Cruzando influências, pintora traduz o
Brasil numa língua que é, e não é, a nossa
Auto retrato 'Vestido Azul', 1923 |
Faz sucesso a exposição de
Tarsila do Amaral que fica até 28/07 no Masp, e com bons motivos. Há uma grande quantidade de
obras —quase cem—, lindamente distribuídas em paredes com as cores suaves que a
pintora usava na sua fase pau-brasil.
Os textos reproduzidos ao
lado de cada quadro são de ótima qualidade, sem jargão, e até com toques de
valoração crítica, positiva ou negativa —estimulando quem vê a fazer seus
próprios julgamentos.
Quadros raramente vistos,
alguns notáveis, foram obtidos de coleções particulares. Destaco um
autorretrato de vestido azul, de 1923, com toques orientalizantes nas frutas
que pendem no fundo, perto da orelha da figura, como num eco dos brincos
dourados de outra imagem da pintora.
‘Lagoa Santa’, de 1925,
mostra as clássicas casinhas de interior de paisagens mais conhecidas —só que
não tão nítidas, não tão ‘programáticas’ em sua simplicidade.
O efeito é menos bom, mas se
vê compensado pelas árvores cortadas, quase como braços e pernas de ex-votos,
no primeiro plano.
De Van Gogh e Gauguin
passamos aqui a uma possível influência de cenas da Primeira Guerra Mundial,
como as pintadas por John Nash, 1893-1977, por exemplo.
Alguns quadros não muito
conhecidos misturam o estilo pau-brasil, intencionalmente ingênuo com
favelinhas limpas e trenzinhos de brinquedo, e a crueza antropofágica de fins
da década de 1920.
‘Segunda Classe’, 1933 |
De modo geral, as fases de
Tarsila se sucedem com nitidez. A década de 1930 representou, em todo o mundo,
uma virada artística para temas sociais. ‘Segunda Classe’ e ‘Operários’ são as
grandes obras desse período, contrastando em qualidade com tentativas bem
ruins, como ‘Trabalhadores’, de 1938.
Entre esses extremos, uma
bonita ‘Maternidade’, do mesmo ano, usa os tons de Clóvis Graciano, Teruz e
Portinari.
O ímpeto ‘animal’ de Tarsila
foi se perdendo com o tempo; meio sem razão, alguns quadros terminaram fazendo
experiências com um tipo de composição em diagonais que lembra a influência
antiga do futurista Gino Severini, 1883-1966.
Ainda assim é muito bonita
uma paisagem de 1950, em que também as pinceladas de Cézanne deixam sua marca.
‘Abapuru’, 1928 |
Influências, inspirações,
lembranças: eis o que não falta na pintura de Tarsila. A simplificação
geométrica de Léger, 1881-1955, se junta ao instinto obscuro do ‘douanier’
Rousseau, 1844-1910, e mesmo a distorção extrema do ‘Abaporu’ pode ter-se
alimentado do maneirismo de Parmigianino, 1503-1540.
Trata-se de uma estranha
originalidade. É como se Tarsila estivesse muito perto de imitar alguém, mas
conseguisse ser ela mesma apesar de tudo.
Claro que a cultura
brasileira lutava —e um pouco ainda luta—contra uma tendência ‘centrífuga’.
Sair do país, viajar para fora, era desejo e rotina para a elite cafeeira, e
hoje pega em cheio a classe média.
No caso de Tarsila, a solução
foi muito particular. Em meados da década de 1920, ela se comprometeu a
retratar um Brasil em que conviviam fazendolas e locomotivas. Mas não fez isso
como se pertencesse a essa realidade: o olhar vem de fora; nem o moderno nem o
rural são seus.
Na poesia de Oswald de
Andrade, o efeito era de estranhamento, de comicidade, de absurdo. Isoladas de
um contexto complicado e contraditório, as cenas do cotidiano brasileiro
surgiam como um boneco de mola pulando da caixinha.
Não há humorismo na pintura
de Tarsila; a realidade não está em choque com o olhar da artista. Seria
possível dizer que ela não estava pintando a realidade, mas uma ‘ideia da
realidade’; os seus quadros são a representação de uma representação, a pintura
(culta) de uma pintura infantil ou popular.
'A Negra’, de 1923 |
'A Negra’, de 1923, causa
ainda mal-estar e dá pano para mangas para os estudiosos no catálogo da
exposição. Os lábios enormes chocam pelo que têm de estereotipado; de racista,
dá para dizer.
Mas, novamente, não é bem a
pintora que se pode acusar disto ou daquilo. Tarsila parece estar pintando com
os olhos de um estrangeiro. São os olhos de um viajante, também, os que
identificam frutas brasileiras e bichos da floresta —como algo a ‘traduzir’
numa linguagem sem fluência, difícil, construída passo a passo, forma a forma,
cor a cor.
As pessoas se juntam para
tirar selfies perto de ‘Abaporu’. Como ‘A Negra’, trata-se de uma
esfinge, renovando o mesmo enigma. Seu idioma é o português do Brasil —mas não
sabemos o que diz.
Fonte: Marcelo Coelho,
mestre sociologia USP, autor romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’ | FSP
(JA, Jun19)
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