Se cortamos no financiamento das artes,
então estamos lutando para quê?
Ilustração - Angelo Abu |
Um dia disseram a Winston
Churchill que era preciso cortar os custos do financiamento das artes. A
Inglaterra estava em guerra. A guerra é um negócio caro.
Churchill recusou. E terá
respondido: se cortamos no financiamento das artes, então estamos lutando para
quê?
O filósofo Peter Singer
discorda do velho Winston. A propósito da reconstrução de Notre-Dame, Peter
Singer e um seu discípulo, Michael Plant, vieram argumentar que o dinheiro
doado pelos ricos para a reconstrução da catedral deveria ser usado para
combater a pobreza. (‘How Many Lives Is Notre-Dame Worth’, Project Syndicate).
Nas 24 horas seguintes ao
fogo, foi possível juntar € 1 bilhão em donativos. As estimativas dos
especialistas apontam para uma reconstrução que custa € 300 milhões a € 600
milhões. Donde, quantas vidas de pobreza não poderiam ser salvas pela
totalidade desse bilhão?
Curioso. Para uma alma não utilitarista
(como a minha), esses valores seriam um bom pretexto para um compromisso:
pagava-se a catedral e depois, com o dinheiro remanescente e com a concórdia de
todos, era possível passar às questões humanitárias.
Pelos vistos, Singer e Plant
não gostam de compromissos. É tudo ou nada. E a catedral? A catedral deveria
ficar em ruínas para sinalizar a virtude dos contemporâneos.
Li o texto com interesse. Se
o problema pudesse ser resumido a uma simples questão matemática —tiramos
daqui, entregamos mais além— nada haveria a objetar. Infelizmente, o mundo é
mais complexo do que Singer imagina.
Deixemos de lado algumas
objeções básicas, como a ideia de que o dinheiro pertence sempre a alguém; e
que esse ‘alguém’ tem toda a legitimidade para o usar como entende.
Deixemos também de lado a
evidência dolorosa de que, se o pensamento utilitarista de Singer pudesse ser
aplicado retroativamente, as nossas cidades, as nossas bibliotecas, as nossas
salas de concertos ficariam vazias como desertos.
O que me impressionou no
texto foi a redução da nossa humanidade à sua dimensão mais básica. Ou,
inversamente, a ideia de que a arte e a beleza ocupam sempre um lugar
secundário em qualquer existência.
Fato: quando temos fome, os
anseios da alma podem esperar. Mas, quando olhamos para a história da nossa
civilização, as necessidades do corpo e da alma nunca foram entendidas como
mutuamente excludentes.
Notre-Dame, Paris - interior da catedral após incêndio |
O filósofo Roger Scruton, que
vale sobretudo pelos seus textos sobre estética (opinião pessoal), explica isso
em documentário que aconselho. O título é revelador: ‘Why Beauty Matters’.
Durante 2.500 anos, a
necessidade de beleza nunca esteve em causa: a beleza era o sinal de um mundo
superior que se revelava na temporalidade dos homens; e, a partir do
iluminismo, uma fonte de conhecimento que permitia aos homens serem melhores do
que meras bestas.
Essa visão redentora do belo
acabou por perder-se com o ‘desencantamento do mundo’ moderno. Como explica
Scruton, os valores passaram a ser justificados pela sua utilidade mais
contábil. O que não é útil não vale nada. Consequências?
Sim, a escassez de beleza
retira aos seres humanos uma das fontes mais importantes de consolação moral e
espiritual. ‘Todos estamos na sarjeta’, escrevia Oscar Wilde, ‘mas alguns de
nós estão olhando para as estrelas’. De que vale viver na sarjeta quando se
apaga essa luz no céu?
Mas existe uma segunda
privação: uma privação intelectual e até política. Quando tudo se reduz a mera
contabilidade de secos e molhados, como suster conceitos intangíveis como ‘liberdade’
ou ‘democracia’? Como alimentar qualquer ideal superior que precisa sempre da
cultura e da arte para ganhar forma e voz?
Ironicamente, o utilitarismo
progressista de Peter Singer é bastante semelhante ao filistinismo reacionário
de quem defende menos verbas para cursos de humanidades, e mais foco em áreas
que geram ‘retorno imediato ao contribuinte’.
Em ambos os casos,
presenciamos o triunfo do utilitarismo raso, a defesa do rebaixamento do
horizonte humano, a transformação do pensamento em adereço menor e até
dispensável.
Usar 1 bilhão de euros para
combater a pobreza teria efeitos imediatos mas circunstanciais, que se
esgotariam rapidamente no tempo. Usar metade dessa verba para reerguer
Notre-Dame é dar resposta à pergunta de Churchill. Se não defendemos o que de
melhor os homens fizeram ou pensaram, estamos a lutar para quê?
A essa eu respondo: para
nada.
Fonte: João Pereira Coutinho, escritor, doutor em
ciência política pela Universidade Católica Portuguesa |
FSP
(JA, Mai19)
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