Trabalhos feitos por artesãs da Grande
SP e do interior paulista estarão em exposição no Sesc
Comunidades de artesãs. Mulheres rendeiras trabalham no fundo do atelier, na aldeia de Carapicuíba |
‘Olê muié rendera/ Olê muié rendá/Tu me
ensina a fazer renda/Que eu te ensino a namorá’ (‘Mulher Rendeira’, xaxado atribuído a Lampião, o rei
do cangaço).
Quando se fala em artesanato,
muitos pensam no Norte e no Nordeste e num ofício rudimentar, parado no tempo.
Mas os tempos mudaram.
‘Eu tive uma grande surpresa
ao descobrir a riqueza e a criatividade das artesãs aqui mesmo em São Paulo’,
diz a jornalista Adélia Borges, 68, mineira de Cássia.
Chamada pelo Sesc para fazer
a curadoria de uma exposição nacional sobre o universo têxtil das rendeiras e
bordadeiras, logo ela percebeu que não precisaria viajar muito pelo país para
encontrar o que procurava.
Na região metropolitana e no
interior, a curadora selecionou 20 participantes em coletivos, comunidades e
cooperativas de 14 municípios, com farto material para a ‘EntreMeadas’,
exposição inaugurada nesta terça-feira (16) no Sesc Vila Mariana.
Comunidades de artesãs.
Mulheres rendeiras trabalham no fundo do atelier na aldeia de Carapicuíba
Ali estão tapetes, roupas,
bolsas, esteiras, objetos, embalagens, jogos americanos, painéis decorativos,
tudo feito a mão, com palha de milho, fibras vegetais, troncos de bananeiras,
madeiras, plantas e até lixo reciclável.
‘Está acontecendo uma
verdadeira revolução silenciosa nesse campo de trabalho, que se reinventou nos
últimos anos com novas técnicas e materiais e se tornou uma importante fonte de
geração de renda para muitas famílias’, constata Adélia.
Com a crise econômica e o
desemprego, aumentou não só o número de artesãs com dedicação exclusiva mas
também de homens, nos teares e nas rocas para fazer os fios ou às voltas com
novelos de lã e agulhas de tricô. Calcula-se que eles sejam 15% dos
trabalhadores em artesanato.
‘Ao contrário de se retrair,
como muitos previam, o artesanato se expande na contemporaneidade. Nesse
processo recente, há uma ressignificação da atividade, que alude a valores como
calor humano, singularidade e pertencimento’, afirma Adélia.
A 25 km do centro
de São Paulo, em Carapicuíba, encontramos a Oca Cultural, ONG criada em 1996 onde
trabalham as Rendeiras da Aldeia.
O objetivo inicial da Oca era
desenvolver atividades culturais gratuitas com crianças da região. Logo vieram
os cursos para alfabetização de adultos e, em 2006, um grupo de mães se
instalou na casa 21 da antiga Aldeia de Carapicuíba, erguida pelos
jesuítas em 1580, para se dedicar ao artesanato.
Quem conhece essa história
desde o começo é a professora Lucilene da Silva, 47, mineira de João Monlevade,
formada em Letras, que está concluindo seu doutorado em etnomusicologia (estudo
da música tradicional dos povos) na Unicamp.
Música e artesanato sempre
andaram juntos, conta ela, pois as mulheres costumam cantar enquanto trabalham.
Das zonas rurais do Nordeste
veio a maioria das 15 Rendeiras da Aldeia que, além de mostrarem seus
trabalhos, vão cantar na abertura da EntreMeadas no dia da abertura da mostra,
que vai até 9 de fevereiro de 2020.
Na terça-feira, elas
apresentarão, acompanhadas de cinco músicos, um repertório de ‘Cantos de
trabalho, do tecer, cozer, bordar, fiar e rendar’, que ensaiavam na semana
passada no quintal da Oca Cultural. É um espetáculo encantador, de cores e
sons, bonito de ver e ouvir.
Com idades entre 45 e 65 anos, antes
elas trabalhavam como empregadas domésticas, babás ou diaristas, sacolejavam
várias horas por dia em ônibus, indo ou vindo do trabalho. Agora, trabalham em
casa e cuidam dos filhos. Têm uma renda média de R$ 2.500 ao mês,
podendo chegar a R$ 4.000, mais do que ganhavam antes.
Filha de Terezinha Rosa, uma
costureira negra, hoje com 87 anos e ainda na ativa, com quem aprendeu a fazer
renda, aos cinco anos Lucilene da Silva já queria ser cantora e professora.
Começou a dar aulas cantando
para as cadeiras de casa para treinar. Antes de vir para São Paulo para fazer
mestrado, com 27 anos, cantava na Casa Arte Brasil e no coral de
Monlevade.
Cantando com as crianças e
rendando com as mães na Aldeia de Carapicuíba, ela coloca em prática o que
aprendeu com a pesquisadora baiana Lydia Hortélio, que a apresentou a Maria
Amélia Pereira, fundadora da Oca Cultural.
Juntas, elas criaram o Centro
de Estudos e Irradiação da Cultura Infantil, que já levou Lucilene a 150 municípios
brasileiros para pesquisar as brincadeiras tradicionais das crianças e suas
cantigas.
‘Essa aqui faz renda
renascença com almofada e agulha. Olha que beleza! Aprendeu com a mãe quando
tinha nove anos’, diz Lucilene, apontando para Wilma da Silva, pernambucana de
Pesqueira.
Aliane Lindolfo da Silva
cortava cana em Pernambuco antes de vir para São Paulo; não sabia ler nem
escrever. Foi a primeira aluna do curso de alfabetização de adultos pelo método
Paulo Freire e já leu ‘Manuelzão e Miguilim’, de Guimarães Rosa.
Depois ela trouxe os parentes
e vizinhos, entre eles uma senhora de 85 anos. Outras trabalhavam em casas de farinha ou na
roça. Todas trouxeram na bagagem a cultura ancestral do artesanato, que
aprenderam com as mães, e estão transmitindo aos filhos. A novidade é que agora
também os meninos querem aprender a fazer renda.
‘A cidade grande engole as
belezas. Antes, elas tinham vergonha de mostrar esses trabalhos, que começam a
ser mais valorizados com a multiplicação dos pontos de venda, não só em feiras
e bazares, mas também em butiques dos bairros chiques, e até na loja do Masp’,
conta Lucilene.
Na Oca Cultural, naquelas
casas rústicas de estilo colonial, pintadas de azul e branco em torno da velha
praça da aldeia, as rendeiras também recebem encomendas pela internet e usam as
redes sociais para divulgar seus trabalhos.
Essas mulheres felizes sentem
prazer em contar como as peças são feitas, do material empregado ao acabamento.
Um vestido infantil de renda, por exemplo, pode levar até 40 dias para
ficar pronto —por isso, os preços costumam ser mais altos do que os das roupas
industrializadas.
O que mais chama a atenção
nesse lugar, que mistura presente e passado, é a alegria com que as artesãs
exercem seu ofício, e a dignidade das senhoras que vieram de longe e se reencontraram
em São Paulo com as suas origens.
Ao final do seu texto no
catálogo da mostra EntreMeadas, Adélia Borges resume sua pesquisa do artesanato
paulista: ‘Quando falamos de entrelaçar fios, do fazer têxtil, falamos também
do tecido social em que vivemos. E, acima de tudo, da capacidade de, juntas e
misturadas, mulheres de diferentes gerações, procedências e classes sociais
reinventarem poeticamente o mundo em que vivemos’.
Lucilene da Silva prefere
cantar:
‘Ô luar/ Ô luarinho/Ô luar do
firmamento/Quem me dera estar aqui/Onde está meu pensamento’.
Exposição
EntreMeadas
Sesc Vila Mariana, rua Pelotas, 141, São Paulo
A partir de 15/10, até 9/02/20. De terça a sexta, das
10h às 21h30; sábados das 10h às 20h30; domingos das 10h às 18h30.
Grátis
Fonte: Ricardo Kotscho
| FSP
(JA, Out19)
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