Cantora fala sobre viagem a Paris que a fez decidir se dedicar à
arte
Van Gogh, auto-retrato, 1889, exposto no Museu d’Orsay |
Sempre fui
muito ligada às artes plásticas. Ainda hoje, toda a minha construção dentro da
música é em cima de imagens, performance, moda. Desde que comecei a ser artista
procurei conceituar meus trabalhos de maneira coerente em tudo isso.
Lá pelo ano
de 2011, eu estava num momento de muitos questionamentos, numa virada da
compreensão de quem era. Começava a me tornar aquela que sou hoje. Tinha
acabado de deixar a faculdade de direito para entrar no curso de artes cênicas.
Sempre fui
cantora —nunca havia enxergado isso como uma profissão, já que era algo que
fazia desde criança. O que estava descobrindo sobre mim mesma, naquele momento,
é que eu inevitavelmente tinha que me dedicar à arte. Não era uma questão de
escolha. E o que me revelou isso foi uma pintura.
Foi numa
viagem à França que fiz com uma grande amiga, Ana Rabello. Tínhamos tudo
planejado, até a grana que íamos gastar por semana (que no fim um infeliz
furtou da minha bolsa, ali pela Champs-Élysées). Engordei oito quilos em 40
dias, porque não sabia quando ia comer aquelas maravilhas de novo. Naquele
país, tudo é gostoso, do pão ao leite. Desesperador.
Entre os
passeios, encaixei diversas idas a museus, afinal, fui criada com esse gosto e também
com o péssimo (ou ótimo) hábito de observar longamente determinadas obras. Até
então, eu havia demorado um tempo recorde de uma hora em frente a um quadro:
encantada com a ideia de me casar, me deixei levar por ‘The Promenade’, em uma
exposição do Chagall no Brasil.
Nevava em
Paris. Eu e Ana nos embolávamos em casacos e cachecóis, tentando nos adaptar
com a maior naturalidade possível. Mas era gritante o jeito de andar, a calça
colada nas bundas volumosas, éramos um espetáculo à parte para os franceses.
O casaco
medonho que meu orçamento permitiu comprar, junto ao par de botas inúteis que a
moça da loja jurou que ia me salvar do frio, formaram um combo ante erótico.
Virei uma bola preta de batom vermelho e cabelo curtinho.
Restava
comer e observar. Logo no início do nosso passeio pelo Museu d’Orsay, fui
arrebatada. Uma nuvem azul em movimento me sugou e me obrigou a olhá-la: era um
autorretrato de Van Gogh.
Eu nunca
havia me interessado pelo pintor, porque implicava com quem vira pôster em sala
de espera de consultório. Eu sempre me achei muito hype, sabidona. Jamais
poderia imaginar que os quadros desse homem realmente se moviam.
Hoje sei
que, na verdade, é um crime fazer reprodução de uma obra de Van Gogh. Esse
quadro pessoalmente é uma coisa, outra é ver uma impressão plana dele
O que mais
se perde é a nuance da cor. Gosto de observar o quão tridimensional é a
pincelada do artista, ver o volume da tinta (fico procurando entender, pelos
traços, como é o corpo do pintor). Ainda mais no caso de Van Gogh, que tem essa
pincelada brutal, quadros cheios de volume, quase esculturas.
Aquele
quadro que vi no Orsay não é só um autorretrato, é a presença do artista. Tive
a impressão de que Van Gogh ia sair do quadro. Sua mão é tão forte, seu traço
tão impressionante que suas obras parecem estar vivas.
O pintor
estava ali comigo. Alguma coisa naquele olhar me lembrava que, por trás da
mitologia de sua loucura e dos fatos marcantes de sua biografia, ali existia um
homem bastante lúcido. Ele registrava tudo aquilo que enxergava, seu mundo
tinha aquelas cores —me parece que via em mais de três dimensões.
Longe de mim
romantizar a loucura (às vezes penso que ela é o excesso de lucidez), mas
aquele homem é muito mais do que isso. É um artista brutal, violento acima de
todas as coisas, e nisso me identifico com ele.
No seu
autorretrato, ele conseguiu me falar o que pensava. Posso dizer com exatidão o
que é? Jamais. Mas ouvi o que ele disse e, debaixo daquele casaco medonho, eu
me tornei artista.
Fonte: Alice Caymmi, cantora e compositora |
FSP
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