domingo, 9 de setembro de 2018

Me tornei artista ao ver pintura de Van Gogh, diz cantora Alice Caymmi



Cantora fala sobre viagem a Paris que a fez decidir se dedicar à arte

Van Gogh, auto-retrato, 1889, exposto no Museu d’Orsay

Sempre fui muito ligada às artes plásticas. Ainda hoje, toda a minha construção dentro da música é em cima de imagens, performance, moda. Desde que comecei a ser artista procurei conceituar meus trabalhos de maneira coerente em tudo isso.
Lá pelo ano de 2011, eu estava num momento de muitos questionamentos, numa virada da compreensão de quem era. Começava a me tornar aquela que sou hoje. Tinha acabado de deixar a faculdade de direito para entrar no curso de artes cênicas.
Sempre fui cantora —nunca havia enxergado isso como uma profissão, já que era algo que fazia desde criança. O que estava descobrindo sobre mim mesma, naquele momento, é que eu inevitavelmente tinha que me dedicar à arte. Não era uma questão de escolha. E o que me revelou isso foi uma pintura.
Foi numa viagem à França que fiz com uma grande amiga, Ana Rabello. Tínhamos tudo planejado, até a grana que íamos gastar por semana (que no fim um infeliz furtou da minha bolsa, ali pela Champs-Élysées). Engordei oito quilos em 40 dias, porque não sabia quando ia comer aquelas maravilhas de novo. Naquele país, tudo é gostoso, do pão ao leite. Desesperador.
Entre os passeios, encaixei diversas idas a museus, afinal, fui criada com esse gosto e também com o péssimo (ou ótimo) hábito de observar longamente determinadas obras. Até então, eu havia demorado um tempo recorde de uma hora em frente a um quadro: encantada com a ideia de me casar, me deixei levar por ‘The Promenade’, em uma exposição do Chagall no Brasil.
Nevava em Paris. Eu e Ana nos embolávamos em casacos e cachecóis, tentando nos adaptar com a maior naturalidade possível. Mas era gritante o jeito de andar, a calça colada nas bundas volumosas, éramos um espetáculo à parte para os franceses.
O casaco medonho que meu orçamento permitiu comprar, junto ao par de botas inúteis que a moça da loja jurou que ia me salvar do frio, formaram um combo ante erótico. Virei uma bola preta de batom vermelho e cabelo curtinho.
Restava comer e observar. Logo no início do nosso passeio pelo Museu d’Orsay, fui arrebatada. Uma nuvem azul em movimento me sugou e me obrigou a olhá-la: era um autorretrato de Van Gogh.
Eu nunca havia me interessado pelo pintor, porque implicava com quem vira pôster em sala de espera de consultório. Eu sempre me achei muito hype, sabidona. Jamais poderia imaginar que os quadros desse homem realmente se moviam.
Hoje sei que, na verdade, é um crime fazer reprodução de uma obra de Van Gogh. Esse quadro pessoalmente é uma coisa, outra é ver uma impressão plana dele
O que mais se perde é a nuance da cor. Gosto de observar o quão tridimensional é a pincelada do artista, ver o volume da tinta (fico procurando entender, pelos traços, como é o corpo do pintor). Ainda mais no caso de Van Gogh, que tem essa pincelada brutal, quadros cheios de volume, quase esculturas.
Aquele quadro que vi no Orsay não é só um autorretrato, é a presença do artista. Tive a impressão de que Van Gogh ia sair do quadro. Sua mão é tão forte, seu traço tão impressionante que suas obras parecem estar vivas.
O pintor estava ali comigo. Alguma coisa naquele olhar me lembrava que, por trás da mitologia de sua loucura e dos fatos marcantes de sua biografia, ali existia um homem bastante lúcido. Ele registrava tudo aquilo que enxergava, seu mundo tinha aquelas cores —me parece que via em mais de três dimensões.
Longe de mim romantizar a loucura (às vezes penso que ela é o excesso de lucidez), mas aquele homem é muito mais do que isso. É um artista brutal, violento acima de todas as coisas, e nisso me identifico com ele.
No seu autorretrato, ele conseguiu me falar o que pensava. Posso dizer com exatidão o que é? Jamais. Mas ouvi o que ele disse e, debaixo daquele casaco medonho, eu me tornei artista.





Fonte:  Alice Caymmi, cantora e compositora   |   FSP

 (JA, Set18)

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