Em
livro, Victoria Eugenia Henao descreve saga de sua família com o quadro do
pintor surrealista
‘A Dança’ talvez não seja o melhor
quadro do surrealista espanhol Salvador Dalí, mas provavelmente é sua obra com
a história mais interessante.
'A Dança' (1957), quadro de Salvador Dalí |
A primeira versão decorava o Ziefgfeld
Theater, em Nova York, e posteriormente foi perdida no incêndio que destruiu a
casa de Billy Rose, o empresário teatral da Broadway, em Mount Kisco. Dalí fez
uma segunda cópia para Rose, que a vendeu a um vizinho da frente. A pintura
terminou na casa de Pablo Escobar, o traficante de drogas colombiano, cujo
império da cocaína o colocou entre as pessoas mais ricas do mundo, e cujas
campanhas de terrorismo paralisaram seu país.
Agora, uma visão do que aconteceu em
seguida ao quadro, também conhecido pelo título “Rock ‘n’ Roll”, é relatada em
um novo livro publicado em espanhol por Victoria Eugenia Henao, a mulher de
Escobar. No livro, ‘Mi Vida y Mi Cárcel con Pablo Escobar’ (A Minha Vida e a
Minha Prisão com Pablo Escobar), ela recorda seus sentimentos ao ver pela
primeira vez o trabalho de Dalí.
‘Foi incrível’, ela escreve. ‘Fiquei
impressionada com o movimento do casal por um deserto sem fim, sexual e onírico’.
Famosa imagem do traficante colombiano Pablo Escobar, feita pós ter sido preso em 1976 |
O mais importante é que o quadro se
tornou uma espécie de talismã para os familiares de Escobar, que escaparam por
pouco a um atentado contra sua casa em Medellín, ela relata, e mais tarde
serviu como uma espécie de ‘presente’ que, acredita Henao, pode ter salvado sua
vida e a vida de seus filhos.
Abaixo, um relato do percurso do
quadro, como descrito no livro.
NOVA YORK, 1944
A primeira versão de ‘A Dança’ era
conhecida como ‘Arte do Boogie-Woogie’, e era parte de uma série encomendada
por Rose para decorar o teatro Ziegfeld em sua produção de estreia, uma revista
musical intitulada ‘Seven Lively Arts’, encenada em 1944. Dalí criou pinturas
que refletiam sua visão da música, do teatro e de outras artes, em uma pequena
sala no teatro, cujo saguão os quadros mais tarde viriam a decorar.
A versão original do quadro, conhecida
como ‘Arte do Boogie-Woogie’, mostrava figuras alongadas semelhantes às da
versão posterior, mas o cenário era um saguão, não um deserto.
O quadro original mostrava diversas
figuras retorcidas e emaciadas entrelaçadas no que parecia ser mais um combate
que uma celebração, enquanto se moviam por um corredor ou túnel. Há uma tuba em
chamas entre elas, e figuras misteriosas contemplam a cena, ao fundo.
MOUNT KISCO, ESTADO DE NOVA
YORK, 1956
As obras mais tarde foram transferidas
para a casa de Rose, em Mount Kisco, um subúrbio de Nova York, e terminaram
destruídas no incêndio de 1956.
Quando Dalí descobriu que as peças
tinham sido destruídas, ofereceu-se para pintar novas versões pelo mesmo preço
das originais, como um sinal de gratidão ao patrono, Rose.
PORT LLIGAT, ESPANHA, 1957
Dalí pintou os quadros substitutos na
Espanha, em Port Lligat, onde vivia. O espanhol havia se tornado um pintor
conhecido internacionalmente, àquela altura, famoso por sua imprevisibilidade,
sua ousadia e sua mistura surreal entre o brutal e o divino.
A segunda versão do quadro era
ligeiramente diferente. Só havia duas figuras, e a tuba desapareceu. O pano de
fundo também mudou. Os dois dançarinos aparecem diante uma paisagem árida
típica das obras do pintor. Os quadros substitutos foram mais tarde
transferidos ao apartamento de Rose em Manhattan.
NOVA YORK, 1985
O homem que comprou o Dalí de Rose
leiloou a peça em 14 de maio de 1985, na Sotheby’s, em Manhattan. Henao não
deixa claro em seu livro se foi ela a compradora que pagou US$ 209 mil (US$ 490
mil em valores atuais) pelo quadro ou se ela adquiriu a peça mais tarde. Mas
por volta de 1988, o quadro estava na Colômbia, como parte da coleção que ela
estava criando.
Em seu livro de 512 páginas, Henao dá
a entender que a arte se tornou uma espécie de refúgio para ela, uma atividade
mais amena em uma vida muitas vezes envolta em violência e medo. Ela afirma que
não estava ciente da extensão dos crimes de Escobar. Mas não tenta negá-los, e
em entrevista a uma rádio colombiana no mês passado pediu desculpas pela dor
que seu marido causou.
Quanto à sua coleção de arte, ela
escreve que Escobar não ligava muito. Ele só se interessava por ‘antiguidades e
carros antigos’.
Henao colecionava peças de diversos
artistas, entre os quais o pintor Claudio Bravo, o pintor e escultor Fernando
Botero e o escultor Édgard Negret.
Mas adquirir o Dalí foi especialmente
importante, ela escreve, por conta da estatura do artista. ‘Parecia incrível
para mim’, ela escreveu, ‘que aos 22 anos de idade eu tivesse uma obra de arte
como aquela em casa’.
MEDELLÍN, COLÔMBIA, 1988
O apartamento dos Escobar ficava em El
Poblado, um bairro de Medellín. Henao conta que pendurou o Dalí em um espaço
que descreve como privilegiado, a biblioteca, onde a peça podia ser vista de
múltiplos ângulos.
O quadro estava lá em 1988 quando um
carro-bomba que tinha Escobar e sua família como alvos devastou o edifício.
Escobar não estava em casa, mas alguns parentes estavam, e fugiram de lá.
Cauca es uno de los bastiones de las Fuerzas Armadas Revolucionarias da Colombia (FARC) |
Dias depois do ataque, a irmã de Henao
voltou ao edifício, encontrou o quadro, intacto, e o recuperou, conta ela.
O quadro foi transferido para a casa
da irmã de Henao em outro bairro de Medellín. Mas aquela casa também foi
atacada, por um grupo paramilitar chamado Los Pepes, que odiava seu marido,
escreve Henao.
A casa foi incendiada em 1993, e Henao
conta que inicialmente presumiu que o quadro tivesse sido destruído. Mas os
incendiários tinham levado o quadro de Dalí, fato que ela descobriu depois que
seu marido foi morto, em dezembro daquele ano. Pouco mais tarde, ela disse ter
recebido uma mensagem de um intermediário de Carlos Castaño Gil, que com seu
irmão, Fidel, liderava Los Pepes.
Eles estavam dispostos a devolver o
quadro a Henao, já viúva, para ajudá-la a pagar os inimigos do marido. Mas ela
recusou porque lembrou de um conselho de Escobar, caso ela viesse a encontrar
situações perigosas. ‘No dia em que eu morrer’, ela recorda ter ouvido de
Escobar, ‘lhes dê tudo que tiver sobrado, para que eles não a matem e nem matem
nossos filhos’.
O gesto, ela conta, foi um do muitos
que fez para convencer os antigos inimigos de seu marido de que ela não
representava ameaça, e para compensá-los pelos custos de sua luta contra
Escobar. Ao que parece, a ideia funcionou. Henao e sua família puderam deixar a
Colômbia em segurança, e mais tarde se radicaram na Argentina.
‘A última coisa que sei sobre ‘A Dança
do Rock and Roll’ foi que Carlos havia ligado a diversos comerciantes de arte
em Bogotá e pedido a ajuda deles para vender a peça a um colecionador
internacional’, ela escreveu.
FUKUSHIMA, JAPÃO, 2018
Em 1994, ‘A Dança’ foi leiloada pela
Christie’s, em Londres. A seção sobre proveniência da obra no catálogo citava
Billy Rose e um segundo colecionador como proprietários anteriores, mas não
identificava o vendedor e nem mencionava Escobar. A casa de leilões estimava um
valor de US$ 625.195 para o quadro, que terminou sendo arrematado, a preço
desconhecido, pelo empresário japonês Teizo Morohashi, fundador da Xebio, uma
cadeia de varejo de material esportivo.
Colecionador de arte fascinado
especialmente por Dalí, Morohashi adquiriu cerca de 330 quadros, esculturas,
gravuras e outras peças do artista. Ele em seguida as doou, juntamente com cerca
de 70 obras de outros artistas, para
criar o Museu Morohashi de Arte Moderna, inaugurado em 1999, em um terreno
doado por ele na região de Fukushima, a cerca de duas horas do mar. Hoje, o
museu recebe cerca de 50 mil visitantes ao ano.
Dalí provavelmente teria gostado da
existência de mais um museu dedicado ao seu legado. E, dado seu apego especial
pelo humor e beleza, que podem ser encontrados em mundo que saiu dos trilhos,
ele provavelmente também apreciaria a estranha jornada que ‘A Dança’ fez para
chegar ao seu novo lar.
Fonte: Peter Libbey, NYT |
tradução Paulo Migliacci, FSP
(JA, Jan18)
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