Autorretrato atribuído a Rafael, datado do começo do século 16 |
A mais importante delas, no
entanto, era ‘Raffaello’, na Scuderie del Quirinale, em Roma. Num esforço que
custou € 3 bilhões, ou mais de R$ 15 bilhões em seguros, segundo o jornal The New York
Times, a exposição reuniria, pela primeira vez, 27 pinturas de Rafael.
Nem mesmo as comemorações do
aniversário de 500 anos do nascimento do artista, ocorridas há 37 anos, tinham
alcançado o feito. Então, suas pinturas, muitas delas sobre madeira, foram
consideradas frágeis demais para o transporte. Quem quisesse festejar a data
teria que atravessar a Itália para ver trabalhos espalhados por museus em
Milão, Veneza, Bolonha, Florença, Gênova, Roma.
Mas não foi desta vez que o
público pôde ver as obras num mesmo espaço. ‘Raffaello’ foi fechada dias depois
de sua abertura, por causa da pandemia do novo coronavírus.
Com o período de isolamento
social na Itália estendido até o início do mês de maio, não se sabe quando a
mostra voltará a receber visitantes.
Com isso, Rafael volta a
ocupar um lugar um tanto obscuro no imaginário popular. Afinal, enquanto
Leonardo da Vinci bate recordes em leilões, e vende best-sellers, ele é
relegado a um vago terceiro posto do Renascimento, depois ainda de
Michelangelo.
Nem sempre foi assim. Em
vida, e por ao menos três séculos depois, Rafael foi considerado ‘o pintor por
excelência, o mestre a ser seguido’, afirma Jorge Coli, professor de história
da arte da Universidade Estadual de Campinas.
Leonardo da Vinci, 1452-1519 |
Ele conta que, enquanto
Michelangelo era considerado perigoso para os iniciantes, que poderiam ser
esmagados pela sua força enquanto modelo, Da Vinci era visto como sedutor, mas
misterioso, Rafael ‘propunha as próprias chaves da beleza’. ‘Quem o seguisse
não seguia um indivíduo, mas um universal’, diz Coli.
‘Da Vinci e Michelangelo eram
admirados, mas Rafael era imitado’, resume Louis A. Waldman, professor da
Universidade de Austin, no Texas, especializado em Renascimento italiano.
La Fornarina’, 1518-1519, do pintor renascentista Rafael |
‘
Ele descreve as pinturas do
artista como naturalistas, tecnicamente perfeitas. Ao contrário da geração
anterior a ele, porém, Rafael buscava realçar a beleza do mundo ao seu redor, e
ajudou a forjar o conceito de uma arte como criação de um mundo ideal que teria
repercussões pelos dois séculos seguintes.
Não é só a força dessa ideia
que explica a influência de Rafael naqueles anos. Luiz Marques, também
professor da Unicamp, conta que duas condições materiais contribuíram para
isso. A primeira foi a ideia de Rafael de desenhar matrizes para gravuras, o
que permitiu que seu estilo viajasse pela Europa por meio da imprensa.
A segunda foi o fato de que o
artista foi um dos primeiros da Itália a dirigir um ateliê moderno, onde os
trabalhos eram realizados ao lado de exércitos de aprendizes. Enquanto
Michelangelo, aos 33 anos, iniciava, sozinho, a pintura do teto da Capela
Sistina, por exemplo, o jovem de 25 anos estava ali perto, no Vaticano, pintando afrescos
nos aposentos papais com muitos auxiliares.
O método fez com que Rafael
tivesse que ensinar seus assistentes a reproduzir fielmente seus traços, e a
estrutura de suas pinturas. E, com isso, contaminasse o estilo não só dos
pintores dali, numa homogeneização observada poucas vezes na história, como das
gerações futuras.
É irônico, mas é essa mesma
unanimidade que explica por que Rafael perdeu a força no imaginário popular com
o passar dos anos. De um lado, o modelo de ateliês que ele ajudou a estabelecer
entrou em crise no final do século 18, substituído pelo mito do artista romântico, do gênio
individual. Daí o triunfo de Da Vinci, artista errático e sem educação formal,
avesso às instituições, de um lado, e de Michelangelo, artista torturado,
obsessivo, de outro.
Na mesma época, os artistas
começam a negar a ideia de beleza e harmonia da qual Rafael é indissociável — ‘grazia’,
graça, como define seu biógrafo Giorgio Vasari no século 16. ‘Rafael era
o modelo indiscutível das escolas e academias, o mestre contra quem se revoltar’,
diz Coli. ‘A arte preferiu a expressividade, o choque, o abalo, ao invés da
sublime harmonia sutil.’
Marques concorda: ‘Num
momento em que essa cultura do belo entra em crise, Rafael vai junto’. Mas faz
uma ressalva. Se a arte trilhou outros caminhos a partir do século 19, Rafael
sobrevive ainda hoje na cultura de massa. As mais de 30 madonas
atribuídas a ele estão na origem dos santinhos distribuídos nas portas de
igreja, e lembrancinhas de primeira comunhão. ‘As pessoas são rafaelianas sem
saber’, diz o professor.
Na visão dele, a sutileza das
obras de Rafael dificulta o interesse do público leigo de hoje, acostumado a
contrastes evidentes.
Marques traça um paralelo
entre as pinturas do renascentista e os filmes dos anos 1940,
considerados monótonos pelos mais jovens no geral. ‘Mudou muito o nível de
oferta emocional, da violência da imagem. Se quiser que meus filhos durmam,
basta um filme do Frank Capra’, ele diz.
Quem mesmo assim quiser se
aventurar pela obra de Rafael, pode assistir a uma visita filmada pela
exposição fechada da Scuderie del Quirinale.
Talvez a quarentena não tenha
sido tão danosa ao renascentista, afinal —é possível que em casa, entediadas,
as pessoas estejam mais dispostas a notar as sutilezas das imagens que ele
criou.
Fonte: Clara Balbi |
FSP
(JA, Abr20)
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