domingo, 29 de setembro de 2019

Culpa colonial impulsiona revisão histórica em instituições europeias




Museu troca termo 'Era Dourada' por 'Século 17 Holandês' para abarcar lado negativo do período


Ilustração Catarina Pignato


Numa Europa que lida com a ascensão de governos populistas dados à glorificação do passado como forma de reforçar a identidade nacional, um museu holandês provocou grande polêmica ao decidir que a era mais vistosa da história de seu país não deveria mais ser enaltecida.

Há duas semanas, o Museu de Amsterdã determinou que a Era Dourada deverá ser chamada apenas de Século 17 Holandês em suas exposições e coleção permanente.
Em nota, o curador Tom van der Molen, responsável pelo setor na instituição, afirma que ‘a Era Dourada ocupa um lugar importante na historiografia ocidental’, mas que as associações positivas ao termo, ‘como prosperidade, opulência e inocência, não dão conta da realidade histórica’.

‘O termo ignora diversos lados negativos do século 17, como pobreza, guerra, trabalhos forçados e tráfico humano’.

A discussão envolve o Brasil: entre 1630 e 1654 a Companhia das Índias Ocidentais holandesa gerenciou uma grande colônia no Nordeste, centrada em Pernambuco. O domínio coincidiu com o ápice da Era Dourada —termo que segue em uso no outro museu principal da capital holandesa, o Rijksmuseum.

O século 17 viu a miséria citada por Van der Molen, mas também o esplendor do zênite da arte alimentada por patronos enriquecidos pelo comércio ultramarino: gênios como Rembrandt e Johannes Vermeer atuaram naquela época.

A decisão desagradou o governo holandês, de centro-direita. ‘Primeiro tivemos de mudar as placas de rua, aí caíram estátuas e agora toda a Era Dourada vai para o lixo? É covardia reescrever a história’, disse ao jornal De Telegraaf o deputado Zohair el Yassini.

Questionado pela Folha, o principal especialista holandês em questões de restituição colonial, Jos van Beurden, buscou contemporizar.

‘É preciso debater à luz da discussão sobre o passado colonial da Europa, que geralmente acaba numa discussão binária’, afirma. ‘O termo Era Dourada é confortável porque faz pensar mais no nosso passado glorioso do que no seu lado sombrio. Mas o nosso não existe mais, e é preciso discutir para quem o século 17 foi dourado’.

O episódio é apenas o mais recente de uma longa série. Em Portugal, outro país de dimensões irrisórias, que logrou construir um enorme império com as mesmas implicações que os holandeses, discutem - um museu também está no centro de controvérsia.

A Câmara Municipal de Lisboa decidiu no ano passado pela construção de um Museu dos Descobrimentos. A reação foi imediata, com manifesto de intelectuais e historiadores pedindo a reconsideração do nome e da temática —a escravidão, a subjugação dos indígenas no Brasil, e outros tantos temas sensíveis entraram como argumento.

Ao fim, em dezembro os legisladores incluíram no projeto a obrigatoriedade de uma seção dedicada à escravidão.

Em julho, também foram destinados fundos para a criação do primeiro Memorial da Escravatura, que deve ficar pronto em 2020. Houve acirrados debates entre deputados de direita e de esquerda, com os primeiros criticando o que chamam de autoflagelação em detrimento da celebração dos exploradores.

É um equilíbrio delicado, como demonstra o livro ‘Conquistadores’ (Ed. Crítica, 2016), do historiador britânico Roger Crowley: a engenhosidade portuguesa na construção de seu império era, ao mesmo tempo, admirável e abominável.

O mesmo se pode dizer da grande maioria das empreitadas coloniais europeias. A maior de todas, a britânica, também é alvo de escrutínio. Ali, a questão é carregada por tintas do politicamente correto.

Em 2017, por exemplo, foi reaberto após uma reforma o Museu Nacional do Exército, em Londres. Só que as longas exibições cronológicas foram substituídas pelo que um observador poderia chamar de sessão de análise histórica.

Surgiram paredes com advertências contra o militarismo, e até sistemas de votação, no qual o visitante é perguntado se vale a pena colocar o dinheiro no Exército. As coleções de arte decorrentes de séculos de domínio de terras distantes é outra vertente do debate.

São clássicas as recusas do Museu Britânico em devolver os tesouros adquiridos ou roubados de antigas colônias: o Egito, por exemplo, reclama a devolução de artefatos como a Pedra de Rosetta, tablete com textos em grego, demótico e hieróglifos, que tornou possível a tradução da escrita dos antigos egípcios.

Na França, o governo de Emmanuel Macron criou, no ano passado, uma comissão que está catalogando as dezenas de milhares de peças retiradas de antigas colônias africanas.

Para o especialista em restituições Van Beurden, não há uma regra única para lidar com essas demandas. ‘É preciso ver o contexto de cada retirada. Só devolver não remenda o passado’, disse.

A ascensão do politicamente correto também turva aspectos pouco agradáveis do debate, como os riscos que as coleções correm em seus países natais. Por paternalista, o argumento da falta de estrutura é usualmente descartado.

Mas poucos se lembram da grande devolução de obras congolesas pela Bélgica ao regime de Mobutu Sese Seko, no então Zaire, em 1977, quando quase tudo desapareceu para reaparecer no mercado de arte ilegal.

Às vezes, o choque histórico resvala o inusitado. A Marinha Real britânica fez um protesto formal, no começo de 2018, contra a decisão do Museu Marítimo da Escócia de instituir artigos e pronomes neutros para designar embarcações —tratadas como entes femininos em todas as forças navais do mundo, algo que segundo a direção poderia ferir sensibilidades modernas.

Já na mesma Holanda da presente polêmica, o conde Maurício de Nassau teve o busto retirado do museu que leva seu nome, em um prédio que havia erigido, em Haia.





O Mauritshuis, que hospeda a célebre pintura ‘Moça com Brinco de Pérola’, de Vermeer, considera que o passado do antigo dono da casa, como governador colonial no Brasil (1636-44), o tornava indigno da homenagem.

Até o premiê holandês protestou, mas a remoção foi mantida. Para Van Beurden, a solução é a conversa. ‘Acho que todos os interessados deveriam sentar e discutir, certamente haveria uma alternativa inclusiva e até brilhante, como a Era Dourada’, disse.


Europa concentra casos de mudanças e debates

A Era Dourada

Fachada do Rijksmuseum, em Amsterdã

O Museu de Amsterdã baniu o termo para definir o ápice do poder colonial holandês, por considerar que ele ignora consequências como a escravidão.

Descobrimentos?

Lisboa debate se deve criar um Museu dos Descobrimentos, dado o passivo humano da colonização portuguesa

 O patrono malvado

Museu Maurithuis fica na cidade de Haia, Holanda


O museu Maurithuis, em Haia (Holanda), retirou o busto de Maurício de Nassau, antigo dono do prédio, por suas aventuras coloniais no Brasil.
Devolução de artefatos

A França formou comissão para devolver peças de museus a ex-colônias, e há pedidos de retorno de ícones como a Pedra de Rosetta (do Egito, está no Reino Unido) ou o busto de Nefertiti (do Egito, está na Alemanha)


Mulher fotografa obra de Rembrandt exposta no museu Michael Kooren



Fonte: Igor Gielow  |  FSP


(JA, Set19) 

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