Artista se firma como emblema da nova
modernidade ao assumir ambivalência entre o europeu e o popular
Minutos antes da meia-noite,
na virada do domingo (28) para a segunda (29), as galerias do primeiro andar seguiam abarrotadas. O
público testava a paciência de seguranças posando para selfies até o apagar das luzes da mostra mais visitada da
história do museu.
Encerrada no fim de semana,
depois de quatro meses em cartaz, uma exposição de Tarsila do Amaral destronou
Claude Monet como o maior sucesso de público do Masp —402.850 pessoas foram ver
a modernista brasileira neste ano, contra 401.201 atraídos pelas telas do
impressionista francês em agosto de 1997.
Na semana passada, quando
chegou a 350 mil visitantes, Tarsila já tinha se tornado o artista brasileiro
mais visto no museu da avenida Paulista, que alardeou cada marco dessa escalada
fazendo barulho nas redes sociais e esticando os horários de abertura.
Quando os seguranças
começavam a tocar o público para fora das galerias, passados dois minutos da
meia-noite, Adriano Pedrosa, diretor-artístico do museu, comemorava olhando a
tela de seu celular. ‘Hoje batemos 6.074 pessoas’, dizia ele, antecipando o
recorde confirmado no dia seguinte.
Os números não são ultra
precisos, vale lembrar. Isso porque o museu só tem os dados da atual gestão,
iniciada há cinco anos. Mas um levantamento rápido das últimas décadas comprova
que nada bateu a marca dos 400 mil visitantes no maior museu do país, muito
menos a exposição de um artista brasileiro.
Abaporu, 1925 |
Mais do que a gratificação
instantânea de postar o selfie perfeito diante dos quadros, no entanto, a
multidão alvoroçada pelas cores de Tarsila talvez buscasse nas galerias do Masp
uma sensação que julgava inacessível tão perto de casa. O ‘Abaporu’, alvo de metralhadas
de obturadores de telefone, virava ali um parente tropical da ‘Mona Lisa’, a
grande obra-prima do Louvre.
Se o museu parisiense foi um
palácio da realeza, o prédio modernista erguido por Lina Bo Bardi na avenida
Paulista é um templo da fase mais heroica da nossa vanguarda arquitetônica, uma
caixa de vidro flutuante tão transparente quanto impenetrável.
Não só pelo preço do ingresso
—exorbitantes R$ 40—, impagável para as
classes mais baixas, mas porque museu parece até um palavrão num país que vive
um de seus momentos mais agudos de ataque à cultura. Nunca uma mostra de um
artista brasileiro foi tão visitada e nunca o Brasil pareceu flertar de forma
tão descarada com a ideia de se firmar como o grande império da burrice.
Tarsila, na história da arte
e à luz dessa ambivalência, ocupa o incômodo lugar de um agente duplo. E é
inegável entender as muitas fases de sua obra como reflexo disso.
Num primeiro momento, a
celebrada década de 1920, ela foi a caipirinha alternativa em Paris, uma dama
da elite cafeeira que plasmou em suas telas um exotismo calculado. Estava em
sintonia com o que alguns estudiosos chamam de auge da negrofilia parisiense,
capitaneada por Picasso, e disposta a injetar o calor dos trópicos no seio da
vanguarda europeia.
Sua obra canonizada pela
crítica sugava o poder sedutor da gente, da fauna e da flora de uma ex-colônia
ancorada na escravidão para decantar toda essa potência nas superfícies
anódinas, resplandecentes de um cubismo dúbio. Suas figuras parecem mecânicas e
artificiais, mas não na tentativa de seguir um plano estético e conceitual
traçado de antemão e sim para se adequar ao filtro plástico mais superficial
das modas da época.
Depois, naquilo que talvez
fale bem mais de perto à realidade daqueles que nunca pisaram num museu mas
encararam horas de espera nos dias de entrada grátis, Tarsila amansou seus
filtros geometrizantes e retratou altares improvisados nas casas de interior,
anjinhos e santinhos, festas do povo. Desafiou o que ela mesma chamava de ‘gosto
apurado’ para se entregar à exuberância do popular ou do caipira, aquilo que,
décadas mais tarde, seria o Brasil da bossa nova em atrito com aquele das
modinhas de viola.
Quando batizou sua exposição
mais vista de todos os tempos ‘Tarsila Popular’, o Masp deixava claro que era o
Brasil da feira de frutas, o das procissões na roça e do Carnaval que moldava
as dezenas de obras da artista fora de sua fase arquitetada para impressionar
olhares estrangeiros.
Mas encaixou no mesmo recorte
aquilo que catapultou Tarsila ao núcleo duro do que agora se entende como a
mais nova modernidade. A artista enfim encontrou abrigo na concepção plural e
esgarçada desse movimento que tardou a dominar o pensamento dos maiores e mais
influentes museus do planeta.
Em Nova York, o MoMA acaba de
desembolsar US$ 20 milhões por 'A Lua', um quadro menor da fase mais aclamada
da artista —a negociação concluída há pouco impediu que a pintura estivesse na
mostra.
O ‘Abaporu’, talvez a obra
mais célebre a deixar o país na história recente, detona discursos ufanistas a
cada uma das muitas vezes que aparece numa exposição em solo nacional. A tela
comprada pelo argentino Eduardo Costantini, na década de 1990, por pouco mais
de US$ 1 milhão, foi a vedete inevitável da mostra, mesmo que sua última
passagem por São Paulo, há 11 anos, tenha levado só 108 mil pessoas à
Pinacoteca.
Antropofagia, 1929 |
A Negra, 1923 |
Mais controversa das telas de
Tarsila, ‘A Negra’ foi o quadro abre-alas da mostra, num gesto ousado de seus
organizadores —a visão estilizada da velha ama de leite da fazenda da família
da artista no interior paulista não deixa de carregar todas as marcas de uma
pintora atravessada pela força do furacão das vanguardas e um apego ainda que
torto e fetichista à sua terra natal.
Tarsila pintou o quadro em
1923 em Paris, vista de perto por seu mestre à época, Fernand Léger. Não
espanta que a visão então prosaica de uma negra velha anônima, tenha se
transformado em máscara de feições animalescas, desproporcional em relação às
dimensões do quadro. Ela é mais seios, mais lábios, mais nariz e pés que
qualquer outra coisa. No lugar da delicadeza feminina, a brutalidade feroz de
um bicho enjaulado.
Enquanto a artista pintava ‘A
Negra’, Oswald de Andrade discursava na Sorbonne sobre como faltava ao Brasil
se reconciliar com sua identidade negra e indígena ao adentrar a modernidade,
mesmo que a visão de Tarsila lançada sobre a ex-escrava fosse a de uma branca
enquadrando sua serviçal de pele escura castigada pelo trabalho braçal.
Tarsila, em seu autorretrato
de vestido vermelho pendurado ao lado da ‘Negra’, faz com a mão o mesmo gesto
da ama de leite, como se visse NELA algo da própria identidade.
Sua mãe preta, já dizia o
crítico venezuelano Luis Pérez-Oramas, que organizou a retrospectiva da
modernista no MoMA no ano passado, seria ‘a mãe de todos nós’. Gilberto Freyre,
lembra a pesquisadora Irene Small no monumental catálogo da exposição do Masp,
já celebrava —não sem controvérsia— a figura da mulher negra escravizada como a
‘bela mulata’ pronta para ‘amamentar o Brasil inteiro’.
Fila gigante no vão livre do MASP para exposição de Tarsila do Amaral |
Talvez as hordas que lotaram
o museu da avenida Paulista estivessem mesmo ali à procura de uma linha
evolutiva à qual se filiar num país sem memória. Tarsila foi alçada à estranha
condição de matriarca de Pindorama, lembrando Oswald, a artista na origem de
tudo e de todos.
Os maiores públicos do MASP
- ‘Tarsila Popular’ (2019) - 402.850
- ‘Monet: o Mestre do Impressionismo’ (1997) - 401.201
- ‘Salvador Dalí no Masp’ (1998) - 200.143
- ‘Picasso: Anos de Guerra 1937-1945’ (1999) - 202.522
- ‘Caravaggio e Seus Seguidores’ (2012) - 185.117
- ‘Histórias Afro-Atlânticas’ (2018) - 180.174
Fonte: Silas Martí
| FSP
(JA, Jul19)
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