Evento italiano parece moldado pela
reação dos artistas às fake news, contra o populismo
Obra do artista Christoph Büchel em Veneza |
A carcaça corroída de um
barco de pesca alçado sobre vigas metálicas no pátio do Arsenale, antiga fábrica de navios de guerra, já viralizou
como a imagem síntese da Bienal de Veneza mesmo antes de sua abertura para o
público, neste fim de semana.
O trabalho do artista suíço
Christoph Büchel foi deslocar os destroços da embarcação que afundou há quatro
anos no Mediterrâneo, provocando a morte de mais de mil imigrantes que tentavam
chegar à costa italiana, para o jardim da maior mostra de arte contemporânea do
planeta, uma espécie de cavalo de Troia a invadir a Europa num momento de
convulsão no mundo.
Esses restos metálicos,
fotografados à exaustão pelo ‘jet-set’ da arte
que circula pelas galerias do Arsenale e pelos
pavilhões dos Giardini, dá o tom sinistro desta 58ª edição da mostra italiana.
Ralph Rugoff, o americano à frente do evento, escolheu um eufemístico ‘Que Você
Viva em Tempos Interessantes’ como nome de sua seleção de artistas.
Interessantes, turbulentos,
polêmicos e raivosos, qualquer um acrescentaria. À primeira vista, sua
exposição que reúne 79 artistas, a maioria deles mulheres, algo inédito na
história do evento, é uma grande apologia da ruína em que se transformou um
mundo tomado por debates cada vez mais polarizados e o levante de um
conservadorismo que não esconde suas tintas agressivas.
‘Os discursos estão tão
polarizados em tantos países que parece que aqueles com uma opinião diferente
vivem num mundo paralelo. Enquanto isso, plataformas como o Twitter se tornaram
um canal de notícias’, diz Rugoff. ‘A arte nesse momento se tornou um reduto de
discursos mais ambíguos, multifacetados, um experimento que nos deixa fazer
novas associações e ver como nossa visão de mundo é fragmentada.
Os artistas nos pedem que
pensemos de jeitos distintos, que defendamos ideias opostas ao mesmo tempo. Não
há uma verdade simples’.
Toda a mostra, aliás, insiste
nessa ideia. Na esteira de outras exposições dessa natureza, como a Bienal de
Charjah aberta em março, o evento italiano também parece moldado pela reação
dos artistas à era das fake news, sendo
apelidada por uns como a Bienal contra o populismo.
Em tempos de brexit, Bolsonaro, Trump e a escalada da retórica
neofascista na própria Itália, artistas tentam refletir nos seus trabalhos o
que entendem como distorção violenta da realidade.
Rugoff, talvez atropelado ele
mesmo pela overdose de informações do momento atual preferiu não pensar a
exposição em torno de um tema central. Tudo, no caso, tem vez nos pavilhões,
gerando uma cacofonia às vezes predatória em que um trabalho distorce a leitura
do outro. Isso quando o ritmo não é quebrado pela montagem, com paredes de
madeira que isolam uma ala da outra, talvez uma alusão a discursos fragmentados
ou falas atravessadas.
‘Não existe um tema, mas há leitmotifs', diz Rugoff. ‘Entre eles muralhas, barreiras de toda
sorte, duplicidade e realidades espelhadas, máscaras e histórias escondidas,
além da relação entre humanos com a tecnologia, que parece se estreitar cada
vez mais’.
'Henger' da artista italiana Chiara Fumai
Uma ala importante de sua
Bienal de Veneza, de fato, reúne uma série de obras em realidade artificial,
além de animações em 3D e trabalhos com personagens criados por máquinas que
reagem ao espectador, das fantasmagóricas animações do britânico Ed Atkins às
flores tecnicolor da alemã Hito Steyerl, passando pelas criaturas assustadoras
do americano Ian Cheng e do canadense Jon Rafman.
Além da mostra principal, que
vai até novembro na cidade italiana, 90 países têm representações oficiais
nesta Bienal de Veneza. O Brasil, com um pavilhão próprio nos Giardini, leva
obras da dupla de artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca.
Cerca de 600 mil visitantes
são esperados na 58ª Bienal de Arte Contemporânea de Veneza, que vai de 11 de
maio até 24 de novembro.
Fonte: Silas Martí
| FSP
(JA, Mai19)
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