, foi um ano em que a comédia romântica
ainda era um filão popular e rendia grandes retornos. Só Julia Roberts esteve
em duas, ‘Noiva em Fuga’ e ‘Um Lugar Chamado Notting Hill’ —respectivamente 9ª
e 11ª bilheterias americanas daquele ano.
De qualquer forma, 1999 foi a época em que a atual
estratégia de divulgação de filmes, online, começou a germinar.
O primeiro título a se aproveitar disso foi ‘A Bruxa
de Blair’. Lançado em julho, o filme não só originou uma linhagem de longas
terror na ideia da chamada ‘found footage’ (filmagem encontrada), como usou a
internet para criar burburinho
.
O site reunia boletins de ocorrência falsos sobre o
desaparecimento dos personagens do filme. A dúvida sobre se aquilo era ficção
ou realidade ajudou a obra a se tornar a 14ª mais vista do ano.
Hoje, a internet é indispensável à promoção do cinema.
Pense na estratégia meticulosa por trás do lançamento dos teasers da Marvel, por exemplo. Isso tem a ver com o boom dos
trailers de 20 anos atrás.
É claro que Hollywood já lançava mão do recurso havia
décadas, mas em 1999 estúdios notaram que se ia ao cinema para ver o trailer.
Isso, graças a ‘Star Wars: Episódio 1 - A Ameaça Fantasma’, o campeão de
bilheteria do ano.
A curiosidade em relação a como George Lucas retomaria
sua saga espacial 16 anos após o fim da trilogia original fez americanos
lotarem as sessões de ‘O Rei da Água’ e ‘Encontro Marcado’, antes dos quais o
trailer do novo ‘Star Wars’ havia sido programado.
Lançado na rede numa era pré-YouTube, o vídeo foi baixado 6,4 milhões vezes em três
semanas, o que fez Steve Jobs chamar aquilo de ‘o maior fenômeno de downloads
da história da internet’.
As sequências, por sinal, ganharam fôlego em 1999 e
provaram que, com um bom marketing, poderiam se tornar filmes-eventos, com
retorno por vezes superior aos originais —algo raro na época, quando
continuações faziam pouco mais da metade do que rendiam as bilheterias dos
primeiros longas.
Um caso interessante é o de ‘Austin Powers’, o agente
bestalhão vivido por Mike Myers. O primeiro filme, de 1997, teve um lucro
modesto (US$ 67 milhões no mundo), mas foi impulsionado pelos lançamentos em
VHS e DVD, que deram uma vida nova à produção. E a sequência veio logo, dois
anos depois, com um retorno quase cinco vezes maior.
‘Toy Story 2’ |
Já ‘Toy Story 2’ fez US$ 497 milhões no mundo todo,
contra os US$ 373 milhões do primeiro filme da franquia, de quatro anos antes.
Com tantos retornos, 1999 acabou com a má fama antes atribuída a sequências
cinematográficas.
Ainda assim, é interessante perceber como os maiores
sucessos da época vinham de ideias originais. Se compararmos as dez maiores
bilheterias de 1999 nos Estados Unidos, entre elas ‘O Sexto Sentido’ e ‘Matrix’,
às do ano passado —a maioria derivada de quadrinhos, como ‘Pantera Negra’ e ‘Vingadores’—,
vemos como os sucessos recentes são todos sequências de franquias ou reboots.
E as produções de duas décadas atrás, mesmo quando
eram adaptadas de outra obra, tinham cara de original.
‘Talentoso Ripley’, Matt Damon e Jude Law |
Casos como ‘Clube da Luta’, versão do romance de Chuck
Palahniuk, ou ‘O Talentoso Ripley’, originalmente um livro de Patricia
Highsmith, resistiram ao tempo e superaram o sucesso de seus originais porque
não foram exatamente fiéis às obras em que se basearam e criaram algo novo.
Não há uma fórmula para replicar o sucesso de 1999.
Mas, olhando em retrospecto, fica claro como a abertura da indústria para
linguagens e histórias originais fez germinar uma safra que sobreviveu por anos
a fio. Já no ano seguinte, um certo ‘X-Men’ abriu a porteira para uma nova leva
de super-heróis que até hoje não deixaram os cinemas.
Fonte: Guilherme Genestreti e Maria Luísa Barsanelli |
FSP
(JA, Jan19)
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