Em 'Dor e Glória', diretor espanhol
baixa o tom e renega visual berrante que o consagrou
O diretor espanhol Pedro Almodóvar no festival de Cannes em 2019 |
Pedro Almodóvar está numa
cruzada contra o almodovarismo. Ele se queixa que seus colaboradores novatos
querem ser mais realistas que o rei, e exagerar no visual berrante dos cenários
e nos elementos kitsch da ambientação. Só que, prestes a completar 70 anos, o
cineasta espanhol não se vê mais tão almodovariano assim.
‘Fiz muitos filmes coloridos,
agora evito. E sou cada vez menos capaz de fazer comédias’, diz entre um gole e
outro de sua Coca-Cola Light, à beira da praia, durante o Festival de Cannes,
no mês passado.
Depois de um breve silêncio,
ele se apressa em dizer que isso não tem nada a ver com ter perdido o bom
humor. ‘Ainda adoro uma fofoca, adoro falar mal dos outros’.
No filme ‘Dor e Glória’, que está estreando
nesta semana, sua notória estridência está uns dez tons abaixo. Ainda assim,
talvez seja a mais coerente de suas obras —se não em estilo, ao menos em
temática.
Semiautobiográfico, o enredo
sobre a crise de um bem-sucedido diretor sexagenário o obrigou a expor seus
espectros e passado nas telas. ‘Quando comecei, senti uma hesitação. Queria
mesmo me ver assim tão de perto? Depois fluiu’, diz Almodóvar.
Embora diga que o resultado
tenha sido terapêutico, seu intuito inicial com um filme tão pessoal não era
exatamente psicanalítico.
Cena do filme 'Dor e Glória' |
‘Eu queria me sentir mais
confortável com a ideia de o tempo estar passando. Sou ateu, ou seja, não tenho
nenhum apoio psicológico. A velhice é um massacre’.
Na ficção, quem carrega o
martírio da idade é Antonio Banderas, vencedor do prêmio de melhor ator em
Cannes pelo papel. Ele faz Salvador Mallo, um diretor macambúzio que estourou
nos anos 1980, e agora se vê forçado a revisitar sua carreira quando recebe uma
homenagem.
O enredo se debruça sobre
tormentos do sujeito nesse filme que marca um retorno aos dramas mais
masculinos de Almodóvar —e que renderam alguns de seus melhores títulos, como ‘A
Lei do Desejo’, 1987, e ‘“Má Educação’, 2004.
Além da semelhança física, e
do apego por filmes um tanto atrevidos, o protagonista compartilha com seu
criador a angústia primal de um bloqueio criativo.
‘Sei que soa muito forte, mas
a ideia de não ter um projeto em vista me tira o sentido da vida’, diz o
cineasta. ‘É por isso que sempre estou envolvido com algum filme, nem que seja
com a burocracia dele’.
E nas horas que restam? ‘Aí
eu caminho por Madri, por disciplina porque não é algo que me apetece, e vou ao
cinema e à ópera’, responde. ‘E ainda faço amor, embora menos do que antes’.
Mallo só desperta de sua
letargia pela lembrança do desejo —sempre ele, uma chave para compreender a
obra de Almodóvar, imantada de tanto erotismo que às vezes beira o
sexy-histriônico.
Na mais marcante cena de ‘Dor
e Glória’, uma das mais belas de toda a filmografia almodovariana, o
protagonista relembra a primeira vez que sentiu tesão.
Aos nove anos, flagrou um
jovem camponês se banhando no pátio, debaixo do sol do verão. O desejo lhe é
tão insuportável e tão misterioso, invadindo os seus poros pela primeira vez,
que o garoto até desmaia.
Rodar a cena era preocupante.
‘Porque ao mesmo tempo que envolvia uma criança, eu tinha que passar ao
espectador que era carregada de sensualidade’, diz o cineasta, que se lembra de
ter experimentado seu primeiro tesão também na infância, apaixonado por um
colega de escola.
O desejo também cruza com
Mallo na forma de um antigo amor, um argentino vivido por Leonardo Sbaraglia,
que o reencontra depois de anos de distanciamento. O revival é mote para a obra
trazer uma cena, tão rara no cinema, de atração sexual entre dois homens
envelhecidos.
Almodóvar, que diz se opor ao
casamento como instituição, sai pela tangente quando o assunto é ter ou não
experimentado um amor impossível, como o do personagem.
‘É difícil responder a isso.
O que posso dizer é que tenho um cara comigo há uns 30 anos, mas transo com
outras pessoas. Só não publique isso na Espanha, por favor’.
Penepole Cruz no filme 'Tudo sobre minha Mãe' |
O diretor só fica mais
confortável quando aborda outros aspectos centrais do filme, como a intensa
relação do protagonista com a mãe, uma mulher amargurada, vivida por Penélope
Cruz na juventude, e por Julieta Serrano na velhice.
‘Há algo com as espanholas
que sofreram o rescaldo da Guerra Civil que faz com que não seja raro que elas
se comportem de forma cruel com os filhos’, diz. ‘Elas chegam à velhice e
concluem que a vida não foi justa com elas, então agem assim’.
Para rodar esse que é o seu
filme mais íntimo, o cineasta se cercou de atores que são seus velhos
conhecidos —sua ‘família emocional’, como ele mesmo descreve.
Sobre Banderas, seu parceiro
em quase uma dezena de filmes, diz que é como um ‘irmão mais novo’. ‘Somos dois
caras formados naquelas noites de Madri dos anos 1980’, diz o diretor, que é o
nome mais conhecido da ‘movida madrileña’, o fervo cultural e boêmio que tomou
o país após a dureza do franquismo.
Com Penélope Cruz é
diferente. ‘Houve um tempo, no filme Volver, em que eu estava fisgado por ela,
que realmente a desejava. Ela me faz sentir heterossexual’.
O ator espanhol Antonio
Banderas e a atriz Elena Anaya em cena do filme 'A Pele que Habito', de Pedro
Almodóvar
Poucas horas antes de dar
esta entrevista, Almodóvar havia se derramado de amores pelo Brasil em conversa
com os jornalistas em Cannes. ‘Era como se, mesmo sem ter estado ali, aquelas
cores já fossem as que eu punha nos meus filmes’, disse, emendando pesar pela ‘fase
difícil’ que o país atravessa.
Brasileiros ou não, esses
tons tendem a ficar mais opacos na obra do espanhol. ‘Minha ideia de conceber o
visual sempre passava por cores vivas. Mas mudei de opinião sobre as coisas. E
há uma melancolia nesse filme que também faz parte da minha vida’.
Fonte: Guilherme Genestreti,
Cannes | FSP
(JA, Jun19)
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