Publicação, que demorou
quase 20 anos para ser concluída, era promessa de Charles Cosac ao artista
'Trança Humana', performance de Tunga replicada por dançarinos da Lia Rodrigues Companhia de Danças, no CCBB São Paulo, 2001 |
O contraste da pele branca da atriz
com o negror do pavimento à sombra dos enforcados, era o clarão que Tunga
buscava nas trevas, como fez em quase toda a sua obra de choques orquestrados
entre formas puras e seus duplos perversos, luz e breu. Era a visão de que ‘as
cavernas mais profundas da mente brilham com esplendor’.
Essa ideia marcou a britânica
Catherine Lampert, uma das críticas mais interessadas na obra do artista.
Ela batizou com essa frase um ensaio
que entende como resumo do trabalho difícil, impenetrável de Tunga, um dos maiores
nomes das artes visuais do país.
Depois de quase duas décadas, seus escritos
intimistas sobre o tempo que passou ao lado do escultor vem à tona, num livro
que disfarça no formato simples sua enorme ambição.
Tunga, que morreu há quatro anos, viu
quase tudo reunido para o volume, uma espécie de testamento visual que, além de
ensaios críticos de Lampert, e do também britânico Guy Brett, pela primeira vez
tenta construir um glossário de sua obra. As formas mais recorrentes do
vocabulário de suas esculturas —tranças, cálices, garrafas, sinos, tacapes—
ressurgem analisadas ali como assuntos de uma enciclopédia.
O esforço de juntar num único livro
quase cinco décadas de obras, que muitas vezes não passaram de rituais fechados
encenados pelo artista com seus amigos, exigiu tempo. No meio do caminho, Tunga
foi ficando cada vez mais doente, e as duas editoras que publicariam a obra
acabaram fechando as portas, silenciando o estudo.
‘Era muito difícil voltar a trabalhar
com algo que havia escrito há tanto tempo sem querer jogar tudo fora e começar
de novo’, lembra Lampert. ‘Mas depois vi que era cada vez mais importante
trabalhar essa lista do repertório de formas dele, um repertório que, em muitos
casos, era uma extensão de seu corpo'.
Foi só nos últimos meses de vida do
artista que o livro enfim ganhou forma. Tunga trocara o Rio por São Paulo para
tratar o câncer de pulmão que tiraria sua vida, e foi morar no apartamento do
amigo Charles Cosac, que acabava de encerrar as operações da Cosac Naify, casa
que publicou outros quatro livros sobre Tunga.
‘Ele só piorou desde o dia em que ele
pôs os pés em casa’, lembra o editor. ‘Foram sete meses de tristeza, e a gente
não tinha como disfarçar isso. Não sabia o que dizer para ele, não dava para
falar nada. O livro então era uma promessa que fiz ao Tunga. Existia essa
dívida e tinha que terminar’.
O cuidado de Cosac e Lampert com o
livro, explícito nos mínimos detalhes, como elencar os nomes de quase todos os
atores e atrizes que participaram das performances mais radicais do artista, em
museus, galerias, ruas e até capelas pelo mundo, não deixa dúvidas que a obra
foi pensada como o último ato, mesmo que póstumo, de um artista incendiário.
Tunga, do mesmo jeito que entrelaçou
cobras sedadas em tranças vivas ou pediu a bailarinos nus que imitassem essas
formas, juntou dois lados irreconciliáveis na arte do país —a secura do impulso
geométrico e a vibração de corpos vivos.
Sua obra muitas vezes fuliginosa e
escura, construída com ímãs, fios de cobre, couro e feltro, por mais distante
que pudesse parecer do calor da pele, na verdade sempre se deu como
reencarnação da matéria, a ideia de devolver a vida a elementos minerais,
fossilizados.
Numa das passagens mais reveladoras
do livro, Tunga descreve uma escultura de feltro da fase em que ele ensaiava os
primeiros passos de sua tentativa de ruptura com a herança concretista, que
marcou todos artistas do país, desde a metade do século passado. Escrevendo
sobre ‘Albinos’, um trabalho dos anos 1980,
Tunga fala em criar ‘uma possível geometria, um caminho entre as camadas de
carnes do feltro’.
Não espanta que décadas mais tarde o
artista levaria a carne real ao contato mais extremo com as formas roliças,
irregulares de suas esculturas, criando uma série de performances em que
mulheres nuas lambuzavam de maquiagem suas peças de vidro e alumínio, ou
dançarinos sem roupa se banhassem em geleia cor de sangue, entre ampolas e
frascos pendurados de cruzes no teto.
Outra ação, também envolvendo maquiar
as peças, terminava com um ritual destrutivo, com belas mulheres estilhaçando
objetos de vidro na nave de uma capela, à luz pálida de holofotes atrás das
cortinas.
O poder destrutivo de suas
performances, oposto da limpeza contida das vanguardas construtivas, fez de
Tunga talvez o primeiro artista contemporâneo do país a ostentar uma vontade
barroca na raiz de seus trabalhos, uma dramaticidade confessa, teatral que
parecia espelhar melhor a carnificina brasileira do que qualquer outro trabalho
de toada cerebral ou asséptica.
‘Reinventar as formas clássicas era o
que ele fazia de melhor’, lembra Catherine Lampert. ‘Mas é também por isso que
muitos dos especialistas em arte latino-americana rejeitavam o aspecto barroco
desenfreado de seus trabalhos’.
Ela, que comandou a Whitechapel, um
dos grandes templos da arte contemporânea em Londres, lembra como foi difícil,
por exemplo, convencer os historiadores da Tate Modern a comprar peças de Tunga
para um acervo que já abria as portas aos artistas latinos.
‘É difícil penetrar na obra do Tunga.
A gente gosta dela, mas não sabe por quê’, diz Charles Cosac, que retomou sua
editora só para publicar o livro derradeiro. ‘O discurso dele é muito erudito,
e ele era uma pessoa difícil de lidar. Trabalhar com ele significava se
subjugar ao temperamento, e ao humor dele. Foi ali que percebi que nenhum
artista quer revelar a sua obra por inteiro’.
Mesmo arredio e famoso por dar
entrevistas sem responder as perguntas, Tunga morreu consagrado como um dos
maiores nomes de sua geração. Lampert, aliás, acompanhou de perto o momento em
que ele atingiu o auge da fama, ao instalar uma enorme escultura debaixo da
pirâmide de vidro do Louvre, em Paris.
Lá, um gigantesco esqueleto sem
cabeça repousava numa rede negra sustentada em balanço por bolsas cheias de
caveiras negras e douradas, a morte refestelada à luz do sol filtrada pela
estrutura cristalina, a coroar o saguão do museu.
Tunga chamou o trabalho de ‘À la
Lumière des Deux Mondes’, ou à luz de dois mundos. Mais uma vez, polos opostos
se chocavam numa alegoria a um só tempo tétrica e sedutora.
‘Ele foi um artista de extremos, no
bom sentido. Tunga era borderline, no limite’, diz Lampert. ‘Mas, convivendo
com ele, era possível absorver seu vocabulário e sua sensibilidade. Ele
compartilhava algumas coisas às vezes’.
O trabalho em que ele arremessa uma
réplica da própria cabeça ao mar surgiu de uma dessas visões. Nas palavras
dele, o ‘troféu mórbido’ lançado às ondas por seus longos cabelos, era uma
forma de atrair a atenção das sereias.
Essa imagem de cabeleiras fartas ecoa
os cachos das ‘Xifópagas Capilares entre Nós’, ação do começo da década de 1980, em que garotas idênticas, presas pelos cabelos,
circulavam pela galeria onde fios de cobre atravessavam enormes pentes
metálicos no chão.
Tranças nunca desapareceram de suas
obras. Noutra encarnação, elas estavam em ‘Tereza’, performance em que homens
costuravam cobertores para formar uma longa corda, alusão à tática de detentos
que escapavam da prisão usando lençóis amarrados, que em galerias de arte
tinham o efeito oposto, ao cercear o movimento do público.
Tunga, nesse ponto, estava atento a
duas realidades, cindido entre sua cosmovisão particular, e a realidade de um
país mergulhado na violência. No fundo, radiografava uma angústia, muitas vezes
asfixiante, um mal-estar inescapável.
Na curva escura do mesmo túnel Dois Irmãos onde pendurou seus manequins, aliás, Tunga filmou um looping infinito, a sensação de rodar e rodar sem nunca encontrar uma saída. A trilha sonora era ‘Night and Day’, na voz de Frank Sinatra —luz e trevas inseparáveis.
‘Tunga quebrou a ideia que eu tinha
de escultura’, diz Cosac. ‘Ele cria tensão e movimento, uma obra que nunca pode
ser estática. É como se fosse a visão de um vaso de flores vivas, com a
diferença que essas são flores perpétuas’.
Tunga
Fonte:
Silas Marti | FSP
(JA,
Jan20)
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